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Polanyi e Peirce – o Método Crítico

Por Dr. David W. Agler

Traduzido do inglês por João Luiz Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica, Invisible College, Turma 2021

Preparação e revisão: Douglas Quintiliano


Observações prévias

O artigo foi traduzido e publicado com a permissão do autor, Dr. David W. Agler, bem como pela “Tradition and Discovery: the Polanyi Society Journal”, que gentilmente, na pessoa do Dr. Paul Lewis, professor do departamento de Religião na Mercer University, nos encorajou neste trabalho.

O artigo original em inglês foi publicado na Tradition and Discovery vol. 38, nº 3 (2011-2012).

Link de acesso: http://polanyisociety.org/TAD%20WEB%20ARCHIVE/TAD38-3/TAD38-3-basic-pg.htm

As “notas finais” (endnotes) foram organizadas em notas de rodapé, para facilitar a visualização e a leitura.


RESUMO: Este ensaio aponta para as críticas feitas por Charles Peirce e Michael Polanyi contra o “método crítico”, ou, “método da dúvida”. Num primeiro conjunto de ensaios (1868-1869), bem como num trabalho posterior, Peirce alegou que o método cartesiano da dúvida é tanto filosoficamente fracassado quanto inútil,  porque os adeptos do método não o aplicam sobre os seus próprios critérios. Do mesmo modo, no seu ensaio de 1952, “The Stability of Beliefs”, e também no “Personal Knowledge”, Polanyi acusa os adeptos do método crítico de não serem rigorosos o suficiente na sua aplicação. Polanyi argumenta que os filósofos “críticos” aplicam o método da dúvida apenas às crenças que consideram desagradáveis, mas raramente às crenças tácitas que tornam a dúvida possível.

Palavras-chave: Charles S. Peirce, Michael Polanyi, Descartes, método da dúvida, ceticismo.

1. Introdução1

Tem sido realizado um trabalho valioso no sentido de desafiar as afinidades filosóficas entre Michael Polanyi e Charles Peirce (por exemplo, Innis 1999; Mullins 2002; Sanders 1988: 16-18, 1999: 5). Ao articular a teoria do conhecimento tácito de Polanyi com a teoria da abdução de Peirce, Mullins (2002: 211) sugere que tanto Peirce quanto Polanyi possuíam pontos de vista semelhantes sobre o valor da dúvida filosófica. O objetivo deste artigo é prosseguir nesta sugestão, esclarecendo duas críticas paralelas ao método crítico (ou, “ao método da dúvida”) conforme apresentado por Peirce e por Polanyi. A primeira crítica diz que se o método crítico for rigorosamente aplicado, como ponto de partida para a filosofia, então, sua consequência será o puro ceticismo e não uma filosofia positiva – ou, propositiva. Peirce e Polanyi argumentam que se o objetivo da filosofia é ser positiva, então, o seu método primário não pode ser aquele que faz da dúvida a sua ferramenta primordial. A segunda crítica diz que se a dúvida metódica for separada da cognição prévia, ou, das crenças pessoais acríticas, então, não terá absolutamente nenhuma utilidade para a investigação. O que impulsiona a investigação, frequentemente, é o desenvolvimento das próprias crenças pessoais, e não um ceticismo robusto. Assim, no lugar do método crítico, Polanyi e Peirce sugerem que o papel da dúvida na investigação deve ser reduzido significativamente (embora não eliminado), e o impacto de limitar o seu papel passa por um compromisso com as filosofias pós-críticas, que incorporam crenças pessoais, falibilidade, e uma noção de verdade e objetividade na investigação científica, que evita ao mesmo tempo o dogmatismo ingênuo e o mero subjetivismo2.

O presente ensaio estrutura-se da seguinte forma. Na seção 2, articulo os componentes-chave do método crítico, apontando para uma instância particular em Descartes. Afirmo que o método crítico é um método filosófico que inicia uma investigação científica submetendo todas as crenças a um teste severo: qualquer proposição para a qual haja razão para duvidar, deve (pelo menos temporariamente), ser retirada do seu conjunto de crenças até que se possa demonstrar que essa proposição seja, de alguma forma, incontestável. Na seção 3, apresento o argumento de Peirce (e depois o de Polanyi) de que o método crítico não foi rigorosamente seguido, e se fosse, o resultado seria o mais puro ceticismo. Finalmente, na seção 4, apresento o argumento de Peirce (e depois o de Polanyi) de que o método crítico não é realmente útil quando divorciado de crenças que são sustentadas acriticamente.

2. O método crítico

Na Sinopse das Meditações, Descartes diz que a primeira Meditação fornece razões que “nos dão motivos para duvidar de todas as coisas”, e que essas razões são evocadas com um propósito particular: a utilidade de tal dúvida está em “libertar-nos de todas as nossas opiniões preconcebidas” para que qualquer proposição que julguemos verdadeira seja aquela sobre as quais será “impossível para nós termos quaisquer outras dúvidas” (CSM2: 9). Isso dá a impressão de que a principal característica do método crítico é envolver-se num procedimento de dúvida extrema e sistemática, para determinar quais as crenças que não são passíveis de contestação, e, assim, serão consideradas seguras. De fato, Descartes, por vezes, lança todo o seu projeto desta forma. Por exemplo, no Discurso, ele escreve, “todo o meu objetivo era alcançar a certeza – pôr de lado a terra solta e a areia de modo a encontrar a rocha ou o barro” (CSM1: 125; AT6: 29)3. Porém, o objetivo explícito das Meditações é mais restrito do que isso. Ele escreve que a importância dos argumentos nas Meditações não é que eles “provem o que estabelecem”, uma vez que ninguém duvida seriamente (na prática) da existência do mundo, de si mesmo, ou que os seres humanos têm corpos (CSM2: 11)4. Pelo contrário, Descartes escreve:

A questão é que ao considerarmos esses argumentos [para a existência de coisas materiais], chegamos à conclusão de que eles não são tão sólidos ou transparentes como os argumentos que nos levam ao conhecimento da nossa própria mente e de Deus, de modo que estes últimos são os mais certos e evidentes de todos os objetos de conhecimento possíveis para o intelecto humano. De fato, esta é a única coisa que me propus provar nestas Meditações (CSM2: 11).

Assim, o objetivo principal de Descartes é mostrar que o conhecimento da nossa mente e de Deus é mais certo e menos aberto à dúvida do que o conhecimento da existência do mundo material. Para atingir este fim, Descartes propõe-se a submeter as suas crenças a um teste rigoroso, e o faz, desdobrando o cenário cético em várias facetas, que fornecem as razões pelas quais certas crenças que tinham sido acriticamente mantidas, agora estão suscetíveis à dúvida e, portanto, pouco seguras. Para aquelas crenças em que haja alguma razão para se duvidar, Descartes afirma que devemos suspender o nosso julgamento em vez de acreditar nelas deliberadamente. Descartes escreve: “A razão leva-me agora a pensar que devo reter o meu consentimento das opiniões que não são completamente certas e incontestáveis, tão cuidadosamente como com aquelas que são manifestamente falsas” (CSM2: 12; AT VII: 17). Após a passagem dessa fase negativa da investigação, apenas as crenças para as quais não há razão para duvidar (ou seja, aquelas em relação às quais não podemos suspender o nosso juízo), é que não devem ser retidas (ou seja, aquelas que são de fato incontestáveis).

Uma característica chave do método crítico é que devemos proceder uma investigação sistemática das nossas crenças, suspender o julgamento sobre qualquer ponto de vista para o qual não temos provas, ou, no o qual haja espaço para dúvidas, e construir a nossa filosofia positivamente sobre as crenças para as quais hajam provas adequadas, isto é, que sejam incontestáveis. Tal visão não é, sem dúvida, exclusiva de Descartes. William Clifford, por exemplo, escreve: “É um erro, sempre, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa com base em provas insuficientes” (Clifford 1877: 295). Bertrand Russell, concordando com o uso de Descartes da dúvida, escreve, “Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, inventou um método que ainda pode ser utilizado com sucesso – o método da dúvida sistemática” (Russell 1912: 18). Kant, na primeira Crítica, insiste em submeter a razão pura à crítica máxima quando escreve, “a razão deve, em todos os seus compromissos, sujeitar-se às críticas; se limitar a liberdade de crítica por quaisquer proibições, prejudicará a si mesma, atraindo para si uma suspeita prejudicial.  Nada é tão importante pela sua utilidade, nada tão sagrado, que possa ser isento deste exame, desrespeitando as pessoas” (A738/B766). Finalmente, mesmo certas formas rígidas de evidencialismo contemporâneo exigem que não acreditemos numa proposta se nos faltarem provas que sustentem essa posição.

