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A piedade escriturística

O cristianismo é a religião de um Livro. O cristianismo baseia-se na inexpugnável rocha da Escritura Sagrada. O ponto de partida de toda discussão doutrinária só pode ser a Bíblia. Sobre o alicerce da inspiração divina da Bíblia permanece ou cai todo o edifício da verdade cristã.
A. W. Pink


No importante livro Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos, o proeminente teólogo holandês Geerhardus Vos tratou de forma magistral acerca do progresso da Revelação Especial na história bíblica. Em determinado momento da obra, para o qual se volta também este texto, o grande teólogo de Princeton lidou com os modos de estruturação da revelação canônica, tendo como ponto de partida a própria Escritura. Longe de assumir um pressuposto arbitrário e desprovido de base bíblica, Vos foi claro ao dizer que “não ousamos impor sobre o processo divino e seu produto um esquema de qualquer fonte exterior” (VOS, 2019, p. 361). Qual a importância deste princípio?

Ela reside no caráter ontológico da revelação escriturística, em que Deus, por meio dos seus atos de fala no processo de inspiração aos autores bíblicos, confere aos escritos uma estrutura canônica intrínseca. O corpo orgânico da Escritura, assim, é referente em si mesmo, de modo que a sua pesquisa exegética reside em “uma teologia passivo-receptiva por parte daquele que se dedica ao seu estudo. A pressuposição de tal atitude é característica de toda busca verdadeiramente exegética” (VOS, 2019, p. 15). Esse princípio é muito bem endossado por Walter Kaiser Jr. e Moisés Silva, na obra Introdução à Hermenêutica Bíblica:

Uma interpretação satisfatória da Bíblia requer uma predisposição submissa. O que nos motiva a estudar a Bíblia? O desejo de sermos eruditos? Considere o alvo do salmista: “Dá-me entendimento, e guardarei a tua lei; de todo o coração a cumprirei” (Sl 119:34). Nosso Senhor disse aos judeus que ficaram confusos com seu ensinamento: “Se alguém decidir fazer a vontade de Deus, descobrirá se o meu ensino vem de Deus ou se falo por mim mesmo” (Jo 7:17, NVI). O desejo de guardar os mandamentos de Deus, a determinação de cumprir a vontade de Deus — este é o principal pré-requisito para se alcançar a verdadeira compreensão bíblica” (KAISER; SILVA, 2014, p. 25)

Um bom exemplo do que acontece quando essa atitude passivo-receptiva para com a revelação é negligenciada pode ser visto em Leopold Immanuel Rückert, teólogo liberal do século XIX. À luz do método histórico-crítico, ele argumenta no seu comentário da Epístola aos Romanos que o discurso teológico no estudo da Escritura deve ser absolutamente neutro, isto é, para se chegar às verdades do texto bíblico é necessário abrir mão de qualquer compromisso teológico, estudar o texto “como ele realmente é”:

Como exegeta. o intérprete do Novo Testamento não pode ter um sistema, seja ele dogmático, seja meramente baseado em seus sentimentos. Em sua posição de exegeta, ele não pode ser nem heterodoxo nem ortodoxo; nem supranaturalista nem racionalista; nem a favor do panteísmo nem a qualquer outro “ismo”. Ele não deve ser nem piedoso nem perverso, não deve ser nem moral nem imoral, não pode ser nem sensível nem insensível (RÜCKERT apud MADUREIRA, 2017, p. 33)

Mas seria realmente possível estudar o texto bíblico desprovido de qualquer comprometimento teológico? Haveria, de fato, a possibilidade de uma exegese laica? Como apontado anteriormente, o próprio Rückert era movido por pressupostos da crítica bíblica, sob influência de ideias iluministas. Como viria a ser demonstrado posteriormente pelo filósofo holandês Herman Dooyeweerd, não há filosofia sem compromissos pré-teóricos, independente de ser aplicada ou não á teologia. Jonas Madureira, ao comentar a posição de Rückert, diz:

Todas as vezes que deparo com esse argumento de Rückert, pergunto-me por onde andaria este teólogo que ele descreveu. E quase sempre me vem à mente aquela personagem do Star Treck, o inesquecível Spock, interpretado por Leonar Nimoy, saudando-nos com a famosa frase “Live long and prosper!” [Vida longa e próspera!] Brincadeiras à parte, esse teólogo imaginado por Rückert, que, semelhante ao capitão Stock, não se deixa levar por sentimentos e oferece apenas argumentos supostamente imparciais e baseados só em evidências, não passa de ficção. Ao contrário do que Rückert pensa, a verdadeira teologia é produzida numa atmosfera de piedade, devoção e amor. Para tanto, o teólogo precisa ser regenerado, pois apenas o regenerado pode amar a Deus sobre todas as coisas e, por isso, é capaz de conhecê-lo com profundidade (MADUREIRA, 2017, p. 34)

A defesa de uma atitude neutra para com a revelação do texto bíblico implica, ironicamente, num ato de fé. É necessário crer de antemão na capacidade do centro afetivo do ser humano, isto é, o coração (Pv 4:23), ser plenamente capaz de se abster de qualquer compromisso a priori cuja natureza é, em última instância, religiosa. Mas, como bem apontou Agostinho, logo no início de suas Confissões, o coração possui uma inquietude cujo motivo é precisamente a necessidade de um repouso referencial, do estabelecimento de um elo, um compromisso com algo externo. O coração é religioso por natureza; a questão é: Quem é o seu Senhor?


Bibliografia:

MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época. Trad. Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.

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