fbpx

O esvaziamento metafísico nas artes e a filosofia de Guilherme Ockham

Escrito por Marcio Antônio Lima Junior, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

Guilherme de Ockham é considerado o escolástico mais importante depois de Santo Tomás. Foi um frade da Ordem Franciscana, pupilo e depois rival de Duns Escoto. Uma de suas principais contribuições filosóficas está atrelada à questão dos entes, que ficou conhecida como a navalha de Ockham. Para ele, “os entes não devem ser multiplicados além da necessidade”. Bertrand Russell nos explica que, para Ockham, “se numa ciência tudo puder ser interpretado sem pressupormos este ou aquele ente hipotético, não há razão para pressupô-lo” (RUSSELL, 2015, p. 206). Para Ockham, Aristóteles teria sido interpretado, principalmente por Duns Escoto, de forma excessivamente metafísica. Isso fez com que tanto a lógica quanto a teoria do conhecimento, ficassem dependentes da metafísica e da teologia. Aqui existe um princípio importante do pensamento de Ockham, que via essa dependência como inútil. O filósofo então trabalha para desvincular a filosofia da teologia, bem como da natureza da graça. Neste ensaio, propomos uma reflexão sobre a filosofia de Guilherme Ockham à luz das questões estéticas e seu reflexo para o pensamento e produção artística. Nos perguntamos: Quais as consequências do programa de esvaziamento metafísico de Ockham para as teorias estéticas? O que as teorias estéticas de orientação cristã poderiam dizer sobre o assunto? Essas são algumas das reflexões que propomos responder neste ensaio.

O mundo natural como ele é: uma visão occamista

Para Guilherme de Ockham, há uma diferença entre a alma sensitiva e a alma intelectiva. Embora tenha dificuldades em demonstrar tal diferença, declara que as sensações se encontram subjetivamente na alma sensitiva, mas não de igual maneira na intelectiva. Para ele, a alma sensitiva é extensa e material, diferentemente da intelectiva. Percebe-se em Ockham uma passagem da ontologia da essência para uma ontologia da existência. Há aqui uma crítica a visão das essências do platonismo, pois para Ockham não existe mais força de coesão do ser, da existência não tiramos o dever-ser e das causas não tiramos as essências. Tal perspectiva filosófica faz com que a realidade seja vista com ceticismo.

É importante dizer que o filósofo concebe o mundo como um conjunto de elementos individuais, sem qualquer ligação verdadeira entre eles e que não são mais ordenáveis em termos de natureza ou de essência. O cosmo platônico e aristotélico ordenado, cede lugar a um universo fragmentado em muitos indivíduos isolados. O mundo é essencialmente contingente, criado pela absoluta liberdade de Deus. Por isso, não é possível partir do pressuposto de que o mundo esteja estruturado segundo relações necessárias possíveis de serem conhecidas mediante processo metafísico. Ockham abre mão da pressuposição cristã de ordenamento e junção dos particulares por Deus, entendimento que demonstra que a vontade criacional de Deus dá coesão à realidade. Para este mundo opaco, sem transcendência de Ockham, a realidade é um conjunto de elementos individuais, sem qualquer ligação verdadeira, que não são mais ordenáveis em termos de natureza ou essência. A filosofia de Guilherme de Ockham caminha para uma visão secularizada, mecanicista e materialista da realidade. Cada vez o conhecimento passa a ser fiel ao concreto, à rejeição de hipostatização de tipo metafísico. As consequências últimas dessa tese occamista é a separação radical entre razão e fé, da ordem espiritual e a ordem criacional, o que acaba acarretando sobretudo o primado do indivíduo sobre qualquer forma universal. E é nesse aspecto que gostaríamos de refletir sobre algumas implicações dessa filosofia para o campo artístico.

Novas categorias estéticas: o ataque ao belo metafísico

A tese de Guilherme de Ockham, baseada na absoluta contingência das coisas criadas, “dissolve o conceito de um estável ordo do cosmo ao qual as coisas se adaptam, ao qual aspiram nossas disposições psicológicas, no qual possa inspirar-se o artifex.” (ECO, 2020, p. 195). A noção de que haja uma forma organizante e de princípio racional que é distinto de suas partes que, todavia, as formam, acaba desaparecendo. Essa perspectiva filosófica traz consequências para o campo artístico, pois a ideia de proporção, tão cara aos escolásticos tomistas, fica empobrecida. Até mesmo a realidade dos universais dissolve-se no nominalismo de Ockham. Por isso, colocar o problema de uma transcendentalidade do belo e das distinções que o especificam “é duvidoso quando não existem mais distinções formais nem virtuais “(…) A própria ideia com a qual o artista cria é um exemplar singular das coisas que ele quer fazer, não a ideia de sua forma universal.” (ECO, 2020, p. 196). Essa nova perspectiva filosófica que certamente abre caminhos diversos para a ciência e sua investigação, consequentemente tornaria necessária a elaboração de novas categorias estéticas diferentes das conhecidas durante o período medieval. Nesse mundo composto pela singularidade, a beleza estética torna-se a singularidade da imagem criada pelo engenho do artista. O belo, até então associado ao metafísico, é dissolvido, acarretando numa estética em que o homem não mais contempla uma ordem estabelecida e um mundo de significados definidos. O homem se descobre livre para criar seus próprios significados e se entende como único criador.

