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O temor de Yahweh e a literatura paralela do Antigo Oriente Próximo

Ensaio escrito por Carolina Freitas Costa, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Os cristãos protestantes reverberam o Sola Scriptura, um dos slogans da Reforma Protestante, a fim de apresentar a Escritura, este conjunto de textos divinamente autorizado como a autoridade máxima das questões da fé e através do qual se deve julgar toda a realidade, reconhecendo, assim, sua ampla autoridade (FRAME, 2013, p. 153). Não obstante, a maneira como o cânon é reconhecido não é o centro deste ensaio. Antes, busca-se compreender como as semelhanças existentes entre os textos sapienciais do Antigo Testamento, em especial o livro de Jó, e as culturas do Antigo Oriente Próximo demonstram a organicidade da Revelação Especial. Esta surge não em um vácuo histórico e cultural, mas num ambiente intelectual, dialogando com ele, ora se aproximando, ora se afastando.

Quanto à questão de como lidar com a similaridade ou até mesmo o uso da literatura paralela do Antigo Oriente Próximo nos livros sapienciais da Bíblia, esta análise busca respondê-la apresentando a tese de que Deus revela sua sabedoria a partir do ambiente intelectual em que Israel, seu povo escolhido, estava inserido. Os diálogos com as crenças e a cultura de outros povos não diminuem a inspiração divina; ao contrário, revelam a riqueza da revelação nos escritos sapienciais do Antigo Testamento, construindo uma sabedoria fundamentada no temor a Yahweh.

Ao se falar da sabedoria hebraica, é preciso reconhecer as diversas literaturas paralelas dos povos e culturas ao seu redor, especialmente a egípcia e a babilônica. Mesmo sendo, comparativamente, um povo menor e com menos poderio militar e político, Israel manteve-se íntegro em sua essência, sem assimilar completamente o pensamento circunvizinho (LÍNDEZ, 1999, p. 18). Conforme Líndez, as fontes de sabedoria do povo de Israel eram o lar, a experiência, as tradições oral e escrita, os debates entre os sábios e o intercâmbio a partir da peregrinação do povo e do comércio. “Os sábios de Israel souberam filtrar a sabedoria estrangeira segundo sua própria identidade nacional e religiosa” (LÍNDEZ, 1999, p. 34).

Esta sabedoria compartilhada entre Israel e seus vizinhos pode ser chamada de antiga ou internacional, sendo caracterizada por uma visão simplista do mundo, ingênua, considerando apreender da realidade um conhecimento firme e seguro, sem se atentar para o que está além da razão humana (LÍNDEZ, 1999, p. 59–60). Aliás, a razão humana é vista de forma bastante positiva por essa linha de pensamento, já que é a partir da observação e da reflexão do ser humano que se alcança a sabedoria, a qual, por sua vez, enriquece o homem. Não há, contudo, uma descrença em Deus (ou deuses). Pelo contrário, fundamentada na ideia que o ser humano é distinto do restante da criação, para a sabedoria internacional, o homem é o legítimo representante da divindade (LÍNDEZ, 1999, p. 61).

Por fim, é parte de tal sabedoria a existência de uma ordem do mundo. No contexto egípcio, esta ordem é conhecida como maat. O povo de Israel, por outro lado, entende essa ordem como a “presença e ação direta de Deus, Senhor da criação” (LÍNDEZ, 1999, p. 62). Tal ordem não está circunscrita apenas ao cosmos, mas também à vida moral do homem. Líndez conclui que “o sábio é, precisamente, aquele que consegue realizar em si mesmo a harmonia preexistente na criação” (LÍNDEZ, 1999, p. 63). O livro de Provérbios, de acordo com Líndez, relaciona-se com esta sabedoria internacional, simplista.

Entretanto, o otimismo em entender a realidade conforme esta ordem do mundo não permanece para sempre. A crise surge a partir de um enfoque nas experiências que vão de encontro ao que se preconiza na sabedoria antiga. Por exemplo, os bons sempre são premiados com êxito, enquanto os maus recebem a derrota e a desonra (LÍNDEZ, 1999, p. 154). O livro de e Eclesiastes (Qohélet) são o resultado desta crise na literatura sapiencial de Israel. 

A respeito do livro de, Hartley afirma que há alguns textos egípcios que demonstram similaridades com o texto hebreu, como “Os protestos do camponês eloquente”, “As advertências de Ipu-wer” e “Uma disputa sobre suicídio” (HARTLEY, 2023, p. 27–29). Todavia, o texto que detém maior similaridade com o livro de é o chamado de “Eu louvarei o Senhor da Sabedoria”, também conhecido como “Jó babilônio” (HARTLEY, 2023, p. 30).