Richard Feldman (2000: 679), por exemplo, escreve que “se uma pessoa vai adotar qualquer atitude em relação a uma proposição, tal pessoa deve acreditar nela somente se houver um suporte de provas atuais, desacreditá-la se as suas provas atuais forem contrárias, ou, suspender o julgamento sobre ela caso as provas sejam neutras (ou próximas de neutras)”5. Tanto um quanto outro, portanto, privilegiam o método da dúvida por esta propor uma filosofia positiva, e o resultado de cada projeto é uma posição normativa sobre as atitudes doxásticas. Em suma, não devemos acreditar em qualquer proposição caso haja uma razão provável para que se duvide dela, ou, se nos faltarem provas adequadas para que ela seja considerada verdadeira.

3. O método da dúvida como um ponto de partida impossível para a filosofia

Penso que o método crítico é confrontado com um sério dilema: ou o método crítico é usado com rigor, caso em que leva a um ceticismo absoluto, ou o método crítico não é usado com rigor, e nesse caso leva-nos a admitir crenças incertas ou injustificadas. A consequência do segundo ponto deste dilema é certamente indesejável, pois o objetivo declarado do método crítico é filtrar as crenças que são potencialmente duvidosas de modo a tornar as nossas crenças objetivas6. Os adeptos do método crítico são, desse modo, mais propensos a rejeitar o primeiro ponto do dilema, argumentando que podemos colher resultados filosóficos positivos mesmo sujeitando as nossas crenças a um teste cético severo. Nesta seção, contudo, defendo que Peirce e Polanyi, argumentaram ambos, nenhum desses benefícios positivos pode ser recuperado quando o método crítico é rigorosamente aplicado.

3.1 Peirce

Para Peirce, os resultados positivos da aplicação que Descartes faz do método crítico surgem por duas razões. Primeiro, Descartes não emprega o método crítico (método da dúvida) de forma rigorosa e, por isso, deixa incólume uma variedade de crenças sobre o conteúdo e os poderes da sua própria mente. Apesar de afirmar submeter todas as suas crenças a escrutínio, Descartes não tem reservas em dizer que há coisas que “duvida, compreende, afirma, nega, está disposto, não quer, e também imagina e tem percepções sensoriais” (CSM2: 19). Em segundo lugar, Descartes faz uso de uma faculdade de intuição intelectual (e introspecção) que lhe permite intuir uma variedade de proposições adicionais sobre Deus, sobre a possibilidade de erro, e sobre o mundo material.

Em 1868 e 1869, Peirce argumentou veementemente contra a opinião de que temos uma faculdade especial de intuição e introspecção. Em vez disso, Peirce argumentou que não há razão necessária para supor a existência de uma faculdade de intuição ou de introspecção, pois qualquer fato que tais faculdades pareciam necessárias para explicar, poderia ser explicado por uma faculdade de inferência. O argumento de Peirce para esta posição levou a um exame caso a caso de uma série de fatos relativos ao nosso conhecimento do espaço, a nossa capacidade de distinguir entre estar acordado e de estar num sonho, o nosso conhecimento de nós mesmos, o aparecimento de pontos cegos na visão etc. Em todos os casos, Peirce argumentou que a cognição poderia ser explicada pelo modo de inferência (cognição mediata) e não pela intuição (cognição direta).

Juntamente com as críticas à intuição intelectual, introspecção, e qualquer tipo de conhecimento direto dos objetos, Peirce também argumentou que a dúvida metódica de Descartes não pode ser o ponto de partida para uma filosofia positiva bem-sucedida. Peirce escreve:

“Não podemos começar com uma dúvida absoluta. Temos que começar com todos os nossos conceitos prévios quando entramos no estudo da filosofia. Estes conceitos prévios não devem ser eliminados por uma máxima, pois são coisas que ocorrem a nós, e não podem ser questionados” (W2: 212 [1868], ênfase acrescentada).

Esta observação de Peirce tem gerado muitas críticas por parte dos seus intérpretes. Alguns objetam que Peirce não interpreta Descartes corretamente, ao afirmar que não podemos simplesmente dissipar as nossas crenças com uma variedade de cenários céticos, conflitando o que alguém duvida com o que alguém pode duvidar. O que Peirce parece estar dizendo é que o método da dúvida é impossível porque não podemos reunir o poder psicológico necessário para duvidar realmente de certas proposições, ou que, no fim de contas, não duvidaremos de tudo o que o método crítico nos diz que podemos duvidar. Se for este o caso, os seus críticos argumentam, então, que a objeção de Peirce falha por duas razões diferentes. Ou Peirce está mal informado, pois não reconhece que Descartes considera que tais preocupações céticas são de natureza teórica (metafísica) e não de natureza prática (moral), ou a objeção de Peirce será meramente uma disputa linguística da noção que ele tem do que deve ser considerada uma dúvida genuína (envolvendo um componente psicológico), diferente da noção de Descartes (que não parece ter aspectos psicológicos sérios). Por exemplo, Meyers (1967: 19), Johanson (1972), e Haack (1983: 244-249) argumentam que Peirce interpreta mal a condição necessária do ceticismo cartesiano. Meyers (1967: 19) afirma que a objeção de Peirce é desajustada porque uma crença só é duvidosa se for possível que S duvide de p, e não só se S duvida (de fato) de p. Em outras palavras, a condição de necessidade para o ceticismo cartesiano é que uma crença seja teoricamente (logicamente) duvidosa, e não descritivamente (psicologicamente) duvidosa. Johanson (1972: 218-219) argumenta que Descartes se isenta de fazer uma distinção entre “dúvidas filosóficas” e “dúvidas sinceras”, limitando o âmbito da primeira à filosofia e não à vida, e depois coloca o ônus sobre Peirce para mostrar que as dúvidas filosóficas (teóricas) não são suficientes na prática da filosofia7. De forma semelhante, Susan Haack (1983: 246) objeta, afirmando que a utilização de Descartes da dúvida metodológica está ligada a uma política racional que visa evitar que se acredite em tudo o que é falso, e por isso “não requer a eliminação da dúvida”. Em cada caso, as críticas são dirigidas à alegação de Peirce de que o ceticismo cartesiano é impossível porque o método da dúvida de Descartes não exige que o seu praticante reúna uma dúvida genuína, real e prática8.

O que é também preocupante, dado este diagnóstico, é que a objeção de Peirce não parece ser muito original, uma vez que Gassendi, Hobbes, e Mersenne criticaram Descartes nas Objeções às Meditações por não duvidar verdadeiramente do que ele afirmava duvidar9. E, Descartes parece ter-lhes dado a mesma resposta que Meyers, Johanson, e Haack acusam Peirce de negligenciar. Por exemplo, no início da primeira Meditação, a proposta explícita de Descartes é suspender o julgamento de qualquer opinião que se tenha “pelo menos alguma razão para duvidar”, não na condição de a crença poder ser genuinamente posta em dúvida (AT VII, 18), e numa carta de 1643 a Buitendijk, Descartes alegou que o âmbito da dúvida intelectual é maior do que o âmbito da dúvida intencional10.

Argumentando contra a tensão descrita pela literatura crítica, Lesley Friedman (1999: 729) afirma que, embora Peirce e Descartes concordem que a investigação seja uma luta para erradicar a dúvida, ambos discordam sobre a natureza desta dúvida, e o que se qualifica como o motivo da dúvida, para que seja bem-sucedida. Para Peirce, a dúvida é algo que não está sujeita à nossa vontade, mas algo fora do nosso controle, algo que interfere na nossa ação, algo que sentimos, e cuja conclusão nos preocupamos (ver R828 [1910]: 1-2; R288: 6; CP7.109)11. Dada esta definição de dúvida, Friedman (1997: 733-738) argumenta que a objeção de Peirce possui um mérito real, uma vez que (i) a dúvida real deve ser uma experiência emocional, que estimula a mente a investigar, e não fingir duvidar, (ii) a dúvida real não é um ato de vontade e por isso não temos escolha sobre o que duvidamos, (iii) a dúvida real está ligada a alguma experiência interna ou externa que nos leva à dúvida, e a mera possibilidade de erro não é suficiente para causar a dúvida, e (iv), a dúvida real produz uma hesitação também real, mas a noção de dúvida de Descartes corta a ligação entre a crença-dúvida e a ação. Infelizmente, porém, isso faz com que a queixa de Peirce pareça mais uma disputa linguística, uma vez que Descartes está isento de argumentar que não utiliza a noção de dúvida desta forma altamente naturalizada.

