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A traição do teólogo público

Na confrontação central com a Palavra de Deus, o homem não tem nada para dar, mas apenas para ouvir e receber. Deus não fala a teólogos, filósofos ou cientistas, mas a pecadores perdidos em si mesmos, feitos seus filhos pela operação do Espírito Santo em seus corações.

Herman Dooyeweerd

A harpa eólica é um instrumento peculiar. Ela não é propriamente “tocada”, no sentido convencional do termo. Suas cordas, cada qual com sua espessura, são dispostas de tal maneira na estrutura que constituem uma caixa de ressonância. A harpa é colocada em um lugar aberto para ser “tocada” pelo vento. Como cada corda emite uma nota específica, o fluxo de ar vibra as cordas e faz com que a harpa produza acordes. É por isso também conhecida como harpa do vento.

Em uma de suas Stone Lectures, as assim conhecidas palestras proferidas na Universidade de Princeton, o teólogo Abraham Kuyper (1837-1920), denunciando o estado de declínio espiritual da igreja evangélica de seu tempo, falou da necessidade do sopro do Espírito Santo sobre a harpa eólica das Escrituras. Com esta metáfora ele tinha em mente o imprescindível poder vivificante de Deus no Corpo de Cristo por intermédio de Sua Palavra, viva e eficaz (Hb 4:12). Pouco mais de um século após as Stones Lectures, as palavras de Kuyper continuam atuais.

O GRANDE DEBATE: O TRAIDOR E O DESERTOR

No capítulo cinco de Inteligência Humilhada, o teólogo Jonas Madureira inicia sua reflexão discorrendo sobre o livro Os intelectuais e o poder, do escritor Norberto Bobbio, onde o autor investiga o fenômeno conhecido como a “traição dos intelectuais”, a partir do interessante debate entre pensadores como Julien Benda e Antônio Gramsci (MADUREIRA, 2017, p. 249). A ala do primeiro defendia a ideia do “intelectual puro, comprometido com os valores últimos”, enquanto a do segundo argumentava em favor do conceito de “intelectual orgânico, comprometido com o engajamento social e político” (MADUREIRA, 2017, p. 249).

Ambos os lados do debate trocaram acusações. Por um lado, Benda e seus colegas acusavam os “intelectuais orgânicos” de traição intelectual, visto que motivados “pela exigência de mudar o mundo através do engajamento político e cultural” (MADUREIRA, 2017, p. 249). Por outro lado, intelectuais orgânicos como Antônio Gramsci acusavam os “intelectuais puros” de deserção, uma vez que sua atividade, “por essência, não persegue fins práticos”, sendo motivados “pela fidelidade aos valores últimos e não temporais” (MADUREIRA, 2017, p. 250). Eis, então, a pergunta: Qual das partes estava com a razão?

Norberto Bobbio reconhece que essa não é uma questão fácil de ser respondida. Jonas traz a discussão para a teologia, respeitando as suas devidas proporções. O ofício do teólogo é inevitavelmente intelectual, e ele deve estar atento para não cometer o pecado da traição ou deserção intelectuais na sua grande comissão: “Um teólogo se torna, por um lado, um traidor não porque ele é cultural ou politicamente engajado, mas, sim, porque sua mente já não se submete à cosmovisão cristã; por outro lado, o teólogo se torna um desertor não porque meramente defende a ortodoxia com unhas e dentes, mas, sim, porque sua mente já não se submete totalmente à cosmovisão cristã” (MADUREIRA, 2017, p. 251). O ponto fundamental, portanto, não gira em torno das tentações, a traição e a deserção, mas naquilo que ambas possuem em comum: a insubmissão da mente à cosmovisão cristã.

