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O drama do escárnio

A peça é a coisa”. William Shaekespeare, Hamlet (segundo ato, cena 2). Essa é uma das epígrafes com que o teólogo Kevin Vanhoozer inicia sua obra O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Mas por que essa epígrafe num livro de teologia? O que Atenas tem com Jerusalém? – lembrando Tertuliano – ou, no caso, o que o palco tem com a igreja? Para Vanhoozer, o evangelho é, por natureza, teodramático. As boas-novas são comunicadas no palco da redenção. Fornecendo novas metáforas à teologia, o autor se propõe a oferecer uma abordagem bíblica da teologia cristã de forma a elucidar respostas necessárias a um dos problemas mais sérios da igreja contemporânea: a dicotomia entre a doutrina cristã e a vida real.

Certa vez, num sermão sobre a crucificação, o grande Charles Spurgeon (1834-1892) falou sobre uma pergunta que era bastante recorrente a ele: Como seria possível reconciliar a doutrina da soberania de Deus com a doutrina da responsabilidade humana? O pressuposto da pergunta era de que, embora ambas fossem verdadeiras, parecia haver uma contradição latente entre elas. Sua resposta era uma só: “Como posso reconciliar duas pessoas que sempre foram amigas?”. A ilustração era clara. Na realidade, não havia, e nem poderia existir, a menor contradição entre as duas verdades. Longe de estar na sua compatibilidade, o problema, na realidade, residia na insuficiência do entendimento humano em conseguir apreendê-las simultaneamente.

Esse é um bom exemplo de questões que acometem muitos cristãos e revelam uma maneira bipartida de compreenderem algumas verdades da fé cristã. Mas poucas dicotomias são mais problemáticas à igreja do que aquela que estabelece uma impermeabilidade entre a doutrina cristã e a vida real. Aqui, a questão já não é tanto entre uma doutrina e outra, se são compatíveis ou não, mas entre as verdades teológicas que são apreendidas das Escrituras e suas implicações na vida real daqueles que creem. A doutrina, nesse sentido, passa a ser vista mais como um acessório do que algo fundamental na vida do crente no Senhor Jesus. Acontece que, quando a igreja aceita esse pensamento, ela está contradizendo as Escrituras e abraçando o espírito do seu tempo: é a secularização da fé. Vanhoozer é claro ao dizer que “a doutrina, longe de ser um assunto de teoria abstrata, é na verdade a essência da vida real. A vida real está localizada no caminho de Jesus Cristo, e o propósito da doutrina é conduzir-nos com precisão por esse caminho” (VANHOOZER, 2016, p. 18).

No palco da redenção, não há como seguir as pisadas do nosso Senhor sem uma mente que se preocupe com a verdade (1Pe 2:21). A doutrina cristã tem implicações em todas as instâncias da vida. Se trata da “verdadeira espiritualidade”, segundo Francis Schaeffer (1912-1984), um conceito integrado da totalidade da vida: “O cristianismo bíblico é a Verdade concernente à realidade total; é a propriedade intelectual dessa verdade total, e então vive segundo essa Verdade” (SCHAEFFER apud PEARCEY, 2017, p. 6). Um bom exemplo disso pode ser visto no clássico Santidade, do piedoso John Charles Ryle (1816-1900), ao discorrer sobre a importância da doutrina da santidade na vida cristã. Certamente essa doutrina não se trata de algo abstrato e distante, mas tem tudo a ver com a vida real de todo cristão:

A verdadeira santidade, jamais devemos esquecer, não consiste meramente em sensações e impressões internas. Ela envolve muito mais do que lágrimas, suspiros e demonstração física, um pulso acelerado e um apego apaixonado aos nossos pregadores favoritos, ou ao nosso grupo religioso, ou, ainda, uma prontidão para debater com qualquer pessoa que não concorde conosco. Antes, ela é algo da “imagem de Cristo”, que pode ser visto e observado por outras pessoas em nossa vida particular, em nossos hábitos, em nosso caráter e em nossas ações. (RYLE, 2016, p. 17)

Uma das maiores tristezas que a igreja pode ter é quando ela se torna motivo de escárnio não pelas verdades que acredita, mas pela incoerência manifesta da dicotomia entre doutrina e vida real, entre as verdades que declara amar e a falta de correspondência desse amor na vida diária dos que afirmam crer nessas verdades. Como duas amigas, elas jamais deveriam precisar serem reconciliadas. O que Atenas tem com Jerusalém? O que a doutrina cristã tem com a vida real? “A doutrina cristã nos orienta no caminho da verdade e da vida e, portanto, é nada menos do que uma receita para a realidade” (VANHOOZER, 2016, p. 12). A doutrina cristã é o solo firme no qual o cristão pode caminhar num mundo líquido.


Referências bibliográficas:

VANHOOZER, K. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016

RYLE, J. C. Santidade: sem a qual ninguém verá o Senhor. Trad. João Bentes & Waleria Coicev. São José dos Campos, SP. Fiel, 2016.

PEARCEY, N. R. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Trad. Luis Aron. CPAD, 2017.

3 comments

  1. Cleiton Silva

    “O que você faz na vida secular?”. Esta é uma das frases típicas que ouvimos. Parece-nos que Deus fica somente na igreja (estrutura física) ou dentro de nossos lares e quando saimos para a vida diária – diga-se, “mundo”, temos que esboçar outro papel, como se tivéssemos que ter duas posturas distintas. O que tenho aprendido biblicamente é que onde estivermos, a imagem de Cristo tem que resplandecer em nosso rosto.
    Ainda mais em dias de muita relatividade e pragmatismo.
    Manter-se fiel às Escrituras sem ser corrompido por estas filosofias humanistas, é um desafio e uma linha tênue, se não vigiarmos.
    Quem ousaria dizer em dias atuais: “Sede meus imitadores, como sou de Cristo?”. 1 Coríntios 11.1. Vale refletir…

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