Façamos um balanço. Por um lado, temos a opinião de que a alegação de Peirce, de que o método da dúvida é impossível, não pode ser legítima, porque Descartes não faz com que seja um requisito que os indivíduos duvidem do que afirmam duvidar. Tudo o que é necessário é que exista uma razão para um indivíduo duvidar de uma determinada proposição. Em suma, nesta linha de argumentação, as críticas de Peirce erram o alvo. Por outro lado, temos a opinião de que a alegação de Peirce de que o método da dúvida é impossível é, de fato, legítima, porque (i) parte do método crítico envolve imaginar se é possível duvidar de uma proposição (embora não seja necessário duvidar dela na prática ordinária), e (ii), Peirce argumenta que, nesse contexto, ninguém duvida realmente (utilizando a concepção de Peirce da dúvida). Nesse caso, as críticas de Peirce atingem o seu alvo, mas envolvem a sua compreensão particular da dúvida e da crença, e por isso o seu desacordo com Descartes parece não ser mais do que uma disputa linguística.

Na parte restante desta seção, argumento que a alegação de Peirce sobre a impossibilidade do método da dúvida não é uma declaração sobre a possibilidade ou impossibilidade do método por si só. A alegação de Peirce é, antes, sobre a viabilidade da utilização do método como ponto de partida para uma filosofia positiva. Afirmo que, para Peirce, qualquer utilização rigorosa do método levaria a um ceticismo absoluto e por isso devemos começar a filosofia com um método alternativo que faça uso de uma definição também alternativa da dúvida. Nesta abordagem, a queixa de Peirce não está mal informada e não se baseia numa definição alternativa de “dúvida”. Em vez disso, defendo que a principal objeção de Peirce diz respeito ao fracasso de Descartes em utilizar o método com todo rigor. Mais concretamente, Peirce argumentou que Descartes nunca aplicou o método crítico à atividade de duvidar de si mesmo, ou seja, nunca aplicou o seu método para perguntar: “Quais são as condições em que um indivíduo duvida verdadeiramente, em vez de simplesmente alegar duvidar?”. Descartes, afirma Peirce, apenas toma como certo que se acreditamos que duvidamos de p e depois reunimos alguma razão pela qual p pode ser falso (por exemplo, podemos estar sonhando ou um “gênio maligno” pode estar nos enganando), então conseguimos mostrar que p é duvidoso. Peirce argumenta que isto não é suficiente para mostrar que há dúvida de fato.

Peirce expressou essa objeção de pelo menos duas maneiras diferentes. A primeira forma chamarei de Crítica Linguística. A forma geral dessa crítica é que Descartes usa a informação linguística como prova para quando um indivíduo realmente duvida. Por exemplo, Peirce queixa-se que só porque podemos tomar a nossa crença p e colocá-la no modo interrogativo (será p o caso?) ou escrever “Duvido de p” não significa que realmente duvidemos de p. Esse tipo de dúvida Peirce chama de “dúvida de papel”, pois não há ligação necessária entre a capacidade de expressar p no modo interrogativo, e ser capaz de proferir um conjunto de palavras que literalmente expresse: eu duvido de p para realmente duvidar de p. Pode muito bem acontecer que uma afirmação como “eu duvido de p” seja falsa (ver EP2: 336 [1905]). Assim, a crítica linguística de Peirce é que a utilização do método crítico feita por Descartes não é suficientemente rigorosa, pois então poderíamos duvidar da base linguística que Descartes utiliza para afirmar que existe uma razão para duvidar de alguma crença.

O segundo tipo de crítica, eu chamo de Crítica Subjetiva. A forma geral dessa crítica é que Descartes usa informações subjetivas como sendo suficientes para determinar se alguém de fato duvida. Para Peirce, isso viola uma das condições impostas a um uso rigoroso do método crítico, porque torna o único critério para saber se alguém duvida de fato, a crença do indivíduo de que ele duvida. Peirce levantou essa objeção em uma variedade de formas diferentes. Uma maneira pela qual Peirce vocalizou essa objeção é por meio de uma crítica mais geral do método a priori. Peirce argumentou que o método a priori (o método que estabelece a crença em uma questão particular apelando para o que parece agradável à razão) tende a sofrer por confiar demais em considerações meramente subjetivas.

Peirce afirma que, para Descartes,

“A autoconsciência deveria fornecer as nossas verdades mais fundamentais, e então decidir o que é agradável à razão. Mas visto que, evidentemente, nem todas as ideias são verdadeiras, ele [Descartes] foi levado a notar, como a primeira condição da infalibilidade, que elas devem ser claras. A distinção entre uma ideia que parece clara e realmente o é, nunca lhe ocorreu” (W3: 259 [1878]).

Peirce criticou o método da dúvida argumentando que a base subjetiva sobre a qual se assenta, se coloca em problemas, uma vez que uma ideia pode parecer clara ou distinta para um indivíduo (pode parecer que haja uma razão para duvidar p), mas pode não ser assim na realidade (pode não haver uma razão para duvidar p)12. Tal crítica é repetida na sua revisão de 1906 de “Descartes: His Life and Times”, de Elizabeth Haldane (1905), onde Peirce caracterizou a sua insatisfação com o uso do método por Descartes, argumentando que em nenhum momento nas “Meditações” Descartes dá qualquer prova objetiva de que os seus cenários céticos são genuinamente capazes de produzir dúvida na mente de qualquer pessoa (mesmo na do próprio Descartes). Peirce escreve:

“Enquanto esta dúvida universal e absoluta durasse (pois aparentemente não havia qualquer dúvida de que em um ou dois meses, no máximo, não estaria extinta), decidiu que seria certamente melhor para ele continuar, em todos os aspectos, a comportar-se como se mantivesse a sua velha crença; como se fosse possível para um homem durante dias, manter, sem falha alguma, uma linha de conduta sobre todas as coisas, porém, sem a mínima crença na vantagem de tal conduta – sempre, por exemplo, usando a pinça para agitar o seu fogo, em vez dos seus dedos, embora ele tivesse descartado completamente toda a crença de que o fogo queimaria os seus dedos” (1906).

Na passagem acima, Peirce critica a utilização de Descartes do método crítico não só porque pensa que Descartes não duvida das propostas que diz duvidar, mas também porque a sua utilização do método crítico é radicalmente incompleta. Os defensores do método crítico não aplicam o método às condições sob as quais um indivíduo duvida realmente, mas tomam antes em consideração se um indivíduo aparentemente duvida. As críticas linguísticas e subjetivas de Peirce à utilização do método crítico por Descartes apoiam a alegação de Peirce de que Descartes simplesmente não utilizou o método de uma forma rigorosa. De acordo com Peirce, não é que não possamos duvidar de todas as nossas crenças nem que a noção de dúvida de Descartes seja inaceitável; pelo contrário, o argumento de Peirce é que a escolha de Descartes do que ele duvida é curiosamente seletiva e pouco rigorosa.