Um homem de classe alta é súbita e inesperadamente reduzido a terrível sofrimento e lamenta sua enfermidade em detalhes repulsivos. Uma vez que ele não reconhece nenhum pecado em sua vida, busca por alguma solução para sua situação por meio das artes da adivinhação, mas em vão. Diferente de Jó, ele não repreende ou condena seu deus. Por um ano essa doença teimosamente resiste a todo esforço dos adivinhos de promover a cura. Enquanto isso, o sofredor continua seu lamento,  acreditando que os deuses algum dia irão demonstrar favor a ele. Por fim, ele tem três sonhos  nos quais Marduque, o deus principal, envia mensageiros para realizar rituais de exorcismos para promover a cura dele. Em gratidão, ele conclui com um longo hino de louvor a Marduque. Como Jó, o heroi babilônio lamenta sua enfermidade, é atormentado pela falta de resposta do reino divino e reconhece as limitações humanas, mas diferente de Jó, ele evita lidar com o problema da teodiceia (HARTLEY, 2023, p. 30–31).

Ainda sobre as influências da literatura paralela na composição do livro de , Hartley afirma que o autor era um sábio que possuía grande interesse nas culturas circunvizinhas, provavelmente proficiente em outras línguas (cf. 2Rs 18:26,28), hábil no uso de provérbios e de charadas enigmáticas, extenso conhecedor da natureza e da antiguidade, além de ser um dedicado servo de Yahweh (p. 42–45). Apesar das semelhanças, as diferenças no conteúdo são muito relevantes:

A crítica às crenças tradicionais a respeito de recompensa e punição são muito mais severas no livro de Jó. Essa comparação da literatura paralela com o livro de Jó mostra que o escritor pode ter sido influenciado pela rica tradição literária do Antigo Oriente Próximo a respeito do sofrimento, mas mais quanto ao formato do que quanto ao conteúdo (HARTLEY, 2023, p. 34).

Diferentemente dos textos paralelos, Jó adota para si um padrão de retidão, padrão este livre de um sistema de consequências que era comum no pensamento dos demais povos — quem faz o bem, recebe o bem; quem faz o mal, recebe o mal. Somente em Jó há um questionamento à divindade a respeito da quebra da Lei, de modo que ele não confessa pecados de maneira arbitrária, para aplacar a ira de Deus, como fazem os personagens das outras literaturas (WALTON, 2021, p. 157–158). Nas palavras de John Walton:

O procedimento que os amigos de Jó o instaram a realizar, em vez de aconselhar a adivinhação por descoberta, consistia em apaziguar Deus por meio de uma confissão abrangente […] Nesse aspecto, os amigos de Jó eram representantes de uma respeitada tradição sapiencial do antigo Oriente Próximo e também, de maneira inconsciente, representantes do argumento defendido pelo adversário. Isto é, se tivessem convencido Jó a seguir seus conselhos e fazer uma confissão abrangente apenas para apaziguar a divindade e voltar a ter o favor dela, a tese do adversário teria sido confirmada: a questão não era retidão, mas tão somente recompensa (WALTON, 2021, p. 329).

A orientação de Jó para a retidão estava muito além de um mero sistema de recompensas. O temor a Yahweh é o que o move. A aliança de Yahweh com Israel leva a um relacionamento com Ele (WALTON, 2021, p. 95). Nas expressões de devoção em Israel, a figura da alma (nephesh) sedenta por Deus (cf. Sl 42:1, 63:1, 119:20, 81) revela este anseio por “uma relação vibrante com Deus” (WALTON, 2021, p. 143), o que, por sua vez, era muito diferente da relação dos demais povos com seus deuses. “As pessoas buscavam os deuses para obter proteção e assistência, não para um relacionamento” (WALTON, 2021, p. 158). Assim, o aflito Jó desabafa diante do seu Senhor, ainda que fale muitas vezes de forma irrefletida e atrevida.

Desse modo, reconhecidas as semelhanças e as diferenças do livro de Jó e seus paralelos do Egito e Mesopotâmia, como compreender tal uso de textos (no caso do livro de Provérbios) ou estilos de culturas circunvizinhas? Para isso, é preciso assimilar a noção da inspiração orgânica das Escrituras. Segundo ela, o texto sagrado não é obra de um mero ditado de Deus, ou uma psicografia. Antes, a Palavra de Deus é registrada por seres humanos integrais, com suas personalidades e seus contextos. Nas palavras do teólogo norte-americano John Frame:

A inspiração orgânica significa que Deus usou todas as qualidades pessoais distintas de cada escritor. Deus usou as diferenças de hereditariedade, ambiente, criação, educação, dons, talentos, estilos, interesses e idiossincrasias para revelar sua palavra. Essas diferenças não foram barreiras que Deus teve de transpor. Pelo contrário, foram meios escolhidos por Deus para se comunicar conosco. A Palavra de Deus é complexa, caracterizada por múltiplas perspectivas e matizes. Deus usou a complexidade orgânica de pessoas humanas e as diversidades entre pessoas para se comunicar conosco de maneira completamente pessoal (FRAME, 2013, p. 134–135).

