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Educação e sabedoria: o diálogo entre a filosofia hebraica e a pedagogia protestante de Comenius

Ensaio filosófico escrito por Anne Calland, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2025


Introdução

O Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, estabelece três premissas fundamentais sobre o direito à educação. A primeira determina que todo ser humano tem direito à instrução gratuita nos graus elementares e fundamentais, sendo o ensino elementar obrigatório. Também prevê que o ensino técnico-profissional e a instrução superior sejam acessíveis a todos, esta última baseada no acesso meritório. A segunda premissa enfatiza que a instrução deve promover o desenvolvimento humano, o respeito aos direitos e liberdades fundamentais, além de fomentar a compreensão e a paz entre povos e culturas. Por fim, a terceira assegura aos pais o direito prioritário de escolher o gênero de instrução a ser ministrada a seus filhos (ONU, 1948).

Tais postulados, amplamente aceitos na sociedade ocidental contemporânea, configuram um modelo de pensamento educacional que contrasta com modelos históricos que restringiam o acesso ao conhecimento. Diante disso, este ensaio pretende demonstrar que o modelo educacional atual, centrado na universalidade do acesso e na valorização do desenvolvimento integral, possui influências significativas da filosofia hebraica. Essa abordagem foi resgatada e reinterpretada durante a Reforma Protestante, especialmente por Comenius, cujo ideal de Pansofia defendia uma educação universal e transformadora, oposta aos modelos elitistas dos sistemas educacionais grego e medieval.

Para estruturar essa análise, o ensaio está organizado em três partes: inicialmente, serão apresentados os fundamentos da filosofia hebraica e sua concepção transdemográfica de transmissão de conhecimento; em seguida, será explorada a contribuição de Comenius e o desenvolvimento do ideal pansófico no contexto da Reforma Protestante; e, por fim, a conclusão alerta para propostas educacionais focadas em uma elite intelectual isolada, distantes do modelo bíblico de aprendizagem, que é comunitário e acessível a todos.

1. Filosofia Hebraica: Sabedoria para Todos

O filósofo Dru Johnson, em seu livro Filosofia Bíblica: A origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica, dedica-se a demonstrar como a literatura bíblica revela um estilo filosófico hebraico que se caracteriza como: pixelado, entrelaçado, ritualista, transdemográfico, misterionista e criacionista. Ele afirma que esse estilo pode ser compreendido a partir de dois conjuntos de marcadores genéticos: os modos de argumentação e as convicções fundamentais (JOHNSON, 2022, p. 130).  

Quanto aos modos de argumentação, observa-se que seus exemplares são organizados de forma sistemática – como se cada parte fosse um pixel de um mosaico maior –, desenvolvido intertextualmente, estabelecendo um diálogo contínuo que se estende da Torá e dos Profetas aos Evangelhos e para além  (JOHNSON, 2022, p. 130). 

No que se refere às convicções fundamentais, o estilo filosófico hebraico reconhece a incapacidade lógica de compreender exaustivamente a natureza da realidade, adotando uma postura misterionista. Além disso, fundamenta-se na noção de Yahweh como o criador e sustentador do universo, assumindo uma perspectiva criacionista. Sua compreensão se dá por meio de uma matriz de participação ritual, o que evidencia seu caráter essencialmente ritualista, e visa, por fim, desenvolver competências em todas as posições sociais de Israel, refletindo uma dimensão transdemográfica (JOHNSON, 2022, p. 130).

Particularmente relevante é a convicção transdemográfica, segundo a qual o discernimento e a sabedoria estão acessíveis a todas as camadas da sociedade. Diferentemente do contexto do Antigo Oriente Próximo, onde o universo só poderia ser lido por uma elite de adivinhos, o Deus de Israel determinou que o conhecimento se difundisse amplamente (JOHNSON, 2022, p. 162).

Também em oposição à tradição helenista classista, que restringia o entendimento de conceitos de segunda ordem a filósofos e seus discípulos, o modelo hebraico preconizava que, conforme a revelação divina, Israel deveria realizar ritos que o tornariam um povo sábio e com discernimento (JOHNSON, 2022, p. 130). “Esperava-se que sua tradição de sabedoria, ao contrário de todas as outras civilizações antigas, se espalhasse para todos: mulheres, homens, crianças, idosos e estrangeiros e nativos, igualmente” (JOHNSON, 2022, p. 144). 

