Ensaio escrito por Lucas Borges da Silva, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
Tecnologias envolvendo inteligência artificial e emulações da realidade já não são mais exclusividade de obras ficcionais há algum tempo. Tais avanços tornaram-se cada vez mais populares, integrando-se ao cotidiano pós-moderno, permeando tanto os ambientes de trabalho quanto de lazer. Embora essas inovações tenham trazido notáveis benefícios e comodidades aos seus usuários e comunidades, sua vasta potencialidade, em parte já reconhecida, demanda — ou pelo menos deveria demandar — moderação e responsabilidade por parte dos consumidores. Esses conceitos, porém, entram em conflito com o hedonismo predominante na busca pela felicidade no mundo sensível. Neste contexto, este ensaio propõe-se a explorar uma abordagem heurística do temor e tremor, buscando responder à seguinte indagação: de que maneira a sabedoria divina nos orienta a viver de forma plena e consciente diante das múltiplas tentações de uma redenção simulada?
O êxodo entre jardins: do Éden a Epicuro
Não é de hoje que a astúcia humana almeja usurpar o lugar de Deus. Desde o Éden, o coração humano, ainda livre em seu arbítrio, ansiou por tornar-se igual a Deus. Como consequência do pecado da desobediência, toda a criação geme e a vida sob o sol se tornou enfadonha. Todavia, o homem, afastado da comunhão relacional com seu Criador, não deixou de depositar sua esperança de redenção em algum lugar.
A emulação de funções cerebrais, computadores dotados de intelecto, imersão em realidade virtual, bancos de dados quase infinitos, buscadores avançados e controle total sobre universos simulados são características de uma era em que se tem a falsa sensação de que controlamos o mundo na palma de nossas mãos. Todo esse emaranhado de possibilidades encontra na existência frustrante um ambiente propício para um projeto redentor fundamentado na inventividade humana. O homem, expulso de seu habitat, busca seguir a vida em outro jardim, o jardim de Epicuro, na busca hedonista pela felicidade no mundo sensível.
O epicurismo, escola que disputou a primazia do pensamento intelectual no mundo grego e romano durante séculos, teve suas raízes no filósofo Epicuro, nascido em uma família de exilados atenienses em Samos. Epicuro enfatizava a realidade sensível, em contraste direto com a segunda navegação de Platão e seu mundo suprassensível, resultando em um deslocamento da metafísica para o físico. Epicuro entendia que a felicidade consistia na ausência de perturbação e dor e sua filosofia, baseada nos sentidos, visava facilitar a obtenção desse estado de prazer (KENNY, 2011, p. 125 e 126; MASCARO, 2023, p. 85).
Muito do pensamento epicurista ainda reverbera na contemporaneidade. A busca pela felicidade através das experiências sensoriais contrasta com uma realidade frequentemente permeada por transtornos e sofrimentos, dando lugar ao antirrealismo criativo1 (PLANTINGA, 2021, p. 53) característico destes tempos, que se encontra empoderado pelo amplo domínio da técnica. Desde que o Senhor fez o homem reto, ele insiste em se meter em muitas astúcias.
Hans Jonas e a heurística do temor
Séculos após Epicuro, Hans Jonas, um filósofo judeu nascido na Alemanha, emerge como uma figura proeminente no pensamento pós-moderno. Vivenciando as duas Grandes Guerras, Jonas traz consigo uma perspectiva singular, inaugurando um novo cenário no Ocidente, repleto de angústias e reflexões profundas sobre a natureza da ação humana diante das novas tecnologias. Ele se dedica à análise crítica das tecnologias e dos dilemas contemporâneos, argumentando que o homem tecnológico não foi devidamente preparado pelas filosofias do passado para enfrentar os desafios emergentes.
Considerado por alguns um autor distópico ou até mesmo tecnofóbico, Jonas direciona uma parte significativa de sua obra para a necessidade de integrar os avanços tecnológicos à ética. Em outras palavras, ele defende a importância de aproveitar a potencialidade humana na construção de uma evolução tecnológica responsável, estabelecendo diretrizes sobre como agir para alcançá-la.
