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A crise de identidade do homem pós-moderno e a individualização

Escrito por Leonardo Aragão, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

O homem pós-moderno vive uma crise de identidade. Diante do subjetivismo exacerbado, das pós-verdades, do relativismo, o homem pós-moderno é auto-centrado mas ainda assim não se conhece. O presente artigo visa, utilizando-se da análise sócio-filosófica de Roel Kuiper, identificar as raízes dessa crise de identidade e apresentar, em linhas gerais, uma possível solução para a problemática.

1. UTOPIA E INDIVIDUALIZAÇÃO NO PENSAMENTO MODERNO E PÓS-MODERNO

É em Utopia, obra do inglês Thomas More (1477-1535), que achamos o começo do desenho da visão moderna a respeito da sociedade. More descreve uma comunidade de pessoas letradas, que cuidam do próximo, politicamente engajada, democrática. Como Roel Kuiper define, a sociedade que More descreve, “Utopia”, é “uma res publica. Utopia é um mundo justo[1].

Temos aqui o primeiro fundamento do pensamento moderno: amplamente utópico. O homem tipicamente moderno, então, não se ocupa com a condição presente em que se encontra, mas, antes, com a alteração do existente[2]. Assim também é que a mentalidade moderna está intimamente relacionada à mentalidade iluminista (no período da alta modernidade) de rompimento com a tradição, de descontinuidade. No iluminismo a utopia “muda de caráter”[3] mas permanece.

Com o processo de passagem da modernidade para a pós-modernidade, não há uma quebra do pensamento utópico, mas uma realocação da utopia. O ideal externo e social agora torna-se interno e subjetivo. De fato, na pós-modernidade “Utopia é um lugar no mapa do ambiente experimental subjetivo de cada pessoa.”[4]

Aqui é que o que começou a aparecer já no período pré-moderno toma forma de vez: a centralização do sujeito. Passando por Descartes, Locke e Kant, o foco lentamente sai das estruturas e do coletivo e volta-se para o sujeito[5], culminando numa pós-modernidade excessivamente subjetiva.

O homem passa a se enxergar como Jean Paul Sartre o descreveria: como sentenciado a própria liberdade. A liberdade, dessa forma, (e consequentemente a individualização) não é uma escolha para o homem moderno/pós-moderno. O homem torna-se escravo de sua própria liberdade pois “o indivíduo é colocado no centro com todas as suas possibilidades e resultados, querendo ele ou não.”[6]. O homem moderno (e também o pós-moderno) está em solidão e tem de tomar o rumo de sua vida nas próprias mãos.

Aqui se intensifica o que Roel Kuiper chama de individualização, que este define como “não só separação (no sentido de des-coletivização), mas sobretudo uma progressiva subjetivação (des-tradicionalização). A individualização é sobretudo uma elaboração subjetiva da busca por nós ‘mesmos’.”[7]

É também digno de menção o fenômeno de globalização que Anthony Giddens vai identificar como ainda mais relevante do que a individualização para esse processo de transformação da modernidade para a pós-modernidade. A globalização causa o “desenraizamento” e “reenraizamento”, transformando as relações sociais locais e tocando também no problema da individualização.[8]

Com o abandono da utopia externa e social, a realocação dessa utopia para aquilo que é interno, a consequente desestabilização social e o processo de individualização, há uma crise na identidade. Como o próprio Kuiper afirma: “Torna-se evidente que uma vida fortemente individualizada leva à perda de estabilidade  e identidade e que não é possível viver sem orientação no outro.”(ênfase minha).[9]

2. A CRISE DE IDENTIDADE

Há, então, uma crise na identidade do homem pós-moderno, especialmente porque como Herman Dooyeweerd o descreve, o ego humano não é nada em si mesmo, a saber: “O mistério do ego humano é que este não é nada em si mesmo, isto é, visto à parte das relações centrais nas quais se apresenta.”.[10]

Dooyeweerd, ao discorrer sobre o que é o homem, define que há três relações centrais que lhe dão sentido:

“Em primeiro lugar, nosso ego humano relaciona-se com toda a nossa existência temporal e com a nossa experiência integral do mundo temporal como o ponto de referência central deste último. Em segundo lugar, ele se encontra, de fato, numa relação comunal essencial com o ego de seus semelhantes. Em terceiro lugar, ele aponta para além de si mesmo em direção à relação central com sua Origem divina, a cuja imagem o homem foi criado.”[11]

Assim, ao nos apercebermos da individualização característica da pós-modernidade, salta aos olhos a forma como uma parte essencial da composição de nossa identidade é removida. O outro é apagado e a busca humana pela própria identidade agora é auto-reflexiva, auto-centrada, ensimesmada.

A individualização adoeceu nossas relações comunais, as enfraqueceu, como Kuiper apresenta no decorrer de sua tese, ela é uma das fontes da crise de capital moral que debilitou nossas relações. Agora, “as pessoas […] colocam as suas necessidades pessoais em primeiro plano, rompendo com padrões tradicionais de compromisso mútuo.”.[12]

Como Kuiper argumenta também nos capítulos da segunda parte de seu livro, as sociedades moderna e pós-moderna enxergam as relações sociais como contratuais e não pactuais. Não há vínculo moral que os obrigue a cumprir algo além do estabelecido contratualmente. Não há doação pelo outro. Só há a busca constante pela satisfação individual. A instrumentalização do outro para uso pessoal.

