No clássico Princípios da natureza e da graça fundados na razão, de 1714, o grande filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) lidou com aquela que se tornou uma das maiores questões da tradição filosófica: Por que o ser e não, antes, o nada? Isto é, por que existe algo ao invés do abismo do não-ser? A hermenêutica contemporânea trouxe à lume perguntas similares: Por que existe algo, em vez de nada, nos textos? Qual a natureza desse algo? É verdadeiro? Se trata de um elemento intrínseco ao texto e que, portanto, precisa ser apreendido ou, na verdade, não passa de uma projeção do leitor no texto? O teólogo Kevin Vanhoozer tratou dessas e outras questões no livro Há um significado neste texto?, procurando mostrar que a doutrina cristã tem muito a oferecer às discussões sobre interpretação, teoria literária e pós-modernidade.
Um dos pressupostos de Vanhoozer é o da reciprocidade ontológica entre teologia e hermenêutica. Se por um lado, a teologia é uma disciplina hermenêutica, uma vez que a compreensão das doutrinas cristãs pressupõem a interpretação das Escrituras, a hermenêutica é, sobretudo, uma disciplina teológica. (VANHOOZER, p. 38). A visão de mundo do intérprete não está alheia às questões relativas a Deus e a humanidade, e a resposta que dá a elas influenciam o modo como lidam com a natureza do texto. Assim, a pergunta que é título do livro, “Há um significado neste texto?” é, antes de tudo, teológica. Vanhoozer se propõe a oferecer uma teologia trinitária da interpretação em reposta á posição pós-moderna do anti-realismo hermenêutico, com uma sólida defesa da doutrina cristã como ferramenta fundamental na compreensão da Palavra de Deus:
Articular e defender a possibilidade, no vale das sombras de Derrida, de que os leitores possam legítima e responsavelmente atingir o conhecimento literário da Bíblia. O presente trabalho dispõe a afirmar que existe um significado no texto, que esse significado pode ser conhecido, e que os leitores devem se esforçar para fazê-lo. De maneira contrária às impressões pós-modernas, podemos continuar a defender e a promover a possibilidade de entendimento. (VANHOOZER, 2005, p. 32)
Entendimento. Contra a corrente pós-moderna da “morte de Deus e do autor”, Vanhoozer defende que a natureza da atividade do entendimento é intrinsecamente teológica, e ressalta a importância do teólogo estar sempre a par das discussões da hermenêutica contemporânea, pois “se a fé está, de fato, relacionada ao entendimento literário, é no mínimo adequado que um teólogo examine os pressupostos e crenças dos filósofos e críticos literários” (VANHOOZER, p. 40). Partindo de uma abordagem “explicitamente agostiniana”, Vanhoozer lida com dois grupos de teóricos em particular, os hermetistas, que negam ser a intenção do autor necessária para a compreensão textual, e os cínicos, que são agnósticos sobre a possibilidade do leitor realmente conseguir apreender o significado do texto.
Ambas as posições são problemáticas. Suponha que um paciente foi ao médico e este lhe recomendou um medicamento tarja preta. Na bula, como de costume, há um texto contendo instruções sobre o modo de usar, sua composição química, as contraindicações etc. Será que um pós-moderno tomaria esse medicamento independente da intenção autoral da bula? E mesmo levando em conta apenas a orientação do médico, qual a garantia epistêmica de que ele está dizendo a coisa certa? Até que ponto vai sua confiança na linguagem? É necessário, portanto, acreditar na possibilidade de uma comunicação verbal, como retrata Agostinho: “Quando você fala comigo, acredito que não está emitindo um som meramente vazio, mas em tudo o que sai de sua boca você está me dando um sinal por meio do qual posso entender alguma coisa” (AGOSTINHO apud VANHOOZER, 2005, p. 41).
Credo ut intelligam, “creio para entender”. A máxima agostiniana, que expressa a natureza religiosa do ser humano, pode ser parafraseda para lego ut intelligam, “leio para entender”. Foi por meio da linguagem que Deus se revelou ao homem. A perspicuidade das Escrituras demonstra que o seu significado está intima e diretamente ligado ao seu Autor, pois “no princípio, Deus criou a linguagem. Ela é sua dádiva, criada para ser desfrutada por suas criaturas. Além disso, ela é o instrumento preeminene para cultivar as relações pessoais, entre um ser humano e outro e entre a humanidade e Deus. Como tal, a linguagem é uma espécie de sacramento semântico, um meio de comunicar o significado por meio de signos verbais” (VANHOOZER, p. 41)
Referências bibliográficas
LEIBNIZ, G. W. Princípios da natureza e da graça fundados na razão. Trad. Miguel Allen Serras Pereira. Lisboa: Fim do Século Edições, 2002.
VANHOOZER, K. J. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. Trad. Álvaro Hattnher. São Paulo, Vida, 2005