Finalmente, uma vez que as críticas a Peirce como estando envolvido num tipo de disputa linguística têm sido tão prevalecentes, é útil diagnosticar a razão pela qual esta interpretação tem sido mantida. Penso que os defensores deste ponto de vista não reconhecem que a definição alternativa da dúvida de Peirce é formulada por um esforço em evitar os problemas que ele viu na definição de Descartes, que parecia depender de critérios subjetivos e linguísticos. Aqui está uma forma de ver a gênese dessa noção. Considere que entre 1868 e 1869, Peirce publicou três ensaios no Journal of Speculative Philosophy (JSP). No primeiro ensaio, “Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man”, uma das principais alegações foi que não há provas da existência de uma faculdade de intuição (cognição direta) para além de uma hipotética inferência (cognição mediata). No segundo ensaio, “Some Consequences of Four Incapacities”, Peirce observa que uma consequência de não ter a intuição como uma faculdade é que não podemos começar com a dúvida completa, sugerindo que para Peirce, o método crítico seria então impossível. Contudo, no terceiro e último ensaio da série, “Grounds of validity of the laws of logic”, Peirce categoriza esta afirmação, dizendo: “tem sido frequentemente argumentado que o ceticismo absoluto é autocontraditório; mas isto é um erro, e mesmo que não fosse assim, não seria um argumento contra o ceticismo absoluto, na medida em que ele não admite que nenhuma proposta contraditória seja verdadeira” (W2: 242 [1869])13. O que esta passagem significa é que, dada a ausência de uma faculdade de intuição, nos restam duas opções relativas ao uso da dúvida em filosofia. A primeira é que pode ser buscada como ponto de partida para a filosofia, caso em que, argumenta Peirce, conduz ao resultado negativo de um ceticismo absoluto. Uma vez que uma aplicação rigorosa do método da dúvida exige que apliquemos o método não só às nossas crenças sobre o mundo externo, percepção sensorial, matemática, mas também aos critérios que determinam quando um indivíduo realmente duvida, Peirce argumenta que o método cético é parasitário sobre si mesmo. O método não só se alimenta dos temas familiares das Meditações de Descartes, mas também daqueles que ele utiliza metodologicamente, ou, enquanto critérios, por exemplo, dúvida, crença, pensamento, clareza, distinção, etc. O segundo é que pode ser buscado de alguma forma restrita, mas é necessário colocar condições mais severas sobre o que constitui uma dúvida genuína sobre uma proposição. A dúvida verdadeira, para Peirce, não pode ser aquela que faz da linguagem ou de um sentimento subjetivo o único árbitro de quando um indivíduo realmente duvida. Em vez disso, Peirce adota uma noção naturalizada da dúvida, uma noção que estimula a mente a investigar, que é emocionalmente angustiante, que está ligada à ação e não apenas a uma questão de vontade, e que, sugere Peirce, devemos elaborar critérios para ajudar a determinar se alguém realmente duvida.

Assim, a principal queixa de Peirce com o método crítico não é com a sua viabilidade teórica. Também não está argumentando que é impossível iniciar um projeto filosófico utilizando a noção cartesiana de dúvida. A sua mudança para uma noção de dúvida mais naturalizada é motivada pelo fato de que a utilização rigorosa do método da dúvida leva a um ceticismo absoluto onde nem sequer saberemos do que duvidamos. Assim, quando Peirce escreve que “os conceitos prévios não devem ser eliminados por uma máxima, pois são coisas que ocorrem a nós, e não podem ser questionadas”, o que ele diz, dado o contexto dos seus outros argumentos, é que “os conceitos prévios não podem ser questionados no ponto de partida de qualquer investigação positiva14.

Apesar da viabilidade teórica de um ceticismo absoluto, Peirce levantou uma consideração prática contra a utilização rigorosa do método crítico. Ou seja, Peirce afirmou que não existem seres inteligentes que sejam céticos absolutos (W2: 242 [1869]). Nesta linha argumentativa, Peirce parecia indicar que, dada uma definição de crença em termos de vontade de agir, um ser qualquer teria de ser pego num estado de perpétua hesitação, totalmente incerto sobre a forma de agir. Contudo, esta linha de argumentação é independente da sua crítica puramente teórica ao método da dúvida, que apenas exige que seja suficientemente abrangente.

3.2 Polanyi

Um dos principais objetivos do Conhecimento Pessoal é caracterizar uma filosofia pós-crítica. Parte do que implica ser uma filosofia “pós-crítica” é que ela faz da crença pessoal uma parte integrante do programa epistemológico (ver Polanyi 1952: 230; Cannon 2008). Embora esse significado seja um assunto complexo, envolvendo críticas de objetivismo, reducionismo, controle centralizado da ciência e economia, e dualismos metafísicos15, parte da mudança de Polanyi para a filosofia pós-crítica envolve uma rejeição do uso irrestrito do método da dúvida, (i) argumentando que nunca foi rigorosamente aplicado, e (ii) argumentando que se fosse rigorosamente aplicado, a consequência seria um ceticismo absoluto.

Polanyi escreve que durante o período crítico não foi o caso “[d]este método ter sido sempre, ou mesmo nunca, rigorosamente praticado – o que creio ser impossível – mas simplesmente que a sua prática foi declaradamente enfatizada” (PK: 270). Em vez disso, Polanyi argumentou que os proponentes do método eram tipicamente culpados de uma falta de vontade de levar o método até à sua conclusão lógica ou culpados de um compromisso involuntário de dogmatismo no seu emprego funcional (instrumental) de conceitos. Afirmou que a utilização generalizada do método da dúvida é um corolário do objetivismo, e o seu emprego pressupõe que “o desenraizamento de todos os componentes voluntários da crença deixará para trás um resíduo de conhecimento que é completamente determinado por provas objetivas” (PK: 269)16. Polanyi exprimiu uma série de razões pelas quais uma utilização em larga escala do método da dúvida era impossível para uma filosofia positiva, e as suas críticas estendem o argumento de Peirce de uma forma bastante explícita.

Há pelo menos duas linhas de crítica. Primeiro, os proponentes do método tendem a restringir a aplicação da avaliação crítica a crenças explícitas ou pontuais e não àquelas que desempenham um papel tácito, subsidiário, não-focal, ou funcional. Na utilização do método crítico, estes últimos conceitos são necessários não só para uma avaliação cética de uma determinada crença, mas também na própria formulação e colocação de tais crenças17. De acordo com Polanyi, para que um proponente do método possa afirmar que uma determinada proposição p é explicitamente dúbia, são feitos pressupostos tácitos relativamente à utilização instrumental pelo cético de conceitos necessários para atender p, por exemplo, o uso da linguagem, a capacidade de atenção cognitiva sustentada, memória etc. Por exemplo, em “Sense-Giving and Sense-Reading”, de 1967, Polanyi escreve:

“Temos de compreender que o uso da linguagem é um desempenho do mesmo tipo da nossa integração de pistas visuais para a percepção de um objeto, ou como a visualização de uma imagem estéreo, ou a nossa integração de contrações musculares na caminhada ou condução de um automóvel, ou como a execução de um jogo de xadrez – tudo isto é realizado com base na nossa consciência subsidiária de algumas coisas com o objetivo de atender de forma focalizada a um assunto sobre o qual elas suportam” (KB: 193).

Um aspecto da crítica de Polanyi é que a utilização rigorosa, completa e aprofundada do método crítico exige novamente uma aplicação às características não-focais, subsidiárias, ou instrumentais que tornam possível a crença explícita e a dúvida. Ou seja, tal como um relato de conhecimento deve reconhecer todos os fatores em que uma pessoa se baseia para trazer o tema de interesse em foco, também vários relatos de dúvida devem ser tidos em conta. Esta crítica está intimamente relacionada com a de Peirce, mas é de natureza mais geral, pois enquanto Peirce assinala que Descartes usa a noção de dúvida sem a submeter a um escrutínio crítico, Polanyi observa que uma utilização rigorosa do método da dúvida exige que submetamos até os conceitos que tacitamente empregamos, a escrutínio.

Uma segunda crítica de Polanyi envolve sua afirmação de que o uso do método crítico em direção a uma crença explicitamente sustentada de p tacitamente nos compromete com uma estrutura a partir da qual p pode ser avaliado. A objeção de Polanyi aqui é, contudo, mais geral do que a objeção de Peirce contra o uso de evidências linguísticas e subjetivas por Descartes para determinar se alguém pode duvidar genuinamente de uma proposição. Para ver isso mais claramente, considere, como faz Polanyi, as distinções entre as diferentes formas explícitas da descrença e da dúvida18. Existe uma dúvida contrária (ou descrença) onde S acredita na negação de uma proposição. Além disso, existe dúvida agnóstica quando S acredita que uma proposição não está provada ou que existem motivos suficientes para escolher entre p e não-p (PK: 272-3). Polanyi caracteriza ainda a dúvida agnóstica como sendo uma de duas formas: (1) dúvida agnóstica final, em que S acredita que p não pode ser provada e (2) dúvida agnóstica temporária, em que a possibilidade de que p poder ser provado é deixada em aberto (ver PK: 273). Polanyi afirma que embora existam casos em que “a suspensão agnóstica da crença em relação a uma determinada declaração nada diz sobre a sua credibilidade, ainda há um conteúdo fiduciário. Isso implica a aceitação de certas crenças relativas às possibilidades de prova” (PK: 273). O conteúdo fiduciário da atitude agnóstica é encontrado num quadro que é responsável não só pela avaliação das crenças, mas também por trazer tais crenças à tona. Relativamente à primeira, Polanyi argumenta que quando S duvida de p, S faz uma declaração sobre o estado futuro de p, ou seja, se não pode ser provado (sob a forma de uma dúvida agnóstica final) ou se pode ser provada (sob a forma de uma dúvida agnóstica temporária). Assim, o estatuto inconclusivo de p não é equivalente a simplesmente “S dúvida de p” mas algo mais próximo de “p pode ou não ser provado no futuro” ou, mais fortemente, “p nunca pode ser demonstrado” (ver PK: 273). Este tipo de relato é problemático para alguém que defende o método da dúvida, pois ao analisar quais crenças são e quais não são duvidosas, o utilizador do método da dúvida parece estar fazendo uma série de suposições não controladas sobre a dubiedade atual ou futura de p. Em outras palavras, a mera expressão de agnosticismo já manifesta um compromisso tácito em um quadro sobre como p deve ser avaliado19.

