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O conhecimento de Deus e a sabedoria para vida: um chamado ao teatro participativo

Escrito por José Bruno Pereira dos Santos, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Este artigo ocupa-se em explicar a epistemologia do senhorio e porque o conhecimento de Deus não é uma ciência, mas uma sabedoria para vida, pondo um fim à dicotomia teoria e prática ou sentido e aplicação, apresentando o drama bíblico como um chamado ao teatro participativo que nos leva à obediência e ao deleite de Deus.

1. A EPISTEMOLOGIA DO SENHORIO

John Frame¹ em seu livro “Doutrina do Conhecimento de Deus” afirma que só podemos conhecer corretamente qualquer coisa se conhecermos corretamente Deus. Segundo ele (2010, p.25), “a epistemologia teísta, a doutrina do conhecimento de Deus, implica uma epistemologia geral, uma doutrina do conhecimento de todas as coisas”. A afirmação de Frame ecoa aquilo que Calvino (2007, p.38) disse no início de sua obra magna: “o homem jamais chega a um conhecimento puro de si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, dessa visão, desça para a inspeção de si mesmo”. Mas que tipo de conhecimento é este?

A resposta pra essa pergunta depende de uma anterior: “quem é este Deus que buscamos conhecer?”. Como cristãos a resposta repousa no Deus revelado em Jesus Cristo, o qual traz consigo o testemunho das Escrituras, a nossa única regra de fé e prática. Logo não se trata de conhecimento como sendo apenas informações sobre alguma coisa. Mas algo mais profundo, pois o Deus que as Escrituras revelam é uma Trindade, ou seja, uma comunidade de pessoas que se amam, uma divindade pessoal. E a melhor forma de se conhecer uma pessoa é se relacionando com ela. Por isso que o conhecimento de Deus é um conhecimento relacional, somente numa relação com Ele pela mediação de Jesus, segundo o testemunho da sua Palavra é que podemos de fato conhecê-Lo.

De acordo com Frame (2010, p.28), todas as relações de Deus com sua criação se dá por meio de alianças. As quais não são entre partes iguais, mas distintas: Criador-criatura ou Senhor-servo. Esta alteridade como elemento da aliança divina perpassa toda a Escritura revelando um Deus transcendente, logo não se confunde com sua criação, e imanente, pois está presente nela. Na aliança Deus é o suserano e o povo da aliança os seus vassalos, a quem é dirigido seus mandamentos, suas promessas, e em quem habita.

Dessa forma o conhecimento correto sobre Deus se dá nessa relação pactual, onde “o Senhor e não nós é quem nos faz povo seu”², e nos diz como viver e vive conosco. Nesta dinâmica estão os três atributos do senhorio: controle, autoridade e presença. Daí nesta perspectiva, o conhecimento correto sobre Deus se dá em conhecê-lo como Senhor, pois este é o nome que Deus dá a si mesmo tanto na aliança mosaica quanto na nova aliança, e conhecê-Lo como Senhor é, segundo Frame (2010, p.34), conhecer seu controle, autoridade e presença.

2. OS MÚLTIPLOS CONHECIMENTOS DE DEUS

O verbo conhecer é usado em muitos textos bíblicos como uma referência ao ato sexual, porém quando usado em relação a Deus conhecer alguém geralmente significa que ele “amou” ou “agiu como amigo” (FRAME, 2010, p.63). Este é o cerne do conhecimento de Deus para o povo da aliança, pois só existe numa relação entre amigos. Porém ao falar em relacionamento como meio de conhecimento de Deus, não se trata de um subjetivismo ou de uma questão de mera experiência. Pois conforme Frame (2010, p.64):

Esta amizade pressupõe conhecimentos noutros sentidos – conhecimento de fatos acerca de Deus, conhecimento de habilidades para uma vida reta, e assim por diante. Envolve, portanto, uma resposta pactual da pessoa integral a Deus, em todas as áreas da vida, quer em obediência quer em desobediência.

