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Tradutores de Deus: presença cristã na esfera pública

Escrito por Matheus Henrique Oliveira Gouvêa, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

O número de cristãos na política brasileira é crescente. Porém como atuar de uma maneira que não faça com que a esfera religiosa interfira na pública?

Como não repetir o movimento que aconteceu na Europa, principalmente na Holanda, onde toda a influência da teologia cristã kuyperiana foi rapidamente esvaziada? 

Nesse texto será discutido como o cristão deve atuar hoje na política de maneira fiel e ativa ultrapassando a posição do politicamente correto.

1. FÉ CRISTÃ NA ARENA PÚBLICA

A igreja cristã tem um quê de subversão desde quando proclamou através do apóstolo Paulo que não havia mais judeu nem grego, escravo ou livre, homem nem mulher, mas que todos são um em Cristo. Estava sendo oferecida uma nova sociabilidade diferente da que vinha da pólis, agora distribuída verticalmente reafirmando uma abrangência plural e universal que causaram modificações irrevogáveis na estrutura de discussões políticas (DULCI, 2018).

O resultado dessa comunidade que surgia foi uma transformação da política em algo geral, ou seja, a sociedade civil passava pela mudança de assuntos da esfera privada em temas de primeira importância para a esfera pública. É introduzido um novo jogo na cidade além da política terrena; disputa-se o coração dos homens entra a cidade dos homens e a cidade de Deus (DULCI, 2018).

Na sua obra Fé Cristã e Ação Política, Pedro Dulci aborda como a teologia reformacional das esferas de soberania não compartimentaliza a vida ordinária apesar de cada uma possuir suas próprias leis e independência; a esfera jurídica e a religiosa não são limitadas ao espaço público e vida privada, respectivamente: os cristãos não vivem em dois reinos diferentes.

Segundo Miroslav Volf, citado por Dulci (2018, p.30),

[…] o público é uma dimensão ou aspecto da vida humana, aquele que envolve questões e instituições relativas ao bem de todos, o bem comum. O público é a vida vista como a “vida em comunhão” na sociedade. Correspondentemente, a fé pública é a fé preocupada com a modelagem responsável da nossa vida comum e do nosso mundo comum.

Trata-se de uma militância eclesiológica em que “colaboramos em uma vida comum na medida em que encontramos bens a serem perseguidos em comum; e estabelecemos instituições, sistemas e ritmos que reforçam a busca desses bens” (DULCI, 2018, pág. 33).

Superada essa dicotomia entre público e privado, se abrem os espaços para a participação pública dos discípulos de Cristo na política como produtores de capital moral, produtores de bens.

2. OLHANDO A HISTÓRIA

Abraham Kuyper foi um cristão que reconheceu fortemente o Senhorio de Cristo e submeteu sua vida por completo a este senhorio. Mas não só sua vida privada, porém todas as áreas da atividade humana e todo o cosmo.

Com uma carreira frutífera, seu objetivo não era estabelecer uma teocracia na Holanda, seu país, mas garantir um lugar na esfera pública que fosse uma presença fiel. O fruto do seu trabalho foi visto em todo o país pelo menos por um período.

Em menos de um século, relata David Koyzis no seu texto When the Turn Inward, traduzido por Jonathan Silveira, a comunidade cristã que outrora produzira heróis na Segunda Guerra que atuaram em igrejas e escolas desafiando e resistindo à ocupação nazista foram fundidas numa igreja mais genérica. O que se vê no país berço do kuyperianismo é a proliferação de sex shops, decadência sexual e moral resultantes de um pensamento permissivo na expressão sexual, uso de drogas e práticas como eutanásia. 

O grande desafio para teólogos e cientistas políticos-religiosos é definir o que causou tamanha queda de um país recentemente influenciado por uma teologia pública da soberania de esferas.

O primeiro motivo a ser apontado foi a prosperidade pós-guerra juntamente com uma exaltação espiritual-religiosa que causaram um estilo de vida niilista. Essa sequência de fatos culminou na sobreposição de forças secularizadoras sobre uma cultura tradicionalista – batalha travada por quase dois séculos.