O resultado final é muito semelhante para Polanyi e Peirce. Ambos afirmam que se o método crítico fosse aplicado a ambos os conceitos fundamentais que, ou trazem a crença em foco, ou, que supõem um quadro de avaliação, a consequência seria um puro ceticismo em vez de um remédio para o erro, ou para uma filosofia positiva. Polanyi escreve que podemos então “imaginar uma extensão indefinida do processo [crítico] de abandono dos sistemas de articulação até agora aceitos, juntamente com as teorias formuladas nestes termos ou implícitas na nossa utilização dos mesmos” (PK: 295). Tal extensão do processo crítico consiste na eliminação de “todas essas crenças preconcebidas” (PK: 295), e tal posição teórica exige que “[tenhamos] de aceitar a mente virgem, tendo a impressão de não ter autoridade, como modelo de integridade intelectual” (PK: 295). Contudo, tal como Peirce, apesar de reconhecer o puro ceticismo como alternativa teórica, Polanyi exprimiu uma objeção prática contra este ponto de vista. Polanyi afirmou que nenhuma destas criaturas incita esta posição. Tal ser, Polanyi observa, seria “frenético e incipiente”, só poderia ser alcançado “obscurecendo minha visão” e “reduzindo-nos a um estado de estupor” (PK: 296-297; ver também PK: 314)20.

4. A dúvida metódica é inútil 

Embora o método da dúvida possa não ser o método primário para estabelecer o ponto de partida da filosofia, Polanyi e Peirce também dirigiram argumentos contra a sua utilidade para fins filosóficos, científicos e sociais. Em particular, ambos argumentaram que se o método está divorciado da cognição prévia e do compromisso pessoal, ele era inútil (ver PK: 269)21.

4.1 Peirce

Peirce rejeitou a visão de que o método da dúvida poderia ser útil sem os pré-conceitos necessários e crenças previamente formadas sobre as quais interagir. No caso de Descartes, Peirce escreve:

“Ninguém que segue o método cartesiano ficará satisfeito até que tenha recuperado formalmente todas as crenças das quais formalmente abandonou. É, portanto, uma viagem preliminar tão inútil quanto ir ao Pólo Norte seria para chegar a Constantinopla descendo regularmente sobre um meridiano”. (W2: 212)22.

O ponto geral para Peirce é que, se o projeto reconstrutivo de Descartes for admitido, ele só será aceito se validar a maior parte dos pressupostos já aceitos. Em outras palavras, Peirce afirma que os resultados do método crítico simplesmente não serão aceitos se eles se afastarem muito de nossas crenças de senso comum e, portanto, o método é guiado por crenças que não são realmente criticadas. Todo o projeto, então, equivale a uma “lavagem”, uma vez que o resultado do uso do método da dúvida já está determinado no início23. Como evidência, Peirce cita uma variedade de alegações onde Descartes afirma ter estabelecido uma filosofia positiva através do estágio reconstrutivo, após a aplicação do método da dúvida, mas que na verdade são produtos da educação formal de Descartes. Em uma revisão de 22 de março de 1906 de Descartes de Haldane, Peirce escreve:

“Assim, ele [Descartes] claramente se considerava o único filósofo digno desse nome que já existiu; e, no entanto, parece impossível que, após oito anos no talvez mais admirável colégio jesuíta que já existiu, ele não pudesse estar perfeitamente ciente de que seu famoso Je pense, donc je suis foi retirado inteiramente do livro de Santo Agostinho. Civitate Dei, ‘ou’ De Anima, ‘ou’ De Quantitate Animæ, ‘por sua substância, como a forma do’ Discours de la Méthode ‘e das’ Meditationes ‘é imitada das’ Confessiones ‘; nem que ele deveria estar totalmente inconsciente de até que ponto se valeu dos resultados de Galileu, de Thomas Harriotts e de outros que ele ignora”24.

O ponto principal de Peirce é que, se diferentes aplicações do método crítico forem tácitas, inconscientes, ou prévias – determinadas por crenças acríticas, então, o método da dúvida perde qualquer pretensão de ser um método objetivo para garantir a certeza. Pois se na aplicação do método, os praticantes são guiados pelas crenças que tinham antes de aplicar o método, que contribuição positiva é que o método dá para a investigação? Para Peirce, a resposta é nenhuma e o método é inútil25.

Apesar dessa crítica, Peirce afirmou que a dúvida poderia ter um papel útil para a investigação se usada em conjunto com crenças previamente estabelecidas. Parece que, para Peirce, a dúvida desempenha um papel efetivo apenas se operar dentro de um sistema de pré-conceitos e compromissos pessoais, e sua função primária é estimular o investigador à resolução de um problema. A ideia é que a dúvida é um tipo de aborrecimento e os indivíduos procuram removê-lo de qualquer maneira (algumas mais aceitáveis que outros) que puderem. Como tal, a dúvida formou uma parte importante de seu Senso Comum Crítico “contanto que fosse o próprio metal pesado e nobre, e nenhuma falsificação ou substituto de papel” (EP2: 353 [1905]). Além disso, ele afirmou que o método indutivo “surge diretamente da insatisfação com o conhecimento existente” e o conceito é central para sua descrição da fixação da crença (EP2: 48 [1898]; W3: 242-257 [1877]).

4.2 Polanyi

Polanyi também criticou o método da dúvida no sentido de poder ser reconhecido como a principal ferramenta para a descoberta científica. Em seu ensaio de 1952 “The Stability of Beliefs” e mais tarde em “Personal Knowledge” (1962 [1958]), Polanyi escreve que não existe uma máxima heurística ou regra a priori defensável que recomende a dúvida como o caminho principal para a descoberta científica26. Polanyi cita a descoberta da América por Colombo, o trabalho de Newton nos Principia, a descoberta de Max von Laue da difração de raios X por cristais, e JJ Thompson e a descoberta do elétron, como exemplos em que o conhecimento foi expandido não por um uso metodológico da dúvida, mas por um poder criativo para expandir as crenças científicas em uma forma mais concreta ou prática, e uma convicção de que as crenças existentes careciam de alguma capacidade (1952: 226-7; PK: 277)27. A ausência de uma regra que possamos aplicar quando confrontados com a decisão de acreditar ou não em p prejudica a utilidade do método da dúvida porque sugere que (1) o método não deve ser aplicado em todas as circunstâncias (como mostra a história da ciência), e (2) não pode ser determinado com antecedência quando o método da dúvida deve ser aplicado de forma restrita.

Polanyi não apenas criticou a utilidade do método da dúvida para a investigação científica, mas também criticou sua utilidade como forma de salvaguardar várias formas de pensamento religioso ou cultural. Em vez disso, ele considerou o método uma forma de propagar crenças pessoais de maneira descuidada. Em crítica a Russell, Polanyi escreveu que a intenção de Russell era “espalhar certas dúvidas que ele acredita serem justificadas”, mas sua afirmação de que a dúvida é uma salvaguarda para a tolerância não se aplica às suas próprias crenças (PK: 297). Polanyi continua:

“A dúvida filosófica é, portanto, mantida sob controle e impedida de colocar em questão qualquer coisa em que o cético acredite, ou de aprovar qualquer dúvida que ele não compartilhe. A acusação da Inquisição contra Galileu foi baseada na dúvida: eles o acusaram de “imprudência”. A Encíclica do Papa “Humani Generis”, publicada em 1950, continua sua oposição à ciência nas mesmas linhas, alertando os católicos de que a evolução ainda é uma hipótese não comprovada. No entanto, nenhum filósofo cético ficaria do lado da Inquisição contra o sistema copernicano ou do papa Pio XII contra o darwinismo. Lenin e seus sucessores elaboraram uma forma de marxismo que duvida da realidade de quase tudo que Bertrand Russell e outros racionalistas nos ensinam a respeitar, mas essas dúvidas, como as da Inquisição, não são endossadas pelos racionalistas ocidentais, presumivelmente porque elas não são “dúvidas racionais” (PK: 297).