Ademais, a atividade intelectual não se restringia à erudição, mas consistia em sabedoria como uma habilidade para viver e interagir de maneira plena com o mundo. Como explica o teólogo e pedagogo Igor Miguel:

A sabedoria bíblica prioriza as virtudes intelectuais e morais. Seu foco não é o controle empírico da realidade, mas um conhecimento que esteja a serviço da própria existência, das relações, da virtude e do bem do próximo. (…) A especificidade da natureza da epistemologia sapiencial exige que se reconheçam suas fontes e sua pedagogia. A dimensão pedagógica é necessária, pois, nos termos da comunidade de Israel, a sabedoria é formada comunitariamente, e não adquirida por um método cartesiano. Portanto, como já abordado, há, basicamente, três fontes ou contextos de que dependem a formação para a sabedoria (MIGUEL, 2021, p.131,132).

Assim, pela concepção hebraica, a formação de sabedoria se fundamenta em três fontes principais: a teológica, que se baseia na dependência divina e revelação, reconhecendo o ser humano como imagem de Deus e a sabedoria como dom do Espírito Santo; a cosmológica, que se refere à estrutura da realidade como contexto para compreensão da sabedoria através da observação e interação com o mundo natural e social; e a pedagógica, que envolve a transmissão comunitária do conhecimento acumulado historicamente, preservado em documentos canônicos e transmitido por mestres capacitados para formar novos aprendizes (MIGUEL, 2021, p. 131,132).

2. Comenius e a Pansofia: Educação Universal

Jan Amos Komenský (1592-1670), conhecido em sua forma latinizada como Iohannes Amos Comenius, nasceu na cidade de Uherský Brod, na antiga Morávia, hoje parte da República Tcheca. Sua família fazia parte da comunidade protestante conhecida como Unitas Fratrum Bohemorum, ou Irmãos Morávios, um grupo que seguia os ideais reformistas de Jan Hus (?-1415). Hus, considerado um precursor da Reforma Protestante, foi executado na fogueira pelo Concílio de Constança em 1415 devido às suas críticas a determinados dogmas da Igreja Católica (COUTO, 2024, p. 162).

Comenius recebeu sua formação inicial na escola latina de Prerov e prosseguiu seus estudos superiores nas universidades de Herborn (1611–1613) e Heidelberg (1613–1614). Aos 24 anos, foi ordenado sacerdote e, posteriormente, assumiu importantes funções eclesiásticas, tornando-se Bispo e Arcebispo de sua comunidade. Reconhecido por sua significativa contribuição aos estudos educacionais, Comenius é frequentemente denominado o “Pai da Pedagogia Moderna” (COUTO, 2024, p. 163).

Sua visão educacional está fortemente ligada ao conceito de Pansofia, um termo derivado dos vocábulos gregos παν (pan), que significa “tudo”, “total” ou “inteiro”, e σοφία (sophía), que se traduz como “sabedoria”, “percepção”, “habilidade” ou “inteligência”. Durante o período em que viveu, a educação não era acessível a todos, sendo restrita a certos estratos sociais, principalmente aos homens mais ricos e ao clero. No entanto, Comenius via esse cenário de forma crítica e propôs uma abordagem pansófica, acreditando que o conhecimento deveria ser acessível a todas as pessoas, independentemente de sexo, classe social, idade, raça, etnia, religião ou qualquer outra distinção (COUTO, 2024, p. 164).

Sua obra mais célebre, Didacta Magna (ou A Grande Didática), que é considerada sua maior contribuição ao pensamento educacional, inicia com uma reflexão sobre a necessidade de uma educação universal e inclusiva, destinada a formar seres humanos plenos e sábios:

Que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos, ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades, cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém, possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a piedade e, assim, nos anos da primeira juventude, receba a instrução sobre tudo o que é da vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida. Os princípios de tudo o que se aconselha são extraídos da própria natureza das coisas; a verdade é demonstrada através de exemplos paralelos das artes mecânicas, a ordem (dos estudos) é disposta segundo anos, meses, dias, horas; o caminho, enfim, fácil e seguro, é mostrado para pôr essas coisas em prática com bom êxito. Que a proa e a popa da nossa didática sejam: buscar e encontrar um método para que os docentes ensinem menos e os discentes aprendam mais; que nas escolas haja menos conversa, menos enfado e trabalhos inúteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito; que na república cristã haja menos trevas, menos confusão, menos dissensões, mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranquilidade (COMENIUS, 2002, p. 11).

Os fundamentos teóricos da obra de Comenius são notadamente marcados por uma visão ideológica cristã. Ele acreditava que o homem foi criado à imagem de Deus e via a educação como um meio para aproximá-lo de seu Criador. Comenius sustentava que, ao oferecer uma formação sólida para crianças e jovens, seria possível libertar toda a humanidade das corrupções do mundo e guiá-la em direção à salvação (BARRETO, 2020, p. 339).