O teólogo holandês Herman Bavinck, que certamente observava as descobertas no início do século XX dos textos semelhantes das antigas culturas do Oriente Próximo, também compreende dessa maneira, caracterizando a revelação como histórica e psicologicamente mediada:

A antiga teologia interpretou a revelação seguindo um modelo demasiado mecânico e extrínseco, e prontamente a associou com as Escrituras. Atualmente, nossos olhos estão sendo cada vez mais abertos para o fato de que a revelação, em vários sentidos, é histórica e psicologicamente “mediada”. A revelação especial não somente está fundada sobre a revelação geral, mas também usou vários de seus elementos. O Antigo e Novo Testamentos não são mais mantidos isolados de seus milieus; e reconhece-se, agora, a afinidade entre ambos os Testamentos e os costumes e representações religiosos de outros povos. Israel associado aos semitas, e a Bíblia, à Babel. E, embora a revelação em Israel e em Cristo não perca nada em sua natureza específica, mesmo ela não veio à tona de uma única vez, mas progressivamente, conjuntamente ao progresso da história e à individualidade dos profetas, muitas vezes e de muitas maneiras. Assim como Cristo, o Filho de Deus, veio do alto, e, contudo, seu nascimento por meio de Maria esteve em preparação por séculos, do mesmo modo, toda palavra de Deus na revelação especial vem do alto, porém é trazida a nós por meio da senda da história (BAVINCK, 2019, p. 72-73).

Logo, a crença na soberania de Deus sobre todas as coisas permite entender que até mesmo a cultura humana pode ser utilizada como forma de revelação de Deus. Evidentemente, a chancela da inspiração surge apenas quando esta cultura é adequada ao temor de Yahweh e proclamada como Palavra de Deus. De acordo com o teólogo contemporâneo Igor Miguel: 

Quando se fala de revelação geral, tende-se a restringi-la à natureza, mas, de alguma maneira, Deus também se revela nos eventos históricos e na atividade cultural. […] É possível discernir muito acerca de Deus nas riquezas culturais, e sua glória pode ser percebida nas virtudes e sabedorias historicamente acumuladas. O livro de Provérbios, por exemplo, registra impressões sobre Deus que são inferidas de relações humanas concretas. E ainda que tais conhecimentos sejam teologicamente qualificados, não se pode simplesmente negá-los. Paulo fez uso desse modo de revelação durante sua pregação no Areópago, em Atenas (Atos 17), e se valeu da poesia pagã para convidar seus ouvintes a discernir o Deus que ele estava anunciando (MIGUEL, 2021, p. 54).

Portanto, com seu poder e controle sobre o mundo, Deus é capaz de incorporar elementos produzidos por povos que não faziam parte de sua aliança no registro de sua revelação especial. Isso tem como objetivo reorientar concepções para que se concentrem no temor a Ele, resultando não apenas na identificação de seu povo consigo, mas também no estabelecimento de um relacionamento.

As religiões dos povos, assim como toda a sua cultura, mostram-nos quanto desenvolvimento as pessoas podem ou não alcançar, de fato, não sem Deus, mas sem sua graça especial. Mas a graça especial que vem a nós centralmente em Cristo mostra-nos quão profundamente Deus pode descer a esse mundo caído e salvá-lo (BAVINCK, 2012, p. 343).


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Referências bibliográficas

BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília (DF): Monergismo, 2019. 342 p.

BAVINCK, Herman. Dogmática reformada: prolegômenos, volume 1. Tradução de Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. 672 p.

FRAME, John M. A doutrina da Palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 384 p.

HARTLEY, John E. Comentários do Antigo Testamento: Jó. Tradução de Edmilson Francisco Ribeiro. São Paulo: Cultura Cristã, 2023. ePub. 

LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução: José Benedito Alves. 3. ed. São Paulo. Edições Loyola, 1999. 272 p.

MIGUEL, Igor. A escola do Messias: Fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 208 p.

WALTON, John H. O pensamento do antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento: Introdução ao mundo conceitual da Bíblia hebraica. Tradução de Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2021. 416 p.