Polanyi, portanto, critica os adeptos do método da dúvida por aplicarem um padrão duplo, apenas usando o método sobre crenças que eles consideram desonrosas e rejeitando sua aplicação naquelas que consideram racionais28. Em certa medida, podemos acusar Descartes disso também, uma vez que seu projeto cético ataca as crenças obtidas pelos sentidos, mas nunca questiona certas habilidades cognitivas, como pensar ou duvidar. Este último sustenta seu projeto de tornar o conhecimento de si mesmo, de Deus e da matemática, epistemologicamente mais certo do que o conhecimento do mundo externo e dos objetos materiais.

Apesar dessas críticas, Polanyi reconheceu um certo lugar para o método da dúvida. Ele caracterizou uma forma heurística como essencial para a fé cristã (PK: 281, 285) e embora não seja “o solvente universal do erro”, Polanyi parece aberto a um uso contextualizado e restrito da dúvida na medida em que estimula os inquiridores a soluções criativas (PK: 266; TD: 57). Além disso, o papel da dúvida desempenha um papel importante, mas não principal, na teoria epistemológica de Polanyi. Polanyi escreve que “o exercício de uma cautela especial não é peculiar ao cientista. A prática de toda arte deve ser restringida por sua própria forma de cautela. […] O cuidado é louvável na ciência, mas apenas na medida em que não impede a ousadia de que depende todo o progresso da ciência” (1952: 227).

 5. Conclusão

Em suma, Peirce e Polanyi criticam o uso do método da dúvida por duas diferentes direções. Primeiro, eles criticaram os adeptos do método da dúvida por não usá-lo com rigor suficiente, e argumentaram que um uso completo do método equivaleria a um ceticismo puro, o qual nenhuma criatura insistiria afirmar29. Em segundo lugar, eles criticaram os ditos adeptos por exaltarem seu caráter científico e utilidade prática sem considerar que ela desempenha apenas um papel limitado na descoberta científica e na arbitragem social30. Sem o uso do método crítico para recorrer, tanto Peirce quanto Polanyi defenderam filosofias pós-críticas, cujo foco era a apropriação de conceitos filosóficos tradicionais (por exemplo, verdade, objetividade) em epistemologias que situam tais termos em um projeto de investigação já em andamento e que está repleto de crenças acríticas.

Agradecimentos

Agradecemos a Phil Mullins, Vincent Colapietro, Bob Innis, Dale Cannon, Ryan Pollock, Toby Svoboda, Daniel Brunson, Marco Stango e Francesco Poggiani pelos comentários aos rascunhos deste ensaio.


1. As abreviaturas seguem as seguintes convenções. Para os trabalhos de Peirce: CP#.# = (Peirce 1960); HPPS:#: (Peirce 1985); EP1:# = (Peirce 1992a); EP2:# = (Peirce 1998); SS:# = (Peirce 1977); RLT:## = (Peirce 1992b); W#.# = (Peirce 1982-2000); R#:# = (Peirce 1963-1966, 1966-1969, 1967, 1970). Além disso, as páginas manuscritas rejeitadas terão um ‘x’ após o número da página do manuscrito. Os trabalhos de Descartes: AT = (Descartes 1897-1913); CSM = (Descartes 1985); CSMK = (Descartes 1991). E as abreviações das obras de Polanyi: KB: (Polanyi 1969); PK: (Polanyi 1962 [1958]); SFS: (Polanyi 1964 [1946]); TD: (Polanyi 1966).

2. Para uma visão geral da filosofia pós-crítica de Polanyi, ver (Cannon 2008). Para mais discussões sobre a relação de Polanyi com a filosofia pós-crítica, incluindo uma história da utilização do termo por Polanyi, ver (Mullins 2001).

3. A própria narrativa de Descartes sobre as Meditações também deixa essa impressão. No início da primeira Meditação, ele escreve, “foi necessário, no decurso da minha vida, demolir tudo completamente, e recomeçar desde as fundações, se eu quisesse estabelecer alguma coisa nas ciências que fosse estável e supostamente duradouro” (CSM2: 12).

4. É importante salientar que, uma vez que o ceticismo de Descartes não se manifesta na vida prática, ele é capaz de levar o seu ceticismo ao extremo. Como diz Marjorie Grene (1999: 556), “o ceticismo prático não questiona o mundo externo; apenas se pergunta se temos boas razões para afirmar que temos certos conhecimentos ou mesmo crenças razoáveis sobre ele. Entretanto, continue vivendo e relaxe. Pare de se esforçar por um conhecimento que não sabe se pode ter. Descartes pode ir mais longe na dúvida exatamente porque não é com a prática que ele se preocupa”.

5. Isso contrasta com as versões menos rígidas do evidencialismo, que não fazem do agnosticismo a atitude doxástica primária, no caso de falta de provas. Um exemplo desse evidencialismo menos rígido é apresentado por Chisholm (1956: 449), que escreve a respeito de W. K. Clifford, dizendo que “a sua ética era mais rígida do que aquilo que sugiro aqui, pois ele sustentava que, para cada um de nós, existe uma grande classe de hipóteses, relativamente às quais devemos reter tanto o assentimento como a negação. Mas eu sugeri, com efeito, que uma hipótese é inocente até ser provada a sua culpabilidade. Só quando temos provas adequadas para a contradição de uma hipótese é que torna-se errada sua aceitação”.

6. Por exemplo, veja o início da primeira Meditação de Descartes (CSM2: 12; ver também CSM1: 193).

7. Além disso, Johanson (1972: 227) afirma que “Descartes abriu a possibilidade, ao dizer que o que está fazendo é submeter as suas indubitáveis (e duvidosas) crenças à crítica e à experimentação imaginária, para ver qual delas pode resistir ao teste da hesitação fingida”.

8. Esta interpretação da dúvida metódica de Descartes é apoiada por Oswald Hanfling (1984: 504-505), que escreve: “O método de Descartes é um método lógico e não um método psicológico. […] O que preciso para me fazer acreditar ou duvidar de uma proposta não é um incentivo, mas sim razões para pensar que a proposta seja verdadeira ou seja duvidosa”.

9. Gassendi escreve: “o que se reivindica, ou melhor, o que se pretende, não é algo sobre o qual se esteja realmente em dúvida” (CSM2: 219). Hobbes escreve: “Além disso, não basta apenas saber algo para que este algo seja verdadeiro, independente da vontade, mas também acreditar nela ou dar o seu assentimento. Se algo for provado por argumentos válidos, ou se for declarado confiável, acreditamos, quer queiramos ou não. É verdade que afirmar e negar, defender e refutar proposições, são atos de vontade; mas não se segue que o nosso consentimento interior dependa da vontade” (CSM2: 134). Mersenne escreve: “que possamos recordar-vos que a vossa rejeição vigorosa das imagens de todos os corpos como ilusórias não foi algo que vocês realmente realizaram, mas foi meramente uma ficção da mente, permitindo-vos concluir que eram exclusivamente uma coisa que pensa” (CSM2: 87).

10. Por outro lado, ao longo das Meditações, Descartes observa que a força das suas crenças habituais requer recursos extraordinários para enfraquecer. Ele escreve que as crenças habituais “capturam a minha crença” e que, sem o uso do gênio maligno, há alguns casos que ele “por hábito, nunca deixará de consentir confiantemente, segundo as suas convicções” (AT VII, 22).  Outro exemplo é encontrado no seu inédito The Search for Truth (c.1641). Aí, Eudoxus de Descartes argumenta que, tal como um pintor que – tendo cometido uma série de erros num retrato – procurou começar de novo com uma nova tela, os filósofos deveriam comprometer-se plenamente com o método da dúvida. Contudo, Epistemon e Polayander respondem que esta espantosa proposta só seria possível “apelando à ajuda de razões poderosas” (AT X, 508-9).  A este desafio, Eudoxus responde com a falta de credibilidade dos sentidos, a falta de distinção entre um estado de vigília e um estado adormecido, e a possibilidade de um gênio maligno (AT X, 510-512). Todos estes três casos são alegados como produzindo os recursos necessários para nos tirar do hábito de consentirmos confiantemente com as nossas crenças habituais. Finalmente, em resposta à objeção de Gassendi de que o uso da dúvida metodológica equivale a artifício filosófico – porque não se pode obrigar a acreditar que não está acordado ou que os seus sentidos não são dignos de confiança, Descartes responde afirmando que não há razão para que tais crenças não devam – ou não possam – ser postas em dúvida (AT VII, 258). Após a publicação das Meditações, Gassendi publicou o seu Metaphysical Enquiry: Doubts and Counter-Objections (1644), que rearticulou a sua objeção original de que o método da dúvida era descritivamente impossível; falta-nos simplesmente a capacidade psicológica para duvidar de certas crenças. Descartes respondeu afirmando que todas as crenças nas Meditações são suscetíveis de serem contestadas porque foram dirigidas a “opiniões que continuamos a aceitar como resultado de julgamentos anteriores que fizemos” e, uma vez que a nossa elaboração desses julgamentos é um ato de vontade, e uma vez que a nossa vontade está ao nosso alcance, é possível que S possa duvidar p, ainda que S não duvide p (AT IXA, 204).

