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Fundamentos contra a banalização do estudo bíblico

Escrito por Fernando Lemos da Silva, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021

O teólogo holandês Herman Bavinck (1854-1921), em seu livro As Maravilhas de Deus (2021), sistematizou as diferenças do conhecimento de Deus, do qual Jesus fala em Jo 17.31, dos demais conhecimentos humanos. No capítulo 2 da obra, Bavinck expôs que o conhecimento de Deus se difere dos demais conhecimentos em Origem, Objeto, Essência e Efeito (2021, p. 51-59). Dada a clareza desta sistematização peculiar, este artigo propõe utilizar categorias similares para sistematizar as diferenças fundamentais entre a atividade de leitura e apreensão do conteúdo bíblico em relação às demais leituras.

Introdução

Sabemos que estudar a Bíblia nunca foi tão fácil quanto no nosso tempo. Há poucas décadas atrás uma pessoa precisaria ter uma boa quantidade de dinheiro e um bom espaço em casa, ou morar próximo a uma biblioteca de respeito, se quisesse realmente se aprofundar no estudo bíblico. Talvez precisasse comprar alguns comentários, ou várias traduções, somente para entender melhor passagens difíceis, por exemplo. Hoje em dia, além dos sites com uma disponibilidade infindável de traduções, também é possível digitar sua dúvida e encontrar vários vídeos explicativos, das mais variadas vertentes.

O mesmo pode acontecer com qualquer assunto, seja da área de humanas, exatas ou biológicas. Podemos, em um momento, estar estudando juros compostos em um site e, no minuto seguinte, entendendo se Jefté realmente sacrificou sua filha em Juízes 10. Esta facilidade muitas vezes pode transformar o estudo bíblico em algo puramente intelectual e banal, porém, apesar do estudo do texto bíblico ser em vários sentidos semelhante às demais leituras e áreas de estudo, há algumas diferenciações fundamentais entre eles. Essas diferenciações são quanto a Origem, Objeto, Confiabilidade, Apreensão do conteúdo e Efeito.

1. A Origem

Qualquer literatura, da mais complexa à mais introdutória, sempre terá sua origem na limitada mente humana. Por mais experiente ou por mais novato que um escritor seja, qualquer diferença entre os dois será uma diferença somente de contexto, grau de instrução e de capacidade cognitiva. Podemos admirar as palavras do nosso autor favorito, decorá-las e citá-las em nossas argumentações contra uma linha de pensamento de um escritor oponente, mas, no final das contas, a proximidade entre estes dois autores, seja ontológica ou biológica, será enorme se comparado ao autor bíblico. A origem de todo conteúdo bíblico é o próprio Deus, pois cremos que a Bíblia foi inspirada por Ele (2Tm 3.16). Este autor é o mesmo que criou o homem à sua imagem, é dono de todo poder e sabedoria, acima de qualquer sabedoria humana e, portanto, é diferente em essência de qualquer outro autor que pode estar nas estantes de nossa biblioteca.

2. O objeto

Como a Bíblia possui origem no próprio Deus é também, portanto, a Palavra de Deus. Ao contrário de outros livros que possuem impressos o caráter intelectual de seres criados, expressões das suas atividades cerebrais limitadas e caídas e de sua experiência enviesada, na Bíblia vemos um ser Infinito se acomodando, por sua graça, à linguagem humana, expondo sabedorias e conhecimentos dEle mesmo. A Palavra de Deus, por ser do próprio Deus, não deve ser subestimada ou tratada sem a reverência devida ao próprio Deus (FRAME, 2013, p. 61).

3. A confiabilidade

Por ser a Palavra de Deus, que é um Deus Verdadeiro (Sl 31.5, Sl 119.160), a Bíblia também não pode errar como os demais livros o fazem. Na teologia este tópico pode ser desmembrado em outros nomes, como infalibilidade e inerrância, mas, para nosso propósito, é suficiente entender que os livros escritos por homens podem conter erros. Não devemos tomar livros filosóficos, teológicos ou científicos como regras de fé e prática, pois nenhum contém a certeza da verdade como a Palavra de Deus. Como disse certa vez o pregador batista C. H. Spurgeon (1834-1892): “Visite muitos livros bons, mas viva na Bíblia!”.

4. A apreensão do conteúdo

As formas de apreensão de outras literaturas são puramente intelectuais, cognitivas e processos mentais. Neste ponto pode ser encaixado o que Bavinck menciona em seu livro sobre o conhecimento de Deus, dado que a Palavra de Deus é parte de sua Revelação Especial. O conhecimento de qualquer outra literatura é razão de discernimento, julgamento , esforço próprio e estudo, porém o conhecimento de Deus é dado por Cristo (BAVINCK, 2021, p. 54), que viu o Pai e o revelou (p. 56), conforme está escrito nas Escrituras: “Quem vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9) e “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.” (Mt 11:27).

Desta forma, a apreensão verdadeira do ensino das Escrituras é uma atividade também espiritual, ao invés de puramente cognitiva.

5. O efeito

O efeito desse conhecimento das Escrituras também deverá ser peculiar. Uma mensagem vinda do próprio Deus, que mostre a sua verdade, e fale aos nossos corações, só pode ter também efeitos espirituais. Como lemos na Carta aos Hebreus:

“Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração.” (Hb 4.12).

A Palavra de Deus também é capaz de guiar os cristãos para toda a boa obra:

“Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2 Tm 3:16, 17).

Conclusão

O artigo buscou sistematizar pontos relativos à essência da Palavra de Deus, mostrando que o estudo bíblico deve diferir em pontos fundamentais em relação aos estudos das demais áreas de conhecimento. A banalização do acesso à Bíblia, a infinidade de cursos online de teologia e vídeos de Youtube explicando passagens difíceis ou determinados conceitos, por mais benéficos que possam ser, infelizmente muitas vezes trazem, para as mentes mais inexperientes e desatentas, o estudo bíblico para a “área comum” do conhecimento humano. Este evento é algo não aprovado pelo árduo desenvolvimento da teologia nestes dois mil anos da igreja, muito menos pela própria Bíblia, ficando aqui um alerta da necessidade de reverência e seriedade ao nos achegarmos ao texto bíblico. Como escreveu J. I. Packer: “A Sagrada Escritura deve ser vista como a pregação de Deus – Deus pregando para mim toda vez que eu leio ou ouço parte dela – Deus, o Pai, pregando Deus, o filho, no poder de Deus, o Espírito Santo” (2009, p. 93).


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Bibliografia

BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: introdução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Trad.: David Brum Soares. – 1. ed.- São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 731 p.

FRAME, John M. A doutrina da Palavra de Deus. Trad.: Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho – São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 384 p.

PACKER, J. I. Havendo Deus falado. Trad.: Neuza Batista da Silva – São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 176 p.