Uma perspectiva cristã sobre as artes e a filosofia de Ockham

A filosofia de Guilherme de Ockham contribuiu para o desenvolvimento do que conhecemos hoje por Modernidade. Na perspectiva estética, James Smith nos aponta que havia um imaginário encantado no mundo pré-moderno, “no qual todos os tipos de coisas inumanas significavam — estavam carregadas e eletrizadas de sentido.” (SMITH, 2021, p. 57) Em sua investigação sobre a secularização, Charles Taylor, nos diz que, nesse mundo sem significado, “desencantado e des-carregado de transcendência, somos então livres para reordená-lo conforme nos pareça melhor.” (TAYLOR apud Smith, 2021, p. 71). E me parece que, neste aspecto, a perda da metafísica e transcendência das coisas, que vemos na filosofia de Guilherme de Ockham, bem como na Modernidade, traz como consequência a perda de causalidade final.  Resultando no obscurecimento de qualquer teleologia, quer para a natureza como para as demais coisas. Como vimos, a ontologia occamista coloca que a compreensão não depende de sua essência e consequentemente nem de seu telos. Esse mundo da física distante da metafísica apresenta um universo mecanicista de causalidade eficiente. E o que essa perspectiva filosófica diz sobre as questões artísticas? Entendemos que nesse mundo desencantado de Ockham as artes não são mais parte de um cosmos ordenado e nem trazem perspectivas metafísicas, são unicamente objetos criados pela invenção humana e materialidade. No entanto, reconhecemos um desconforto com essa perspectiva materialista da realidade e consequentemente das artes, que estabelece um reducionismo insuportável. Um conceito importante relacionado ao campo artístico e essa falta da metafísica, é apresentado por Charles Taylor, o qual ele chama de “plenitude”. Essa expressão significa “uma metáfora funcional para designar um ‘algo mais’, que exerce pressão cruzada sobre nós”. (SMITH, 2021, p. 166). A plenitude, como nos coloca Smith, não é uma senha para Deus, mas uma demonstração de que existe certa grandeza e sentido de plenitude para a vida humana. Nesse aspecto, essa grandeza pode ser apontada pela arte, que é um meio privilegiado de referência ao transcendente. Pois, segundo Taylor, uma ontologia que exclui o transcendente, embora possa conceber significado as artes, é incapaz de explicar a força e certa aura de plenitude conferida pelas obras de arte. Um descrente precisará encontrar um registro não teísta para responder e não empobrecer tal experiência. Essa leitura de que a arte pode ser referência a transcendência também é vista na tradição cristã. Poderíamos desenvolver diversas perspectivas elaboradas ao longo da história do cristianismo, mas vamos nos ater a perspectiva calvinista de Abraham Kuyper.

Para esse autor, a arte pode manter viva muitas das altas aspirações da alma, sendo o belo e o sublime em seu significado eterno, um dos mais ricos dons de Deus para a humanidade. (KUYPER, 2019, p.151) Embora reconheça que religião e arte possuam suas próprias esferas de atuação, Kuyper diz que:

“não é concebível nenhuma unidade na revelação de arte, exceto pela inspiração artística por uma beleza eterna que flui da fonte do Infinito. Por isso, nenhum estilo característico de arte todo-abrangente pode surgir exceto como consequência do impulso peculiar do Infinito que opera em nosso ser interior. E visto que este é o próprio privilégio da religião, acima do intelecto, da moralidade e da arte, que somente ela produz a comunhão com o Infinito em nossa autoconsciência, a chamada para um estilo de arte secular, todo-abrangente, independente de qualquer princípio religioso, é simplesmente absurda.” (KUYPER, 2019, p. 158)

Tal visão de Kuyper é derivada de uma compreensão das obras do próprio João Calvino, para o qual a arte não é simples imitação da natureza, mas lhe é atribuída:

“à nobre vocação de desvendar para o homem uma realidade mais alta do que oferecida a nós pelo mundo pecaminoso e corrupto (…) [por isso] a vocação da arte é, não simplesmente observar cada coisa visível e audível, a fim de apreendê-la e reproduzi-la artisticamente, mas muito mais descobrir naquelas formas naturais a ordem da beleza, e enriquecido por este conhecimento superior, produzir uma beleza mundial que transcende a beleza da natureza.” (KUYPER, 2019, p. 162)

Conclusão

Entendemos que o programa de esvaziamento metafísico de Ockham tem consequências profundas para a Modernidade. Do ponto de vista das teorias estéticas, uma nova compreensão das artes precisou surgir para dar conta dessa remoção do sagrado enquanto presença no mundo. Veremos sinais dessa perspectiva estética no Maneirismo do século XVI, e consequentemente no mundo contemporâneo. Tal esvaziamento metafísico, contribuiu para a expansão de uma estrutura imanente. No entanto, tal estrutura é assombrada por vislumbres de transcendência, sendo o domínio estético um campo privilegiado de fratura dessa realidade. Num mundo ameaçado pelo reducionismo do materialismo e do racionalismo, o coração humano vai buscar em seu instinto artístico um antídoto contra este processo de imanentização. Oxalá perceba que o mundo dos sons, formas, cores e ideias poéticas não pode ter outra fonte senão Deus.


Quer entender mais sobre teologia e filosofia?


Referências bibliográficas

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Tradução de Mario Sabino Filho. Rio de Janeiro, Record, 2020.

KUYPER, Abraham. Calvinismo. Tradução de Ricardo. Gouvêa e Paulo Arantes. São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2019.

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental: a filosofia católica. Tradução de Hugo Langone. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2015.

SMITH, James K. Como (não) ser secular: lendo Charles Taylor. Brasília, Editora Monergismo, 2021.