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O evangelho precisa de defesa? Compreendendo o papel da apologética cristã

Este mundo é como um ateliê de um grande escultor. Nós somos as estátuas, e por aí corre o boato de que alguns de nós, um dia, ganharão a vida.

C. S. Lewis

A letra mata, mas o Espírito vivifica. Ninguém vem a Cristo por meio de argumentos. Desde quando Cristo precisa de um advogado? Afirmações como essas podem soar familiares a alguns leitores. Talvez já tenha ouvido em algum lugar ou mesmo dito alguma ou coisa do tipo. Não raro a apologética tem sido vista como um empreendimento perigoso e até mesmo antibíblico. Isso se deve em parte por uma dificuldade honesta que irmãos possuem ao tentar compreender sua relação com as Escrituras, e em parte devido à própria falta de coerência da parte daqueles que se propõem a fazer uma defesa racional da fé, isto é, a carência de um testemunho pessoal que corresponda às verdades que afirmam tanto crer e defender.

Há, portanto, alguma razoabilidade do ponto de vista bíblico numa apologética cristã? Se a resposta for sim, qual é precisamente o seu lugar na vida cristã? Se faz necessário, pois, averiguar, ainda que brevemente, as raízes históricas do debate acerta da legitimidade de uma defesa racional da fé, se existem ou não razões bíblicas para tal empreendimento, além de sua relação com o testemunho cristão.

Um breve itinerário histórico: Tertuliano, Justino Mártir e a apologética cristã na igreja primitiva

Pode ser motivo de surpresa a muitos leitores, mas desde o seu início a história da igreja, e particularmente, da teologia cristã, sempre teve uma relação com a filosofia, para mal ou para bem. Foi movido por essa relação de amor e ódio que Tertuliano (c. de 160 – c. 220 d.C.), um dos grandes pais da igreja, cunhou aquela que talvez seja a sua frase mais conhecida: “O que Atenas tem realmente a ver com Jerusalém? Que concordância existe entre a Academia [Platônica] e a Igreja?” (2001, p. 55). O seu ponto era a defesa da suficiência das Escrituras e a incompatibilidade que ele entendia existir entre os pressupostos bíblicos e os da filosofia grega.

Nas palavras de Roger Olson, o contexto histórico deste debate pode ser colocado da seguinte maneira: “Um fenda que divide toda a teologia cristã desde o início é a que existe entre os pensadores cristãos que querem enfrentar seus críticos no próprio terreno deles e debater a fé de forma coerente e mesmo filosófica e os que consideram esse esforço uma acomodação perigosa aos inimigos da fé. Tertuliano representa essa última abordagem.” (2001, p. 55). Os chamados apologistas cristãos acreditavam que era possível a primeira abordagem, mas sem com isso comprometer as verdades bíblicas. Lançavam mão do lema “toda verdade é verdade de Deus” e que por isso poderiam estabelecer pontos de contato com os incrédulos na defesa da fé contra os pensadores pagãos. Um desses apologistas foi Justino Mártir (c. 100 – c. de 165 d.C.).

Descrito pelo historiador Eusébio de Cesareia (c. 265 – c. 340 d.C.) como um “autêntico amante da verdadeira filosofia, e que se exercitara nas obras dos gregos” (2000, p. 180) Justino foi reputado como o maior apologista cristão da igreja primitiva. Nascido numa família grega na região da Palestina, Justino foi um filósofo platônico antes da sua conversão ao cristianismo. Olson comenta que “fica claro ao ler os escritos de Justino que ele se considerava um filósofo cristão — assim como fora um filósofo de Platão. É evidente, também,  que considerava os dois compatíveis em muitos aspectos. Referia-se a Sócrates, mestre de Platão, como um ‘cristão antes de Cristo’” (2000, p. 60). É bastante provável que Tertuliano estivesse se dirigindo a Justino Mártir na sua famosa frase.

Um dos pressupostos que fundamentaram o empreendimento dos apologistas cristãos da igreja primitiva como Justino Mártir, Melitão de Sardes e Atenágoras de Atenas foi o de que a filosofia grega estava para os gregos assim como o Antigo Testamento estava para os judeus, influenciados pelo pensamento de Filo de Alexandria (c 20 a.C. – c. 50 d.C,) que defendia haver muitas similaridades entre o deus da filosofia grega e o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Nisso residiu em grande parte a crítica de Tertuliano.

A despeito do debate na patrística acerca da legitimidade de uma defesa racional da fé cristã e a relação entre esta e a filosofia, particularmente a grega, algo que se pode afirmar com justiça em relação aos primeiros apologistas cristãos é que “todos, individualmente e juntos, moldaram a história do cristianismo sobretudo ao impedirem que a forte crítica não relegasse o cristianismo a uma existência marginal, a ser apenas mais uma religião de mistério Eles contribuíram para transformar o pensamento cristão em uma teologia propriamente dita: uma análise e apologia racional e coerente da mensagem cristã” (2001, p. 59).