O interesse jonasiano residiu em estabelecer uma filosofia ética distinta dos padrões éticos tradicionais. Para o autor, a transformação da natureza do agir humano, ou seja, a reformulação do agir humano imposta pelo contexto tecnológico, trouxe consigo novos desafios para o campo ético. Entendendo a ética como a ciência do agir, houve a necessidade de confrontá-la com as novidades da ciência moderna.
Assim, a heurística do temor, concebida como parte central da Ética da Responsabilidade de Hans Jonas (2006), focaliza o descompasso entre as previsões do futuro e a capacidade de ação. Na visão do filósofo, a tendência predominante na projeção do futuro é de um prognóstico negativo, destacando a importância de uma futurologia da advertência em contraposição às idealizações utópicas. O objetivo principal da heurística do temor é fornecer “freios voluntários” às inovações tecnológicas temerosas, projetando os efeitos a longo prazo e propondo diagnósticos sobre o que esperar, incentivar e evitar diante das mudanças tecnológicas.
O virtual e o pacto com a realidade: uma “heurística do temor e tremor”
A filosofia de Hans Jonas, especialmente sua ética da responsabilidade, mesmo desprovida de uma base na revelação divina, oferece preciosos insights e vestígios da verdade que merecem ser explorados. Jonas identificou habilmente a ameaça iminente na inventividade humana, uma destruição não resultante do fracasso em dominar a técnica e a natureza, mas paradoxalmente do sucesso excessivo.
Alia-se ao domínio extraordinário da técnica o aspecto revelacional e a verdade de que o detentor da técnica está espiritualmente morto. Todo prognóstico se torna negativo. Quando se trata de universos simulados e suas (dis)simuladas promessas de redenção, não podemos desafiar a realidade indefinidamente sem enfrentar as inevitáveis consequências. É preciso temer. No entanto, mais do que o temor, é essencial que o virtual seja reconciliado com o real, não havendo outra verdade senão a verdade revelada. Uma ética verdadeiramente responsável deve sempre considerar o Senhor. No temor do Senhor está a sabedoria.
Desde que o homem rompeu os laços relacionais com seu Criador no Éden, existe apenas um único e suficiente mediador capaz de reconciliar a criatura subcriada com o Criador ex nihilo2. Aquele que, sendo Deus, não usurpou o ser igual a Deus, ao contrário dos petulantes administradores da técnica. Jesus Cristo, homem, não negou a realidade de uma criação arruinada pelo pecado e, embora não precisasse, decidiu encarnar. Homem de dores, sendo tentado de todas as formas, ele experimentou, como nenhum outro, o “mundo sensível”; por fim, tomando sobre si a ira santa do próprio Deus, por amor aos seus.
Portanto, certos de que em breve tudo se tornará novo, sem mais perturbação e dor para os que Cristo estão, devemos desenvolver nossa salvação com temor e tremor, agradecidos ao Senhor pelas tecnologias que, em sua essência, não são más. Ainda assim, devemos desfrutar delas com responsabilidade, permanecendo firmes na realidade, precavidos contra a (dis)simulada redenção e vigilantes na observância dos divinos mandamentos até que o Senhor venha.
1 O antirrealismo criativo questiona a noção de uma realidade objetiva e independente da mente humana, argumentando que a realidade é moldada e criada através das estruturas do pensamento e da linguagem humanos. Nessa perspectiva, a existência das entidades e das estruturas fundamentais do mundo são consideradas como construções mentais, em vez de características intrínsecas da realidade externa. Do ponto de vista teísta, essa visão é vista como, no máximo, uma mera impertinência, uma fanfarronice risível, pois contradiz a crença na existência de uma realidade objetiva criada por Deus.
2 Expressão latina que significa “a partir do nada”, refletindo a crença de que Deus criou o universo sem utilizar materiais preexistentes, conforme descrito no livro do Gênesis.
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Referências bibliográficas
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução: Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. 2. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. 354 p.
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental-vol. II: Filosofia medieval. Tradução: Marcelo Perine. Edições Loyola, 2008.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
PLANTINGA, Alvin. Conselhos aos filósofos cristãos. Tradução: Vitor Grando. Brasília: Academia Monergista, 2021. 142 p.