Entretanto, Koyzis aponta que uma convivência pacífica de Kuyper com as forças seculares no início do século XX mais a falta do esforço evangelístico dos seus seguidores na esfera pública não fora suficiente para evitar a diminuição dos números de membros da igreja cristã. 

A partir de 1917 foi utilizado na Holanda o que veio a se chamar de consociativismo que é a polarização política para que subculturas mutuamente hostis possam existir de forma representativa e pacífica. A partilha de poder se dá apenas na elite de cada grupo, portanto nas suas bases cada uma produz suas instituições próprias como igrejas, sindicatos, escolas, hospitais, associações e etc. 

“Uma comunidade religiosa focada apenas em sua própria sobrevivência em um ambiente hostil já pode ter perdido a batalha”, traduz Jonathan Silveira do texto do Koyzis. A presença cristã pública não pode ser um mero cessar-fogo, nada pode substituir o mandamento de pregar o Evangelho.

3. TRADUTORES CULTURAIS

O papel do cristão na arena pública é produzir bens para toda a sociedade, porém será um trabalho fruto de um coração compromissado em amar a Deus. 

Os diferentes tipos de bens produzidos variam de acordo com as muitas esferas da vida e eles precisam ser distribuídos na sociedade de maneira justa. Essa distribuição é feita através de políticas públicas numa dinâmica de “igualdade complexa” (DULCI, 2018). 

Essa multiplicidade de bens e métodos está presente no cotidiano nas mais diversas instituições, porém cada uma deve atuar de acordo com as regras que Deus estabeleceu para cada e, quando isso não acontece, produz-se injustiças sociais.

É nesse ponto que o cristão deve ter atenção. A vida de Cristo deve se manifestar através de sua vida nas mais diversas esferas sem portanto haver essa interferência da esfera religiosa em qualquer outra, ou seja, seu dever é traduzir o Evangelho na cultura local.

Na obra O Drama da Doutrina, Kevin Vanhoozer afirma que “a identidade da igreja está ligada à sua missão não apenas de preservar o evangelho, mas de transmiti-lo aos povos de todas as culturas”, ou seja, o erro dos discípulos de Kuyper foi ter quisto simplesmente preservar o evangelho e abrir mão do evangelismo, da transmissão a todos os povos (VANHOOZER, 2016, pág. 145).

Traduzir o Evangelho é estar vivendo o drama da redenção interpretando-o de acordo com o seu roteiro em cada nova situação. O apóstolo Paulo traduziu as boas novas para o mundo gentio e helenístico.

Esse processo de tradução envolve uma constância que preserva nosso entendimento do original – às vezes até desenvolve; por outro lado, a tradução também envolve criatividade que vai além de levar o mesmo conteúdo para todos. A encarnação de Cristo é Deus traduzindo sua Palavra aos homens de uma nova maneira, em suma, traduzir o Evangelho na arena pública é comunicar com fidelidade criativa.

CONCLUSÃO

A fé cristã deve evitar o espírito babélico de querer impor uma única língua, único vocabulário, uma única cultura particular. Ao contrário, o cristão deve se aproximar da fala comum do povo, da sua cultura. O processo de tradução deve privilegiar termos, conceitos e costumes nativos do público, fazendo-se compreendido por ele (VANHOOZER, 2016).

Ao chegar à conclusão do seu livro, Pedro Dulci alerta que “o verdadeiro diálogo na esfera pública é aquele que não ignora a antítese dos corações humanos” (DULCI, 2018, pág. 191).

A fé cristã na esfera pública deve se manifestar traduzindo o Evangelho confiando de que as antíteses e idolatrias dos corações serão tratadas pelo Espírito de Deus.


REFERÊNCIAS

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.

DULCI, Pedro Lucas. Fé cristã e ação política: a relevância da espiritualidade cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2018. 

KOYZIS, David. Quando nos retraímos: evangelismo e os limites do pluralismo. Trad. Jonathan Silveira. Tuporém. Disponível em: <https://tuporem.org.br/quando-nos-retraimos-evangelismo-e-os-limites-do-pluralismo-parte-2/>


















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