11. Relativamente à opinião de que a dúvida não está dentro da nossa vontade, Peirce escreve (R828 ([1910] ‘Lógica’), “A indagação, ou seja, a atividade animada por um desejo de saber algo, é um lugar cheio de curiosidades admiráveis – um palácio de labirintos em cujo limiar se encontra um dos seus lacaios, chamado ‘dúvida’. Na maioria das vezes é a urgência, a solicitação [sic] provocadora [sic] deste lacaio que nos obriga a entrar, mas se entrarmos por vontade própria, seremos abordados por um deles antes de termos avançado um passo, ou ainda, se alguém poderoso puder passar por um deles, ignorando-o, descobrirá que terá de voltar e lidar com ele”. Além disso, Peirce (R288) escreve “Questionador: Porque é que ele não faz uma limpeza das crenças? Pragmático: Fala como se as crenças estivessem sob o controle imediato. Se estivessem, não seriam crenças. Nenhum outro hábito é capaz de ser tão instantaneamente despedaçado pelos meios adequados, mas, “alguns outros são tão parecidos com muitas fechaduras”. Abrem-se apenas a uma chave. As crenças originais são como fechaduras enferrujadas que não se abrem mesmo com suas próprias chaves, sem que antes sejam trabalhadas repetidamente, desgastando a ferrugem. Mas voltemos às críticas. Ele, tal como vós, mostra a opinião infundada de Descartes de que para mudar a crença para a dúvida, basta pegar numa esponja e esfregar a crença como se esta estivesse escrita com pedra sabão numa lousa escolar, e não na consciência vítrea” (cf. CP5.519). Na passagem acima, Peirce escreveu (mas riscou) “Elas [crenças originais] são esculpidas na madeira do centro da mente. Não sairão sem muito mais dificuldade do que as crenças comuns”. Além disso, Peirce argumenta que a dúvida “não é o mesmo que ignorância, nem como a consciência de ser ignorante, pois se não se quiser saber não se pode dizer que está em dúvida” e “que aquilo a que chamamos “dúvida” é uma emoção” (R828 [1910] ‘Lógica’). Noutro lugar (R288), Peirce escreve que “[a] dúvida verdadeira é um estado de espírito inquieto em que se vacila entre duas opiniões. Não pode existir, a menos que haja uma razão, ou o que se confunda com uma razão, para cada uma das duas opiniões. Não duvido que os habitantes de Saturno tenham cabelo ruivo; pois não creio que haja a mais pequena indicação de uma forma ou de outra”.

12. A crítica de Peirce é, portanto, semelhante à de Bourdin, que argumenta que Descartes, que nos aconselha a tratar tudo o que é duvidoso como sendo falso, recua quando se trata de duvidar se as ideias são realmente claras e distintas. Bourdin (CSM2: 306) escreve: “Se alguém duvida se está acordado ou dormindo, não é correto que o que parece claro e certo para ele seja de fato claro e certo. Devo, portanto, dizer e acreditar que se algo parece claro e certo para alguém que duvida se está acordado ou dormindo, então, não é claro e certo, mas obscuro e falso? Por que você hesita? Você não pode ir longe demais em sua atitude de desconfiança. Nunca aconteceu a você, como a muitas pessoas, que as coisas que pareciam claras e certas enquanto sonhava, depois, ao acordar, descobre-se que eram duvidosas ou falsas?”

13. Peirce faz uma série de declarações que apoiam a sua crença na viabilidade teórica de qualquer crença sujeita a dúvida. Por exemplo, ele escreve que mesmo “duas vezes dois são quatro” não é algo absolutamente seguro (ver R829). “Você já ouviu falar de hipnotismo. Sabe como é comum. Sabe que um homem em cada vinte é capaz de ser colocado numa condição em que sustentará o mais ridículo disparate para uma verdade inquestionável. Assim, como qualquer indivíduo aqui sabe, mas, sendo eu um hipnotizador e quando ele sair da minha influência, pode ver que ‘duas vezes dois são quatro’ é apenas a sua ideia distorcida; e que de fato todos já sabem” (CP3.150). Ele escreve que “nenhuma prova empírica pode libertar completamente a sua conclusão da dúvida racional” (R288).

14. Susan Haack (1983) aborda duas objeções levantadas por Peirce contra o método da dúvida. A primeira é que Peirce pensa que o método da dúvida é uma impossibilidade. A segunda, argumenta Haack (1983: 252-3), é que a objeção de Peirce ao método da dúvida não está enraizada na opinião de que Descartes é demasiado cético. Em vez disso, Haack (1983: 252) afirma que quando o método da dúvida está ligado à política racional de Descartes de admitir apenas crenças incontestáveis, Descartes não é suficientemente cético para um emprego por atacado do método da dúvida que deveria “não deixar resíduos de crenças incontestáveis para formar a base da reconstrução” (Haack 1983: 253). Por conta de Haack, uma vez que Peirce considera o ceticismo teórico consistente, a objeção de Peirce à utilização de Descartes da dúvida metodológica é de que o seu emprego é uma forma de introduzir alegações dogmáticas já aceitas antes de o método da dúvida ter sido aplicado. A minha afirmação é que a primeira objeção de Haack é uma leitura errada de Peirce. Além disso, o seu relato sobre a segunda objeção dá apoio à minha interpretação da primeira.

15. Para estes outros aspectos de uma filosofia pós-crítica, ver Mullins (2001: 83-89).

16. Relativamente à alegação de que o método crítico é um corolário do objetivismo, a ideia parece ser que, uma vez que o objetivismo requer a crença numa proposição apenas na condição de a proposição poder ser demonstrada, o método crítico segue-se, uma vez que procura o conhecimento considerando qualquer contribuição pessoal (ou subjetiva) como potencialmente duvidosa (ver PK: 286: ver também Sanders 1988: 38-39).

17. Em (SFS: 85), Polanyi observa que qualquer investigação pressupõe a utilização funcional de conceitos e que tais conceitos se manifestam na prática da investigação (ver Kane 1984: 18-19).

18. Como Phil Mullins me observou, Polanyi faz uma distinção entre as formas de dúvida explícita e ampla (ou tácita), e existe, talvez, uma ligação entre a forma tácita de dúvida – que Polanyi caracteriza como um “momento de hesitação”, “presente em todas as formas articuladas de inteligência”, e no comportamento dos animais – e a noção de Peirce de “dúvida genuína” (PK: 272).

19. Polanyi parecia até mesmo afirmar, por vezes, que os proponentes do método já estavam tacitamente comprometidos (ou seja, dispostos a favor ou contra) com qualquer proposta apresentada na sua disciplina. Polanyi escreve, “se ele ignorar a alegação que de fato faz, implica que ele acredita ser infundada. Se ele ignorar a alegação, ele na verdade implica que ele acredita que ela seja infundada. Se ele perceber isso, o tempo e a atenção que ele desvia para seu exame e a extensão em que ele leva isso em conta ao guiar suas próprias investigações são uma medida da probabilidade que ele atribui à sua validade” (PK: 276).

20. Polanyi imediatamente segue essa observação ao escrever que “o programa de dúvida abrangente entra em colapso e revela, com seu fracasso, o enraizamento fiduciário de toda racionalidade” (PK: 297, grifo meu). A crítica de Polanyi, então, é que um uso rigoroso do método da dúvida é impossível para fins racionais, uma vez que a aplicação do método aos conceitos subsidiários ou não focais que permitem o uso racional da dúvida requer um abandono total da racionalidade. Em particular, Polanyi escreve, “reconhecer o pensamento tácito como um elemento indispensável de todo conhecimento e como o poder mental final pelo qual todo conhecimento explícito é dotado de significado, é negar a possibilidade de que cada geração seguinte, quanto mais cada membro dela, deve testar criticamente todos os ensinamentos em que é apresentado” (TD: 60-1). Assim, embora o ceticismo puro seja teoricamente possível, ele não pode ser adotado por um agente racional. Talvez isso agrave ainda mais o problema para o cético, se as características subsidiárias são mesmo capazes de passar por um escrutínio crítico (ver KB: 139, 147; TD: 15; Sanders 1988: 8-9).