O conhecimento de Deus não é uno, mas múltiplo, os quais se encontram na amizade com Ele. O que envolve a relação do crente com a Bíblia, e o que ela tem a dizer sobre Ele (a doutrina de Deus, de Cristo, do Espírito Santo), sobre nós (a doutrina do homem, da igreja, do pecado, ética etc.) e sobre a realidade que nos cerca (a doutrina dos anjos, etc.).

Esses múltiplos conhecimentos podem ser compreendidos como doutrinas, que segundo Vanhoozer (2016, p. 20) “diz respeito ao que a fé em busca de entendimento alcança quando a busca é bem-sucedida”. As doutrinas são como peças de um mosaico que juntas formam o conhecimento de Deus na vida do cristão. Quanto mais as conhecemos mais conheceremos a Deus. Não obstante é preciso compreender que a doutrina cristã não se limita a um conjunto de crenças ou de teorias da vida cristã que não contemplam a vida e prática. Esta dicotomia de acordo com Vanhoozer (2016, p.30) “é nociva para a fé cristã e para o projeto de fé em busca de entendimento”. Por isso a melhor maneira de entendermos a doutrina cristã (ou o conhecimento de Deus) é como sabedoria:

O conhecimento teológico não é meramente teórico nem instrumental; ele está relacionado mais com sapientia do que scientia. “A sapiência inclui informações corretas sobre Deus, mas enfatiza o vínculo com esse conhecimento. A sapiência é o conhecimento com vínculo emocional que liga o conhecedor ao conhecido”. A teologia envolve tanto a teoria (conhecimento) quanto prática (vida) em virtude de sua função pastoral: ajudar as pessoas a deleitar-se em Deus e glorificá-lo (VANHOOZER, 2016, p. 30).

3. O TESTE DO CONHECIMENTO DE DEUS

Até o momento foi falado sobre o conhecimento correto sobre Deus que se dá na relação pactual com Ele. Porém não se deve pensar que apenas os seus servos possuem algum conhecimento sobre Ele. Afinal, como disse Calvino (2007, p.43):

É inerente a mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento da divindade… E a idolatria é um grande exemplo dessa concepção. Sabemos como o homem não se rebaixa de bom grado de modo que coloque outras criaturas à sua frente. Por conseguinte, como o homem prefere antes cultuar um pedaço de pau e uma pedra a considerar que não há nenhum Deus, vê-se muito bem a que grau ele se deixa impressionar a respeito da divindade.

Aqueles que não fazem parte do povo da aliança possuem algum conhecimento de Deus devido ao sensu divinitatis que Deus implantou no coração humano, porém por viverem fora da aliança, na rebelião de seus pecados, em desobediência os tais possuem um conhecimento corrompido sobre Deus. Por não conhecerem bem a Deus, não conhecem bem a si mesmos e nem a realidade que os cercam. Logo, suas vidas são uma prova viva de que vivem num mundo alheio ao Deus e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Esse é o teste de que alguém conhece a Deus. Não tem a ver com um exame escrito, mas um exame da vida. Isto porque o ateísmo não se trata tanto de uma posição teórica, mas prática. A negação de Deus se vê na corrupção da vida da pessoa da mesma forma que o conhecimento de Deus (da doutrina cristã) conduz a uma vida santa (FRAME, 2010, p.60). Por isso que a doutrina (ou o conhecimento de Deus) só está presente na vida de alguém “quando a história de Jesus Cristo tem o controle significativo sobre “caminho”, “verdade” e “vida”” (VANHOOZER, 2016, p. 30).