Igor Miguel, ao analisar a vida e obra de Comenius, destaca que este foi profundamente influenciado pelo princípio do sacerdócio universal dos santos. Esse conceito, que afirma que todo cristão tem a responsabilidade de dar testemunho público de Jesus, exerceu pressão sobre as fileiras protestantes para reconhecerem a necessidade de demonstrar ao mundo que, assim como o acesso à teologia não é privilégio do clero, o acesso ao conhecimento formal, à ciência e à participação na vida em sociedade também não devem ser restritos a uma elite (MIGUEL, 2022).

Considerações finais

Conforme a tradição filosófica hebraica, o conhecimento é, antes de tudo, um desvelamento do próprio Deus. Ele se manifesta como uma graça concedida, e não conquistada. Diante desse princípio, o cristão é desafiado a revisar sua existência à luz dos fundamentos teológicos de uma epistemologia cristã (MIGUEL, 2021, p.196). Desse modo, “a atividade intelectual cristã não é meramente uma tentativa de artificializar um controle racional rigoroso sobre as informações obtidas pelos sentidos ou a cultura” (MIGUEL, 2021, p.167). O conceito bíblico de sabedoria não se limita ao intelecto, mas integra pensamento, desejo, devoção e ação.

Dessa forma, é necessário refletir se as propostas educacionais que se apresentam como cristãs estão indo além da mera formação intelectual do aluno abrangendo também sua formação espiritual, moral e comunitária, conforme defendido por Comenius. Como ressalta Vanhoozer: “o drama da doutrina visa a um discurso verdadeiro e uma ação correta: é para a glória de Deus que tudo se fala, tudo se pratica” (VANHOOZER, 2016, p. 245).

Além disso, o princípio do sacerdócio universal dos crentes ressalta o privilégio de que cada cristão, como filho de Deus, tem acesso direto à Sua presença, com Jesus Cristo como único mediador. Contudo, esse princípio não deve ser interpretado de maneira individualista. Os reformadores enfatizam seu caráter comunitário, no qual os cristãos, como sacerdotes uns dos outros, são chamados a orar, interceder e ministrar em serviço mútuo (MATOS, 2025).

Diante dessas considerações, é essencial reafirmar que o conhecimento, à luz da tradição cristã, não deve ser um privilégio de poucos, mas um bem compartilhado por toda a comunidade. Quando a busca pelo saber se desconecta da vivência comunitária e do serviço mútuo, corre-se o risco de distorcer seu propósito, transformando-o em um instrumento de exclusão, em vez de um meio de edificação. 


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Referências Bibliográficas

BARRETO, Iolanda de Sousa; MACHADO, Charliton José dos Santos; FIALHO, Lia Machado Fiúza. Do pensamento Comeniano às teorias educacionais contemporâneas: o que mudou na educação das crianças? Revista Eletrônica Científica Ensino Interdisciplinar. Mossoró, v. 6, n. 17, ago. 2020. Disponível em: file:///C:/Users/annec/Downloads/maccole,+5.+DO+PENSAMENTO+COMENIANO+%C3%80S+TEORIA.pdf. Acesso em: 2 fev. 2025.

COMENIUS, Jan Amós. Didática Magna. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 390 p.

COUTO, Vinicius. “Ensinar a todos, todas as coisas, totalmente”: a pedagogia pansófica de Comenius e seu telos utópico. Educação & Linguagem, v. 25, n. 2, p. 161–186, 2024. Disponível em: https://revistas.metodista.br/index.php/educacaolinguagem/article/view/579. Acesso em: 2 fev. 2025.

JOHNSON, Dru. Filosofia Bíblica: A origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução: Igor Sabino. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. 400 p.

MATOS, Alderi Souza de. O sacerdócio universal dos fiéis. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Disponível em: https://cpaj.mackenzie.br/recursos/historia-de-igreja/artigo?tx_news_pi1%5Baction%5D=detail&tx_news_pi1%5Bcontroller%5D=News&tx_news_pi1%5Bnews%5D=24224&cHash=c1aa64b710f3998d2fe3887187afdbda. Acesso em: 2 fev. 2025.

MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 208 p.

MIGUEL, Igor. Comenius e Didática Magna: Vida e Obra | Live 1. Canal Igor Miguel [YouTube]. 23 fev. 2022. 1 vídeo (59:34). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lA9BTL4Wtro. Acesso em: 2 fev. 2025.

MIGUEL, Igor. Fórum Filosófico 01. Invisible College, 2025. 1 vídeo (1:26:55). Disponível em: https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-filosofica-2025. Acesso em: 2 fev. 2025.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Proclamação em 10 dez. 1948.  Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 2 fev. 2025.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.