Nesse sentido, é possível que o teólogo seja um ortodoxo traidor ou um engajado desertor da sã doutrina. Tanto na sua defesa da ortodoxia quanto no seu engajamento cultural e político ele pode ser, ironicamente, insubmisso à visão de mundo cristã. Como disse o teólogo Filipe Fontes, é possível abordar temáticas bíblicas com categorias não tão bíblicas assim, ou, como diria Nancy Pearcey no clássico Verdade Absoluta, com uma caixa de ferramentas que não pertencem às Escrituras,. O ponto que Jonas coloca é que uma mente verdadeiramente sã e cativa ao senhorio de Cristo (2Co 10:5) pressupõe um coração ferido pela Palavra. Essa expressão agostiniana revela a origem do amor que deve mover o teólogo:

O teólogo sofre ou padece por causa da Palavra. Ou seja, quando o evangelho é anunciado e o Espírito Santo testemunha esse evangelho no coração do homem, esse homem miserável padece. Ele é gravemente ferido em seu orgulho e pretensa autonomia, e agora se torna consciente de sua natureza humilhada. Contudo, essa dor ou padecimento não é para morte, mas para vida. Talvez seja como a dor do parto, uma dor que anuncia uma nova vida. (MADUREIRA, 2017, p. 253)

Uma dor que anuncia uma nova vida. Assim como a semente que morre e então germina, a ferida no coração é o que lhe concede vida. O genuíno amor por Deus não nasce de uma abstração conceitual ou mesmo de um conjunto de evidências em favor de sua existência, mas do ato regenerador do Espírito Santo no coração do pecador, conferindo-lhe uma nova vida, e testemunhando na sua consciência:

A Palavra ofende e fere o homem em sua miséria, e é essa ferida que gera o amor. Por causa dessa ferida, o discurso de negação e até mesmo de ódio vai, aos poucos, dando lugar à confissão de fé, de arrependimento e de amor. Se a Palavra não ferir o coração do homem, não há nada que ele possa fazer para reverter o quadro da sua miséria, ou dito de outra maneira, além da Palavra não há nada que seja poderoso o suficiente para fazer com que o teólogo ame a Deus acima de todas as coisas. Por outro lado, a Palavra é também o amor de Deus que transbordou e alcançou o homem em sua depravação. Nesse caso, a ferida é também um sinal desse transbordamento do amor divino, que gera, no teólogo, um desejo incansável de saber quem Deus é. (MADUREIRA, 2017, p. 254, 255)

O amor que move o teólogo é o desejo incansável de amar a Deus e torná-lo conhecido aos homens.

O CAVALO DE TROIA EVANGÉLICO

Hoje o problema na esfera pública não está tanto na disposição para o diálogo, mas na falta de antítese. Não quer dizer que o teólogo precise investir na polêmica. Como Charles Spurgeon disse certa vez aos seus alunos, “não devemos sair pelo mundo à caça de heresias, como cães terrier farejando ratos. Também não devemos confiar tanto em nossa infalibilidade, a ponto de levantarmos pelourinhos eclesiásticos para neles queimar todos os que diferem de nós, não com feixes de lenha, é certo, mas com aquele carvão de zimbro, que consiste de forte preconceito e desconfiança cruel” (SPURGEON, 2014, p. 49).

É fato que o quadro acima descrito pelo príncipe dos pregadores tem sido pedra de tropeço no empreendimento de uma teologia pública que de fato honre e glorifique a Deus. Mas hoje parece que o pêndulo está indo para o lado oposto. Uma grande tentação que tem tomado conta de mentes evangélicas, em parte como reação a um conservadorismo utópico, é a aceitação do que poderíamos chamar de o cavalo de troia do progressismo evangélico. Em um cenário de polarizações, o progressismo vindica ser a única esperança e condição de possibilidade tanto para a preservação da ortodoxia bíblica como também para um engajamento cultural e político como expressões de uma boa teologia pública.

O problema dessa mentalidade progressista, entretanto, é que ela representa o modelo perfeito de insubmissão à cosmovisão cristã. As teologias identitárias podem até abraçar pautas bíblicas, mas isso não as torna mais evangélicas do que o liberalismo teológico. Assim como o conservadorismo utópico, estão longe de ser o resultado de uma teologia cuja fonte de amor é o coração ferido pela Palavra.


REFERÊNCIAS

MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

SPURGEON, Charles H. Lições aos meus alunos, volume 1: homilética e teologia pastoral. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: PES, 2014.

4 comments

  1. Danilo

    Tragam um mito pra esse Oscar!
    Tragam um profeta pra essa revelação!
    Tragam um mundial pra esse Palmeiras!

  2. José Aurélio

    Perfeito artigo, e no meu caso providencial lê-lo..

  3. RAFAEL FAGUNDES DA SILVA

    Douglas com sua simplicidade e profundidade de sempre! Artigo maravilhoso!!

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