Vanhoozer (2016, p.31-32) esclarece que “caminho” diz respeito à conduta do cristão ou seu estilo de vida, que neste caso não é mais seu, e sim de Cristo. Isto implica em viver a vida sob o controle de Deus, mas não como títeres e sim como servos, como quem por amor abriu mão de sua vontade para fazer a de Deus. A “verdade” trata da confiança em Cristo, de que Ele é a imagem visível do Deus invisível. Isto tem a ver com sua autoridade, pois só sendo quem disse ser para ter a autoridade que tem. Por último e não menos importante, a “vida” fala não da mera vida física, mas da vida espiritual, ou seja, da vida vivida na graciosa presença de Deus. Tem a ver com o relacionamento com Ele, em ser incluído em sua vida, no seio da Trindade (Vanhoozer, 2016, p. 32).

Percebe-se neste ponto o entrelaçamento daquilo que Frame chamou de atributos do senhorio com a tripla finalidade da doutrina de acordo com Vanhoozer. Disto percebe-se que o controle garante o caminho que agrada a Deus, a autoridade garante a certeza do que Deus diz, e a presença garante a vida e a comunhão com Deus.

4. A BÍBLIA E O TEATRO PARTICIPATIVO

A natureza do conhecimento de Deus não é meramente informativa, antes sua natureza é sapiencial, uma sabedoria para vida, e é por conta disto que quando se fala em conhecimento de Deus não há como pensar na dicotomia teoria e prática. Afinal o conhecimento de Deus está intrinsecamente relacionado ao conhecimento da Palavra de Deus, e não há como conhecê-la sem conhecê-Lo.

Podemos afirmar que a Bíblia é um livro divino, e isto não significa que ela possui a mesma substância de Deus como se fosse uma quarta pessoa da Trindade. Mas que ela é a autoridade da revelação de Deus, pois uma vez que só podemos conhecê-Lo se Ele se deixar conhecer, e o seu conhecimento é possível, então a Bíblia é fruto da de uma ação trinitária comunicadora, onde cada pessoa exerce um papel nesta auto-comunicação (auto-revelação): o Pai é o agente da comunicação, o Filho é o conteúdo da comunicação e o Espírito Santo é a eficácia da comunicação (VANHOOZER, 2016, p.81). O interessante é que até aqui encontramos uma relação entre a ação comunicadora da Trindade e os atributos do senhorio, pois o agente exerce controle; o conteúdo, a autoridade, e a eficácia só é possível pela presença divina.

Uma vez que a Bíblia é um livro divino, ela diz respeito ao conhecimento de Deus. Logo para conhecermos a Deus precisamos conhecê-la e obedecê-la. Pois se o conhecimento de Deus se dá numa relação pactual de alteridade, Senhor-senhor, a única forma de conhecê-Lo é obedientemente como Ele quer ser conhecido (FRAME, 2010, p.80). Neste caso o conhecimento de Deus é dramático, no sentido teatral, onde não somos meros espectadores, mas também atores, pois é isto o que acontece quando lemos e estudamos a Bíblia, somos chamados a obedecê-la, a vivenciá-la em nosso dia-a-dia, a desempenhar nossa performance no drama divino. Eis o ensino de Vanhoozer (2016, p. 95):

Conhecer a Deus é uma forma de teatro participativo, e a doutrina é o que ajuda os atores. Conhecer a Deus significa participar não apenas de qualquer drama, mas do drama certo – aquele cujo clímax é Jesus Cristo –, e por isso a igreja passou da proclamação do evangelho à formulação das doutrinas da Trindade e da encarnação.

Ora, o que Vanhoozer leciona é que o conhecimento de Deus não é teórico, mas sapiencial. Pois quando lemos a Bíblia, encontramos nela ensinos (doutrinas) sobre Deus, o que envolve as nossas vidas em todas as dimensões. No entanto Vanhoozer (2016, p. 75) afirma que “não é suficiente professar Cristo e continuar praticando a cultura secular. A assimilação intelectual é uma condição necessária, mas não suficiente para compreensão do evangelho”. Daí que não há como conhecer a Deus sem participarmos do que Deus é e do Ele está fazendo, e ambos envolvem a nossa obediência.