Se deve a eles, pois, o que se pode considerar como uma primeira tentativa oficial de escritores cristãos na história da igreja de empreender um tipo do que se poderia chamar de teologia pública, na tentativa, ainda que dentro de certas proporções, de demonstrar as implicações e relevância da fé não somente para a igreja, mas á sociedade como um todo.

Considerando a questão: a apologética faz sentido, biblicamente falando?

Existem, assim, razões bíblicas para uma defesa racional da fé? O texto bíblico geralmente usado como justificativa para a apologética é o de 1 Pedro 3:15, onde o apóstolo Pedro instou os irmãos a estarem “sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós”. Faz sentido essa interpretação? Será que Cristo e o evangelho realmente precisam ser defendidos? Isso não contradiz as Escrituras? São perguntas honestas e merecem a devida atenção.

O renomado filósofo e apologista cristão William Lane Craig acredita que sim, o cristão possui razões bíblicas para uma defesa racional da sua fé, uma vez que Jesus e os apóstolos deram preciosos exemplos disso. Em primeiro lugar, “Jesus apelava para milagres e cumprimento das profecias para provar que suas alegações eram verdadeiras (Lc 24:25-27; Jo 14:11)” (2011, p. 15). O primeiro texto diz respeito ao marcante encontro do Senhor ressurreto com os discípulos de Emaús. Conversando com eles sobre os últimos acontecimentos, da crucificação, e sendo do agrado da Sua providência não se fazer conhecido a eles até aquele momento, o Senhor começou a ensinar-lhes sobre “o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lc 24:27).

Em segundo lugar, os apóstolos, ao se dirigirem às audiências judaica e gentílica, “apelavam para o cumprimento das profecias, para os milagres de Jesus e especialmente para a ressurreição a fim de provar que Jesus era o Messias” (2011, p. 15). Craig usa o exemplo da passagem de Atos 2, no discurso do apóstolo Pedro, no dia de Pentecostes, e o discurso do apóstolo Paulo, em Atos 14. Conquanto entenda serem estes bons exemplos que atestam a razoabilidade de uma apologética cristã tanto como defesa da fé como também uma ferramenta importante na própria pregação do evangelho, Craig é taxativo ao afirmar que “isso não quer dizer que eles não confiavam no Espírito Santo para trazer pessoas a Cristo. Antes, confiavam que o Espírito Santo usava os argumentos e evidências deles para fazer isso” (2011, p 16).

Esse é um ponto importante e não pode ser esquecido. O bom apologista, seja ele mais evidencialista (com atenção especial às evidências) ou pressuposicionalista (se voltando para os pressupostos por trás dos argumentos), deve sempre levar em conta o papel insubstituível do Espírito Santo no convencimento do homem acerca “do pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16:8). A apologética é, portanto, um dos instrumentos nas mãos do Senhor que poder ser usado por Ele para alcançar pecadores. O cristão, principalmente o jovem que acabou de conhecer o universo dos debates sobre a veracidade da fé cristã, precisa ter em mente que jamais um pecador foi regenerado por mera adesão intelectual: “Não te maravilhes de eu te dizer: necessário vos é nascer de novo” (Jo 3:7).

A importância do testemunho fiel: o compromisso do coração

Se por um lado, há razões bíblicas para se pensar no valor da apologética, o testemunho pessoal do cristão é imprescindível para que ela faça sentido, sob pena de tornar as verdades de Deus em motivo de escárnio justamente àqueles que deveriam ser alcançados por elas. Sobre isso, Craig foi muito preciso ao dizer que “quando a apologética é apresentada de forma convincente e, com sensibilidade, combinada à apresentação do evangelho e a um testemunho pessoal, o Espírito de Deus fica feliz em usá-la para trazer pessoas a Cristo” (2011, p. 26). Não foi sem razão que o apóstolo Pedro, em sua epístola. instou os irmãos, em primeiro lugar, a santificar Cristo em seus corações, tendo isso como algo fundamental para que pudessem, assim, responder sempre com mansidão e temor aos seus inquiridores (1Pe 3:15).

É perfeitamente possível, pois, alguém estar munido dos melhores argumentos em favor de sua fé e ainda assim contradizê-la pela falta de correspondência das suas ações para com as verdades que afirma defender. O cristão deve, assim, sempre trazer na consciência que a boa apologética não depende apenas de bons argumentos, mas de um testemunho pessoal que expresse fidelidade e amor a Cristo não apenas intelectualmente, mas sobretudo, a partir de um compromisso do coração regenerado.


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Referências

Bíblia de Referência Thompson: com versículos em cadeia temática; Antigo e Novo Testamentos. Compilado e redigido por Frank Charles Thompson. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Vida, 2010.

CRAIG, William L. Em guarda: defenda a fé com razão e precisão. Trad. Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2011.

EUSÉBIO, Bispo de Cesareia. História eclesiástica. Trad. Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000. Coleção Patrística.

OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida, 2001.

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