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Com amor, Eunice e Mônica: a sabedoria hebraica transdemográfica nas Confissões de Agostinho

Ensaio escrito por Camila Aguiar, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

O presente ensaio filosófico tem como objetivo identificar na obra Confissões, de Santo Agostinho, a estreita relação do estilo filosófico agostiniano com o estilo transdemográfico da filosofia hebraica, retratado sobretudo através da epístola do apóstolo Paulo a Timóteo, jovem pastor. Tal relação se vê mais claramente ao observar o destaque dado pelo apóstolo à mãe de Timóteo, Eunice, ao considerar a fé sem fingimento dele. Agostinho, por sua vez, destaca várias de suas páginas confessionais à fé inabalável de sua mãe, Mônica. 

A mãe que se colocou de joelhos para que seu filho, antes morto em seus delitos e pecados, estivesse de pé, em Cristo Jesus

Uma das características que mais chamam a atenção na literatura Confissões, de Santo Agostinho, já bispo de Hipona quando a escreveu, é que nesse livro conhecemos, de forma visceral e honesta, a peregrinação de Agostinho até se tornar Santo Agostinho, cujas confissões ecoam nos corações dos crentes que peregrinam até os dias atuais. Tal literatura tornou-se clássica sobretudo pelo poder de identificação com a jornada do autor; a narrativa agostiniana de suas desventuras, os enganos ase perdições até ser encontrado pelo Senhor se assemelham ao que tantos peregrinos, como Cristão, em Peregrino, de John Bunyan, enfrentam na caminhada de justificação e santificação.

Entretanto, adentrando, enfim, no cerne filosófico do clássico agostiniano, um dos elementos que mais distingue o pensamento filosófico de Santo Agostinho se dá em virtude de, em quase toda a sua obra, remeter seus pensamentos à sua mãe, Mônica. Tal característica, sobretudo na época em que este teólogo — e filósofo — viveu, destaca-se de maneira distinta em meio às filosofias da síntese. Ao passo que tais filosofias se caracterizavam por serem extremamente classistas, no sentido de que o pensamento filosófico daquela época era restrito a determinadas classes — homens livres, de determinada região geográfica, que dispusessem de tempo ou recursos para o ofício do filosofar, a filosofia agostiniana, noutra banda, parece se desvencilhar desse pensamento, embora inegavelmente beba dessas fontes, sobretudo das que foram influenciadas pelo pensamento de Platão.

Nesse sentido, vemos que o estilo filosófico de Agostinho, notadamente distinto da convicção classista do estilo filosófico helenístico, na obra Confissões em especial, demonstra compartilhar muito mais do estilo filosófico transdemográfico, distintivo da tradição da filosofia hebraica. Acerca disso, o filósofo Dru Johnson o descreve da seguinte forma:

Por “transdemográfico”, quero dizer que o objetivo do empreendimento filosófico nas Escrituras cristãs visa promover um corpo social discernente com perspectivas diversas, mas mutuamente enriquecedoras, da realidade. Nenhum indivíduo pode ser “o filósofo hebraico”. Nem Moisés nem Jesus se aventuraram em ser o filósofo singular; em vez disso, ambos foram retratados como especialistas em uma comunidade que podiam adequadamente levar outros a ver o que estava lá antes deles (…) As convicções transdemográficas não permitem um inclusivismo ingênuo, mas sim uma dispersão de perícia. Formas díspares de participação incluíam todos os que se juntaram a Israel. O sumo sacerdote, os profetas, os sacerdotes, os reis, os pais, os filhos, as mães, os leprosos, os migrantes, os juízes e os anciãos, todos tinham acesso e discernimento diferentes que traziam à comunidade (…) O foco epistemologicamente centralizado da filosofia hebraica visa aprimorar o discernimento na comunidade. (…) Esperava-se que sua tradição de sabedoria, ao contrário de todas as outras civilizações antigas, se espalhasse para todos: mulheres, homens, crianças, idosos, estrangeiros e nativos, igualmente (JOHNSON, 2023, p. 142, 144).

A fim de identificarmos as convicções transdemográficas na obra agostiniana, vejamos, pois, alguns excertos do livro Confissões em que o autor credita à sua mãe as orações que ela fez ao Senhor em favor do seu filho:

Ai de mim! E ouso dizer que calaste, meu Deus, enquanto eu me afastava de ti? Era assim, tu não falavas comigo? E de quem eram, senão tuas, as palavras que cantaste aos meus ouvidos pela minha mãe, tua fiel? Mas nada descia dali para o meu coração, para que eu o fizesse. De fato, ela queria (e lembro no meu íntimo como ela me admoestava com grande insistência) que eu não fornicasse, e, sobretudo, que não cometesse adultério com a esposa de alguém. Para mim, pareciam conselhos femininos, aos quais teria vergonha de obedecer. Mas eram conselhos teus e eu não sabia, julgava que tu permanecias calado e ela falava, enquanto através dela tu não calavas e eras menosprezado por mim, seu filho, filho da tua serva, teu servo (AGOSTINHO, 2017, 66-67, grifo nosso).