5. OBEDIÊNCIA COMO ENCENAÇÃO

O conhecimento de Deus é fruto da ação comunicadora da Trindade, e esta ação envolve nossa ação no mundo. Uma ação mimética, pois como filhos amados somos exortados a imitarmos o Pai³, e o fazemos porque parte da ação trinitária envolve a ação do Espírito em efetivar o que Deus nos diz em nós.

Nossa ação no mundo tem a ver com o que somos e o que fazemos. Não há como desassociá-los. Ambos dizem respeito ao discipulado e a missão cristã. Ser um discípulo e fazer missão são os dois lados de uma mesma moeda, que é a vida cristã sendo vivida. A tarefa da teologia (ou doutrina) bíblica é nos ajudar a aplicar o evangelho a situações concretas das nossas vidas (VANHOOZER, 2016, p. 75). Por “aplicação”, devemos entender a compreensão da doutrina bíblica e sua prática. Em outras palavras, aplicação deve ser entendida como encenação, pois o ator só pode encenar um papel se entendê-lo e sua compreensão o leva a desempenhá-lo. Ora, o que seria isto senão interpretação artística? Interpretar aqui une teoria e prática, entendimento e ação. Nisto consiste a sabedoria fruto do conhecimento de Deus, ou como disse Frame (2010, p. 100-101):

a pessoa não entende a Escritura, diz-nos a Escritura, a não ser que a aplique a novas situações, a situações nem sequer visualizadas no texto original (Mt. 16.3; 22.29; Lc 24.25; Jo 5.39s.; Rm 15.4; 2 Tm 3.16s.; 2 Pe 1.19-21 – no contexto). Diz a Escritura que o seu propósito geral é aplicar a verdade à nossa vida (Jo 20.31; Rm 15.4; 2 Tm 3.16s.).

6. CONCLUSÃO

O conhecimento de Deus está relacionado ao nosso florescimento como ser humano, pois ele é sabedoria para vida. À medida que crescemos no conhecimento de Deus nossa vida muda simultaneamente, afetando tanto quem somos quanto o que fazemos. Por isso que a forma como vivemos é o que de fato denunciará se conhecemos a Deus ou não. 

Tiago, irmão de Jesus, disse em sua carta que os demônios creem em Deus e estremecem (Tg 2.19). Porém diferente deles, a fé bíblica se manifesta na obediência. Assim pessoas de fé não são aquelas que discursam sobre Deus e suas crenças, mas aquelas que vivem uma vida sábia, uma vida de obediência. Aquelas cuja compreensão leva a ação. Pessoas de fé são pessoas sábias. Pessoas de fé conhecem a Deus, e por isso fazem mais do que tremer, elas o desfrutam e o imitam nas mais diversas situações da vida. Isto acontece porque a obediência é a manifestação pública da fé.

Isso demonstra que o conhecimento de Deus implica no conhecimento da Palavra de Deus, da onde provém a fé, e que não pode ser pensada sem termos Deus em mente e não podemos pensar nEle sem termos sua Palavra em mente. É da Palavra que é fruto da ação comunicadora da Trindade que extraímos a doutrina, a qual conforme Vanhoozer (2016) visa “garantir que aqueles que levam o nome de Cristo andem no caminho de Cristo. Assim, longe de ser irrelevante para a “vida”, a doutrina dá forma à vida “em Cristo”.”.


O conhecimento de Deus é em si um chamado ao teatro participativo, onde nos voltamos para as Escrituras, a fim de obter sabedoria para vivermos nossas vidas sendo e fazendo aquilo que aqueles que conhecem a Deus são e fazem: o obedecem e desfrutam de sua comunhão.

¹John M. Frame (nascido em 8 de abril de 1939 em Pittsburgh, Pennsylvania) é um filósofo cristão e teólogo Calvinista. Especialmente notado por seu trabalho em epistemologia e apologética pressuposicional, teologia sistemática e ética. 

²Salmos 100.3

³Efésios 5.1


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO. João. As Institutas da Religião Cristã (Tomo I). Trad. Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

FRAME, John M. A Doutrina do Conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.

VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da Teologia Cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016.

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