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Não passe sua Bíblia por uma fragmentadora de papel

Escrito por Kaiky Fernandez, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021

Se você já trabalhou em um escritório ou já assistiu alguma produção audiovisual que é ambientada em um, provavelmente já viu em ação uma fragmentadora de papel. É um objeto elétrico que serve para triturar papel, tendo como resultado várias tiras de uma ou mais folhas. Isso serve tanto para questões de segurança, evitando que importantes documentos caiam em mãos erradas, quanto para auxiliar em processos de reciclagem.

Um problema muito comum no nosso meio é que muitos de nós, intencionalmente ou não, acabamos passando nossas Bíblias por fragmentadoras de papel. Claro que não estou falando em termos literais. Mas os resultados finais são bem similares!

Quando eu digo isso, me refiro à forma comum – e até mesmo contraditória – com a qual os evangélicos normalmente lidam com as Escrituras. 

No primeiro nível, é a leitura e tentativa de interpretação de versículos isolados, sem considerar o contexto imediato. Esse é um recurso muito usado para, ainda que sem essa pretensão, distorcer o texto e forçar aplicações que não são coerentes com o todo.

No segundo nível, é a leitura de trechos maiores, mas de forma fragmentada. Geralmente, essa prática é adotada em alguns planos de leituras bíblicas que tem uma meta temporal. Então é feito um arranjo dos livros para que as leituras diárias tenham aproximadamente as mesmas porções.

No terceiro nível, que considero mais sutil e sobre o qual quero dar mais ênfase, é dissociando o Antigo Testamento, do Novo Testamento, como se fossem duas coisas distintas. Nesse sentido, o autor Michael Horton (2000, p. 20) nos alerta:

“O Antigo Testamento não é apenas a parte de nossa Bíblia que predisse a vinda de um Messias e que passou a ser irrelevante quando o Messias veio; é parte de um drama completo de redenção em curso, e começar com o Evangelho de Mateus é como começar a assistir a um filme no meio da história. É como pensar que você está contando uma boa piada quando tudo de que se lembra é o auge da mesma.”

O que o autor nos diz é que quando pensamos que o cânon bíblico é composto de dois livros diferentes, um antigo e outro novo, como se fossem duas histórias diferentes de uma mesma franquia de filmes, nós cometemos um grande erro.

O Antigo Testamento, assim como o Novo, formam um todo integrado e orgânico da revelação de Deus na história. Essa divisão, embora tradicional no nosso meio, tem uma finalidade muito mais organizacional em termos editoriais, do que necessariamente instrutiva em termos teológicos.

Geerhardus Vos (2019, p. 361), ao apresentar a estrutura da revelação no Novo Testamento, enfatiza que ela já estava indicada no Antigo Testamento, mostrando a unidade que há entre ambas: “O Antigo Testamento, por meio de sua atitude profética, postula o Novo Testamento.”

Ele continua enfatizando essa continuidade ao apresentar que a diferença não está na forma da revelação divina, ou seja, o Deus do Antigo Testamento não é um Deus diferente do Novo. É equivocado pensarmos assim, como se no primeiro houvesse um Deus vingativo, sanguinário e justiceiro, enquanto no segundo houvesse um Deus amoroso, gracioso e compassivo.

“Deve-se notar ainda que o contraste estabelecido aqui não é, em primeiro lugar, de revelação. As palavras falam de uma nova era em termos de acesso religioso a Deus. Elas não falam de um novo período de autorrevelação divina, apesar de que, é claro, está pressuposto sob a Lei geral de que o progresso na religião segue o progresso na revelação.” (Vos, 2019, p. 363)

Vos enfatiza que a mudança testamentária não está relacionada com uma nova forma de revelação da parte de Deus, como se Ele se revelasse de duas formas distintas. A mudança se encontra no acesso religioso a Deus, que agora é intermediado pela obra redentora de Cristo.

Assim, olhando para as próprias atitudes de Jesus em relação às Escrituras do Antigo Testamento, vemos mais uma vez a confirmação dessa continuidade. O Messias não apenas fez citações diretas dele ao longo dos evangelhos, como também seus ensinamentos estavam em plena conformidade.

Portanto, de igual modo deve ser nossa conduta ao lermos, interpretarmos e aplicarmos o texto bíblico. Não devemos fragmentá-lo, muito menos fazer a separação testamentária como se um tivesse expirado, e apenas o outro fosse válido para os nossos dias.

Obviamente, é claro, que existem leis e ordenanças no Antigo Testamento que eram específicas para aquele povo e naquele contexto, não se aplicando a nós hoje. Um bom estudo hermenêutico irá nos evidenciar isso.

No entanto, isso não significa que o conteúdo da revelação de Deus, ou o próprio Deus, tenha mudado! A aliança que o Senhor faz com o seu povo – com nós – é a mesma desde a queda. A mudança que existiu está na forma de administrar essa aliança, que agora é através do sangue do nosso Senhor Jesus Cristo.

Não passe sua Bíblia por uma fragmentadora de papel – seja ela física, ou a nível interpretativo. Considere a Palavra de Deus por inteiro!


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REFERÊNCIAS

HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: a ética bíblica a partir dos dez mandamentos. Tradução: Denise Meister – São Paulo: Cultura Cristã, 2000.

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. – São Paulo: Cultura Cristã, 2019.