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O anseio pela eternidade: uma análise antropológica em diálogo com as contribuições do Pregador e do Anti-Climacus

Escrito por Daniel Tolosa, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

Introdução

Eclesiastes é um escrito da literatura sapiencial presente tanto no cânon judaico quanto no cristão. O título é uma tradução grega do termo hebraico Qohelet, tradicionalmente entendido como “Pregador”. Este foi o pseudônimo utilizado por Salomão1, “filho de Davi, rei de Jerusalém”, no livro de Eclesiastes (Ec. 1.1), para assinar essa obra. O livro apresenta um monólogo sapiencial com reflexões existenciais profundas, examinando as questões da vida sob o ponto de vista de quem vive “debaixo do sol”. Tal ênfase, na fugacidade da vida e na certeza da morte, também é retórica, pois o Pregador entende que, apesar dessa realidade, a vida deve ser enxergada como uma dádiva de Deus, encontrando apenas Nele a razão para toda a existência (FEE e STUART, 2011, n.p.).

“Anti-Climacus” foi o pseudônimo cunhado por Kierkegaard, teólogo e filósofo dinamarquês do século XIX considerado o precursor do existencialismo, para assinar algumas de suas obras, dentre as quais O Desespero Humano2 ganha destaque no desenvolvimento aqui proposto: analisar as contribuições dessas duas obras para o entendimento de quem é o ser humano e a possível resposta para as grandes questões levantadas por ambas.  

O paradoxo existencial

Certa vez, disse o Pregador: “Deus fez tudo formoso no seu devido tempo. Também pôs a eternidade no coração do ser humano, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim” (Ec 3.11). Diferentemente da leitura atual, herdada em grande medida das ideias gregas, o termo “coração” apresentado acima deve significar ao leitor muito mais do que uma fonte para o pathos humano. Na mentalidade semita, “coração” indica o centro integral do ser humano, de onde fluem não só paixões e volições, mas inclusive pensamentos e ações. Essa concepção deriva de uma antropologia holística presente nas Escrituras, que se afasta de qualquer dualismo platônico, apresentando o homem como um ser integral.

Isto posto, percebe-se, nesse trecho, que, no centro de todo ser humano, reside um tipo de paradoxo existencial. Pois, ao mesmo tempo em que anseia pela eternidade, experimenta uma natureza limitada, impossibilitada de alcançar o pleno conhecimento de todas as coisas. Logo, a partir da perspectiva do Pregador, segue-se que somos criaturas com uma sede interior que não pode ser saciada por nada “debaixo do sol” (Ec. 1-11). O mesmo pode ser observado nas palavras do Anti-Climacus:

O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, […] [incapaz de] conseguir o equilíbrio e o repouso, isso não lhe é possível, na sua relação consigo próprio, senão relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação (KIERKEGAARD, 2010, p. 25, 26).

As origens de um desespero

No princípio, o ser humano viu-se inconformado justamente com suas limitações, então buscou saciar sua fome de forma autônoma, se alimentando da única árvore da qual não poderia. Adão e Eva caíram no engano de achar que aquela árvore era a verdadeira e única fonte do conhecimento que desejavam. Não entenderam aquilo que posteriormente o Pregador descreveu, que “Deus fez tudo formoso no seu devido tempo”. Logo, “no seu devido tempo”, sua sede por mais conhecimento seria saciada. O ser humano foi engodado pela mentira de que aquele ato não seria para a morte, mas sim uma possibilidade de libertação do seu eu limitado. Nesse caso, a própria manifestação do desejo de transcender as limitações de sua existência, já se configura como a primeira forma do desespero kierkegaardiano3.

A despeito de toda a realidade criacional recebida como dádiva, o foco concentrado apenas nas frustrações, impeliu o homem a deixar de manifestar gratidão ao seu Autor, culminando na desconfiança de sua bondade e veracidade. Foi assim mesmo que Deus disse? Tem certeza que essa palavra é confiável? A perda da confiança na Palavra de Deus torna-se a origem da doença mortal que o Anti-Climacus tanto salientou (2010). Tal doença parece aproximar-se da quebra do papel que a Imago Dei representa na constituição existencial do ser humano, visto que ser imagem e semelhança de Deus a principal característica antropológica presente no relato criacional.