21. Por exemplo, na sinopse das Meditações, Descartes escreve que “a utilidade de uma dúvida tão extensa não é aparente à primeira vista, o seu maior benefício reside em libertar-nos de todas as nossas opiniões preconcebidas, e proporcionar o caminho mais fácil pelo qual a mente pode ser afastada dos sentidos” (AT VII 12). Em resposta às objeções de Gassendi às Meditações, Descartes afirmou que é frequentemente “útil assumir desta forma falsidades em vez de verdades, a fim de lançar luz sobre a verdade, por exemplo, quando os astrónomos imaginam o equador, o zodíaco, ou outros círculos no céu, ou quando os geômetras acrescentam novas linhas a determinadas figuras” (AT VII, 349, a minha ênfase). Em termos de o método da dúvida ser uma salvaguarda para a tolerância, um exemplo é Russell, que enfatizou a sua utilidade prática ao argumentar que era o remédio para o dogmatismo que estava infectando a vida política e religiosa. Em Personal Knowledge, Polanyi refere-se ao menos a duas referências de Russell a este ponto (PK: 271, 297). Na primeira, Russell escreve, “Arianos e Católicos, Cruzados e Muçulmanos, Protestantes e adeptos do Papa, Comunistas e Fascistas, encheram grande parte dos últimos 1.600 anos com lutas fúteis, quando um pouco de filosofia teria mostrado que ambos os lados em todas estas disputas tinham qualquer boa razão para acreditarem em si próprios. O dogmatismo é um inimigo da paz, e uma barreira insuperável à democracia. Na era atual, pelo menos tanto como em tempos anteriores, é o maior dos obstáculos mentais à felicidade humana”. (1950 [1946]: 26).

22. Peirce escreve que “nada pode ser ganho por dúvidas gratuitas e fictícias” (W2: 189 [c.1868]). Além disso, ele afirma: “A defesa contra a falsa dúvida é apenas um cartucho vazio. Não adianta. Ao contrário, a farsa é sempre prejudicial na filosofia”. (CP2.196).

23. Peirce escreve que, “nos casos em que não existam dúvidas reais na nossa mente, a pesquisa será uma farsa ociosa, uma mera comissão de “branqueamento” que seria melhor deixar em paz” (CP5.376n3 [1893]).

24. Ver também CP6.498, onde Peirce escreve, “Descartes convenceu-se de que o caminho mais seguro era “começar” por duvidar de tudo, e por isso diz-nos que o fez imediatamente, exceto apenas a sua “je pense”, que pediu emprestada a Santo Agostinho. Ver também (CP4.71 [1893]). Que mesmo a “cogito ergo sum” é duvidosa, ver R891 [c. 1880-82].

25. Até certo ponto, isso não é justo com Descartes, uma vez que ele admite que as proposições específicas que ele afirma como certas têm antecedentes históricos. O que Descartes afirma ser novo para as Meditações é que o conhecimento do nosso “eu” como uma coisa pensante e da existência de Deus, são mais certos do que nosso conhecimento dos objetos do mundo material, que são obtidos por meio dos sentidos (ver CSM2: 11).

26. Para o contexto do artigo de Polanyi “The Stability of Beliefs”, ver (Jacobs e Mullins 2012:74-81).

27. Para uma lista de mais exemplos, ver Sanders (1988:121-122). Para o relato de von Laue sobre a descoberta de interferências de raios X, ver Laue (1998 [1915]:351-2).

28. Para uma discussão relacionada ao uso da dúvida, ver a discussão de Sanders (1988: 118-124) sobre a rejeição do instrumentalismo por parte de Polanyi.

29. Polanyi até sugere que o convite ao dogmatismo é construído sobre nossa capacidade de levar o método crítico à sua conclusão lógica (ver PK: 268). Para uma leitura alternativa desta passagem, veja (Cannon 1999: 2). Polanyi é, portanto, caracterizado por aceitar uma forma de falibilismo. No entanto, deve-se notar que Polanyi deu ao falibilismo um tom muito positivo quando afirmou que os cientistas devem se lembrar que uma teoria particular não só é capaz de ser falsa, mas também pode ser verdadeira, mesmo em face de evidências adversas. Ele ilustrou essa posição observando as características do argônio, potássio, telúrio e iodo em relação ao sistema periódico de elementos e aspectos da difração óptica para a teoria quântica da luz de Einstein (ver SFS: 29-31). Ele resume esse ponto por escrito: “Podemos concluir que, assim como não há prova de uma proposição na ciência natural que não possa ser concebivelmente incompleta, também não há refutação que não possa ser concebida como infundada” (SFS: 31).

30. Obviamente, as respectivas atitudes de Peirce e Polanyi são apenas um dos muitos pontos de semelhança entre eles, pois ambos foram cientistas informados, ambos adotaram uma forma de falibilismo, ambos fizeram da inferência hipotética (abdução) uma característica essencial do desenvolvimento científico, ambos aceitaram uma forma de senso comum (crença metodológica), e ambos pareciam explicar a possibilidade de conhecimento ao longo de linhas evolutivas. Para uma comparação de Peirce e Polanyi sobre abdução e conhecimento tácito, ver Mullins (2002), e para uma conexão Peirce-Polanyi sobre percepção, significado e semiose, ver Innis (1999).


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Referências

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Notas sobre os colaboradores

David W. Agler ([email protected]) recebeu o seu Mestrado em Filosofia Americana pela IUPUI em 2010, onde trabalhou como assistente de investigação para o Projeto Peirce Edition. Recentemente concluiu o seu doutorado em Filosofia na Pennsylvania State University, e trabalha atualmente em tópicos da filosofia da linguagem (imprecisão, nomes próprios, semântica e pragmática) e na filosofia de Peirce. Escreveu duas resenhas de livros para Tradition and Discovery: uma cobriu as Perspectivas sobre Pragmatismo, de Robert Brandom (esta edição), e outra tratou de A Estrutura do Pensamento, de Laura Weed (38:1).

Vincent Colapietro ([email protected]) é Professor e Pesquisador em Artes Liberais do Departamento de Filosofia da Pennsylvania State University. Tem escrito extensivamente sobre os pragmáticos americanos clássicos, acima de tudo, C. S. Peirce. Seus interesses vão além da filosofia, estritamente concebida, para tópicos como cinema, música (especialmente jazz), historiografia e psicanálise. Nos últimos anos, se dedicou a explorar questões relativas à natureza e às formas de interação, bem como às interseções entre o pragmatismo e a psicanálise. Especialmente, em sua investigação dessa interação, descobriu que Peirce e Polanyi são fontes de iluminação e orientação.

Robert E. Innis ([email protected]) é Professor Emérito de Filosofia na Universidade de Massachusetts Lowell. Seus interesses abrangem estética, teorias comparativas do conhecimento, semiótica, filosofia da linguagem e filosofia da religião. Além das publicações revisadas no TAD que foram observadas na introdução desta edição, ele publicou Karl Bühler: Semiotic Foundations of Language Theory, dedicado a um teórico cujo trabalho está por trás do capítulo em Conhecimento Pessoal intitulado “Articulação”, e Semiotics: An Introductory Anthology, um livro-fonte amplamente utilizado, bem como muitos outros artigos e capítulos tratando de seus interesses centrais, mais recentemente, com referência às relações entre Peirce e Polanyi. Também possui um capítulo, “Meaningful Connections: Semiotics, Cultural Psychology, and the Forms of Sense”, em The Oxford Handbook of Culture and Psychology, editado por Jaan Valsiner. Ele foi Humboldt Fellow na Universidade de Colônia, duas vezes professor Fulbright na Universidade de Copenhague e professor na Universidade de Massachusetts Lowell, onde ainda leciona no semestre do outono.

Phil Mullins ([email protected]), é Professor Emérito da Missouri Western State University em St. Joseph, Missouri. Tem demonstrado um vivo interesse pelo pensamento de Peirce desde o início dos anos setenta. É editor do TAD desde 1991.