Mas minha mãe, tua fiel, chorou a ti por mim mais do que choram as mães nos enterros dos corpos, e tu me estendeste a mão do alto e arrancaste minha alma desta escuridão profunda. Com efeito, pela fé e o espírito que recebeu de ti, ela me via morto, e tu a ouviste, Senhor. Ouviste-a e não desdenhaste suas lágrimas, que escorrendo renavam a terra sob seus olhos em todos os lugares onde rezasse: ouviste-a (AGOSTINHO, 2017, 91-92, grifo nosso).

Com efeito, se passaram quase nove anos, durante os quais me revolvi naquele lamaçal profundo e nas trevas da falsidade, tentando amiúde me levantar e afundando sempre mais; enquanto isso, aquela viúva casta, pia e sóbria, como tu gostas, já mais animada pela esperança, mas não menos solícita nas lágrimas e nos lamentos, não deixava, em todas as horas de suas orações, de chorar por mim para ti, e suas preces chegavam à tua presença; tu, porém, ainda me deixavas rolar e me enrolar nessa escuridão (AGOSTINHO, 2017, 92-93, grifo nosso).

Dos excertos acima, é possível identificar alguns pontos: em primeiro lugar, o autor reconhece que eram do Senhor as palavras proferidas pela sua mãe e que, ao aconselhar o seu filho, era, na realidade, o Senhor aconselhando através da sua fiel — a sabedoria hebraica transdemográfica em ação; a filosofia hebraica que se expressa na exortação da sabedoria proverbial de que o filho deve ouvir a instrução do seu pai e não abandonar o ensino da sua mãe1

Vemos em Agostinho essa tendência transdemográfica atinente à filosofia hebraica; é distintivo do autor notar que as referências à sua mãe Mônica ao longo de sua obra estão lado a lado das referências à Simpliciano, pai do bispo Ambrósio (AGOSTINHO, 2017, p. 199), figuras proeminentes na igreja, e que influenciaram teologicamente a peregrinação de Agostinho ao conhecimento do Santo. De um lado, grandes figuras teológicas para a Igreja daquela época. Do outro, uma mãe, sem credenciais, sem formação filosófica ou grandes conhecimentos teológicos, mas possuidora de uma fé sem fingimento. Ambos coexistindo na mesma obra.

E ao referirmo-nos a uma “fé sem fingimento”, é mister vislumbrar o paralelo existente entre Mônica e Eunice, mãe de Timóteo, a quem o apóstolo Paulo se refere como filho amado, endereçando ao discípulo duas de suas epístolas.

Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, segundo a promessa da vida que está em Cristo Jesus, a Timóteo, meu amado filho: Graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor. Dou graças a Deus, a quem sirvo com a consciência limpa, como o serviram os meus antepassados, ao lembrar-me constantemente de você noite e dia em minhas orações. Lembro-me das suas lágrimas e desejo muito vê-lo, para que a minha alegria seja completa. Recordo-me da sua fé não fingida, que primeiro habitou em sua avó Lóide e em sua mãe Eunice, e estou convencido de que também habita em você (2 Timóteo 1:1-5, grifo nosso).

Tais versos apontam para a herança eterna deixada pela avó e pela mãe de Timóteo para ele: a sabedoria transdemográfica, notória e distinta na filosofia hebraica, possibilitou que duas mulheres, uma avó e uma mãe, influenciassem Timóteo para partilhar com elas de uma fé não fingida, que foi inculcada em Timóteo através da vida dessas duas mulheres, conforme prescreve a sabedoria hebraica em Deuteronômio: “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te” (Deuteronômio 6:6-7).

Conclusão

Semelhantemente, Mônica teve influência notória na vida do seu filho, Agostinho, muito antes de ele se tornar o bispo de Hipona, muito antes de se tornar o conhecido Santo Agostinho, que continua a permear e influenciar as abordagens teológicas e filosóficas da contemporaneidade. Mônica, sendo mãe, conheceu Agostinho enquanto bebê, e acompanhou o seu crescimento, em estatura e no desvelamento da Verdade. Ela permaneceu, com sua fé não fingida, intercedendo por sua vida e aconselhando-o ao Caminho, sendo, com isso, verdadeira mensageira do Senhor, transmitindo a filosofia hebraica em seu lar e de joelhos no chão.

Nesse aspecto, é notória a influência da sabedoria hebraica transdemográfica na filosofia de Santo Agostinho, reconhecendo em sua mãe a fé não fingida que nela habitou primeiro, e que, através das muitas orações dela que foram ouvidas pelo Senhor, enfim, também veio a habitar nele. Semelhantemente, em Eunice e Loide, e indo além, nas mães e heroínas anônimas dos ministérios de oração igrejas afora — das quais, em minha igreja local se intitulam “Desperta Débora”, são, à semelhança de Mônica e Eunice, um belíssimo retrato da sabedoria hebraica transdemográfica, onde as mães se colocam de joelhos para que seus filhos se coloquem de pé — de Timóteos a Agostinhos.


1 Provérbios 1:8-9.


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Referências Bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: Lorenzo Mammi. 1ª Edição. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017. 414 p. 

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. Localidade. Editora, Ano. Número de páginas.JOHNSON, Dru. Filosofia bíblica: A origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução: Igor Sabino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. 400 p.