A individualização gera também uma carga quase que insuportável, como Ulrich Beck e Anthony Giddens apontam. Como comentado por Kuiper:

“O fortalecimento desse indivíduo em sua escolha por uma vida própria está centralmente. Com isso, tornam a carga para esse indivíduo de um tamanho quase que insuportável. A pressão da liberdade, a pressão em fazer a melhor escolha entre todos os mundos possíveis, tudo isso recai nos ombros do homem que precisa moldar a sua vida individual.”1[13]

Dessa forma, não bastasse a crise nos relacionamentos em comunidade, a individualização ainda gera uma crise de consciência, ao obrigar o homem a lidar com sua liberdade (como dito anteriormente) e ao afirmar que o homem nada tem além de sua liberdade para determinar seu futuro.

Aqui caímos num outro problema destes tempos: a secularização. O homem abandona (ou tenta abandonar) suas raízes religiosas. O homem verdadeiramente livre não poderia estar preso aos dogmas religiosos. A des-tradicionalização implica também num lento rompimento com a religião de forma geral e com a cristandade.

Comentando sobre o trabalho de Richard Sennett, Roel Kuiper afirma: 

“Sob influência do capitalismo e da secularização, o homem moderno se retraiu à esfera das suas próprias emoções e desejos. O capitalismo contribuiu com isso mediante a criação de um mundo duro, em que as pessoas se refugiam na esfera de família e amigos. A secularização contribuiu com isso ao não mais entender o homem como um ser transcendental. Em vez de enxergar o eu como uma ligação com uma realidade maior, massas de pessoas estão concentradas com a sua própria biografia e sentimentos particulares.”.[14]

Embora o homem pós-moderno pareça estar redescobrindo a importância da religiosidade (como parecem indicar alguns estudos mais recentes da psicologia e da sociologia), um discurso pluralista e relativista quanto à religião é parte do espírito da época. Assim, permanece uma desconexão com uma “realidade maior”.

Se Dooyeweerd estava correto em sua análise sobre as três relações centrais que dão sentido ao ego humano, aqui fica claro o porquê o homem, especialmente o pós-moderno, vive tão intensa crise de identidade. Os processos que nos trouxeram até a mentalidade pós-moderna nos afastaram de duas das três relações definidoras da identidade humana, a saber: a relação do homem com o seu próximo por meio da individualização e a relação do homem com a sua Origem por meio da secularização.

3. RESTAURANDO A IDENTIDADE

O grande problema aqui, porém, é que mesmo o conhecimento de si (o único que sobrou) independente das outras relações é manco, incompleto, ou até inexistente. De fato, como afirma Dooyeweerd, em consonância com Calvino, o autoconhecimento só é possível a partir do conhecimento e do relacionamento do homem com a sua Origem.

Mas não simplesmente do conhecimento teórico e abstrato, do estudo da filosofia religiosa ou da teologia, mas do verdadeiro encontro com a Palavra-revelação. Da operação do Espírito Santo no coração e a mudança do motivo base religioso.[15]

Para que possa reparar a sua identidade quebrada não basta ao homem (seja ele moderno, pós-moderno, ou de qualquer outro tempo) restaurar sua relação com o outro e com o transcendente (e, na realidade, questiona-se até que ponto essas relações podem de fato serem restauradas sem relacionar-se com o Deus verdadeiro). É necessário que haja uma mudança fundamental em como o homem se relaciona com a sua verdadeira Origem, com o Deus criador, revelado nas Escrituras.

É ao encontrar-se com o verdadeiro evangelho que essas três relações, que Dooyeweerd coloca como fundamentais ao ego humano, são restauradas. De fato, Cristo Jesus torna-se não só nosso mediador para com Deus Pai, mas também para com a existência e a criação, para com outros e até para com nosso próprio ego.

CONCLUSÃO

Portanto, é possível rastrear a crise de identidade do homem pós-moderno ao processo de individualização e a secularização características deste tempo e do que o antecede. Ambos ocasionam o rompimento de duas das três relações que Dooyeweerd aponta como fundamentais para a formação do ego humano, sendo assim raízes desta crise. É só por meio da restauração da relação do homem com a sua verdadeira Origem, a saber: YHWH, o Deus criador, que o homem pode encontrar sua verdadeira identidade. É quando Cristo se torna nosso mediador para com o Pai que ele se torna também nosso mediador para com os homens, com a natureza e até mesmo para com o nosso próprio ego. Desvelando, dessa forma, nossa identidade.


REFERÊNCIAS

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Trad. Francis Petra Janssen – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

NOTAS

[1] Kuiper, p. 59

[2] Mannheim (1995) apud Kuiper, p. 61.

[3] Kuiper, p. 60.

[4] Kuiper, p. 74.

[5] Kuiper, p. 91.

[6] Kuiper, 107.

[7] Kuiper, p. 104.

[8] Kuiper, 108.

[9] Kuiper, p. 105.

[10] Dooyeweerd, p. 70.

[11] Dooyeweerd, p. 232.

[12] Kuiper, p. 103.

[13] Kuiper, p. 105.

[14] Kuiper, p. 116.

[15] Dooyeweerd, 235.

1 comment

  1. Aline

    Muito bom texto! A busca autocentrada por IDENTIDADE será sempre infundada, incompleta e frustrante. Somente em Cristo encontramos resposta, propósito e verdadeira liberdade!

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