A Imago Dei é o que habilitava o ser humano a se relacionar com toda realidade criada, pois toda sua existência derivava de sua comunhão constante com o Criador, cuja glória se deveria refletir. Assim, o homem foi criado como um ser eminentemente relacional, pois sua relação com Deus orienta a sua relação com o cosmos, com o outro e consigo mesmo. A própria noção do “eu”, para Anti-Climacus, se entende como “uma relação, que não se estabelece com qualquer outra coisa de alheia a si, mas consigo própria” (2010, p. 25). Portanto, esse rompimento com a principal relação orientadora da existência humana gerou uma natureza fragmentada e instável, desesperada por buscar uma fonte de identidade que a possa sustentar.

Essa é a natureza de Adão herdada pela humanidade, uma natureza quebrada pela desconfiança na Palavra de Deus e que procura se afastar mais, se esconder, cada vez que Ele se aproxima. A partir de então, seja na busca por conhecimento, identidade, riquezas ou poder, todo empreendimento humano está fadado a esse mesmo padrão: um ser finito inconformado com sua finitude. Toda inquietude humana, portanto, se resume à tentativa vã de alcançar a eternidade longe do único que a possui, Deus. Mas tudo isso é “vaidade e correr atrás do vento” (Ec. 1.14). Pois “este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é […], o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu do seu Autor” (KIERKEGAARD, 2010, p. 33, 34).

O novo paradigma do eu crucificado

A única forma de quebrar esse paradigma de humanidade limitada e caída seria assumindo uma nova humanidade, ou seja, “nascer de novo”4. Mas, como bem percebeu Nicodemos, é impossível para o ser humano conquistar uma nova natureza a partir de sua própria ordem natural limitada. E, quanto mais essa impossibilidade é evidenciada, mais o desespero kierkegaardiano é experimentado. Se fosse pelo menos possível retornar ao Éden para que, dessa vez, o casal original pudesse responder corretamente à serpente: nem só de [conhecimento] viverá o homem!5

Felizmente não dependemos mais de Adão (ou de uma máquina do tempo) para obter essa nova humanidade, “porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3.16). A resolução de todo esse paradigma existencial está em Jesus Cristo, e este, crucificado6. Esta é a boa notícia: no seu devido tempo7, ou melhor, na plenitude dos tempos8, eis que a eternidade está posta à mesa! A partir de um novo paradigma de humanidade, do eu crucificado, todo desespero, doença e morte são vencidos na cruz. “Não, não é por causa da ressurreição de Lázaro que essa doença não é mortal, mas por Ele existir, por Ele” (KIERKEGAARD, 2010, p. 20).

Conclusão

A redenção em Cristo é, portanto, o único escape para esse eu agonizante e angustiado com as limitações de sua existência vã. A única solução para a fugacidade da vida apontada pelo Pregador vem diretamente “de cima do sol”. Pois, todo aquele que Nele crê, é convidado a experimentar uma nova natureza e passa a viver “de toda palavra que procede da boca de Deus”9

Ademais, Jesus é a única resolução legítima para todas as formas do desespero kierkegaardiano: o desespero de não querer mais ser esse eu caído se dissipa ao assumir a nova natureza do eu crucificado; e a vontade desesperada de ser seu próprio eu, encontra alívio ao resgatar o verdadeiro sentido do eu criado, um ser em eterna relação com seu Criador. Somente em Cristo “o eu mergulha, através da sua própria transparência, até o poder que o criou” (KIERKEGAARD, 2010, p. 27).


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1 Segundo a autoria tradicionalmente aceita.

2 Título original: Sygdommen til Døden (1849). Uma tradução mais literal seria “Doença para a morte”.

3 “Não querermos ser nós próprios” (KIERKEGAARD, 2010, p. 26).

4 João 3.3

5 Mateus 4.4.

6 1Coríntios 2.2.

7 Eclesiastes 3.11.

8 Gálatas 4.4.

9 Mt 4.4.


Referências

BÍBLIA SAGRADA. Nova Almeida Atualizada Tradução de João Ferreira de Almeida. (Nova Almeida Atualizada) 3ª. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.

FEE, G. D.; STUART, D. Entendes o que lês?: um guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica. Tradução de Gordon Chown e Jonas Madureira. 3. ed. São Paulo: Vida Nova, 2011.

KIERKEGAARD, S. O desespero Humano. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Unesp, 2010.