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Análise da dialética da mesmidade e alteridade aplicada ao contexto político cristão brasileiro contemporâneo

Artigo escrito por Danilo Erly Achucarro Nogueira, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


“Como saber se a Igreja continua a pregar o mesmo Evangelho, à medida que chega a novos tempos e lugares?”1. A pergunta de Kevin Vanhoozer é central para o evangelicalismo brasileiro, marcadamente tão heterogêneo, onde traçar a linha entre a diferença cultural e a heterodoxia é o ponto-chave nesse mar de heterogeneidade. Não é esse, porém, um desafio exclusivo às igrejas (em sentido institucional). Por diversas vezes, sobretudo na era das redes sociais, a função de intérprete das Escrituras perpassa a atuação profissional, sendo desempenhada também por amadores. Nesse sentido, a partir da argumentação de Vanhoozer, pode-se compreender que os leigos também ocupam a posição de teólogos. Nas suas palavras:

Essa afirmação pode ser surpreendente, mas a lógica é simples: a existência de teólogos “profissionais” sugere que pastores e leigos — os que não são pagos para produzir teologia — são incapazes de elaborar teologia (porque não têm uma “inteligência brilhante”) ou então não têm a autoridade para fazê-lo (porque não têm as credenciais acadêmicas adequadas).A teologia é importante demais para ser deixada para os “profissionais”. […] A teologia é inevitável […]2.

Se é fato que amadores podem ser teólogos, é certo também que isso torna a teologia ainda mais sujeita a heterodoxias. De contextos, formação e até objetivos diversos, teólogos amadores têm menor grau de responsabilidade institucional com o que é produzido. Geralmente, as consequências individuais de divergir do cânon ficam restritas à reação pública — que modula entre rechaçamento (negativa) e popularidade (positiva). Em um país de maioria cristã, o uso da Bíblia como ferramenta de comunicação tem alto potencial de eco sobre a massa. Por essa razão, diferentes setores da sociedade têm lançado mão da função do teólogo para sustentar posições e alcançar objetivos próprios de seu nicho de atuação na esfera pública, apropriando-se do papel de teólogos públicos, segundo Vanhoozer: “De modo específico, a teologia pública diz respeito às formas e aos meios pelos quais indivíduos cristãos (e igrejas) devem testemunhar de sua fé na praça pública (i.e., na sociedade em geral)”3.

É nesse contexto que a política se apresenta como um campo onde o Evangelho tem sido trazido para o centro do debate público recente no Brasil, fomentado pelo forte crescimento da população evangélica. A presença do discurso cristão foi crescentemente sentida nas últimas três eleições presidenciais brasileiras. O risco de apropriação do texto bíblico para persecução de objetivos pessoais e políticos é, portanto, latente no cenário brasileiro. A possibilidade de produção de teologia herética com fins eleitoreiros evidencia a importância de observar o exposto por Vanhoozer sobre a “dialética da mesmidade e alteridade”4. Para tanto, esta pesquisa se dedicará a analisar as três teses apresentadas pelo autor em aplicação no cenário destacado. Em tempo, faz-se importante ressaltar o propósito exclusivamente científico e apartidário desta pesquisa, em fidelidade única ao texto bíblico e não a quaisquer ideologias político-partidárias.

Primeira tese: a Igreja diante da crise política pós 2013

Primeira [tese], algum tipo de diferença é inevitável porque a igreja caminha através do espaço e do tempo5.

A cena política brasileira está repleta de desesperança e desconfiança nas instituições democráticas. A população, dividida pela maior polarização ideológica da história do país, expressa baixos níveis de confiança no Governo Federal, Congresso Nacional e Partidos Políticos6. Além disso, uma parte significativa da população demonstra indiferença em relação à democracia ou até mesmo aceitação de um regime ditatorial7. Esse cenário complexo é resultado de uma série de eventos históricos, incluindo a ditadura militar, a estabilização econômica e avanços sociais nos anos 90, sob FHC e Lula, e os recentes escândalos de corrupção.

A origem da atual crise política teve marco nas manifestações de 2013, que trouxeram à tona insatisfação generalizada com a qualidade dos serviços públicos. O governo de Dilma Rousseff foi marcado por ajustes fiscais impopulares e escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato envolvendo a maior parte da classe política, que findaram em seu impeachment e no breve governo de Michel Temer. Essa crise abriu espaço para a ascensão de Jair Bolsonaro, que se apresentou como uma alternativa ao establishment político. Apesar do governo (2019-2022) marcado por controvérsias na gestão da pandemia, enfraquecimento das instituições e fragilidade nas políticas públicas, o movimento político do “bolsonarismo” tem se sustentado através de pautas ideológicas alimentadas em oposição ao petismo.

Em 2022, uma diferença de menos de 2 milhões de votos devolveu a Presidência da República a Lula. Bolsonaro, com 49,10%, teve nos evangélicos um dos pivôs de sua base eleitoral. Além disso, a liderança das igrejas segue, em sua maioria, fidelizada ao bolsonarismo, como indica a composição da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional. Dos parlamentares que compõem a bancada, mais da metade é alinhada ao bolsonarismo (119 de 228)8.

Segunda Tese: heterodoxia ambidestra

Segunda [tese], certas diferenças ameaçam a mesmidade e minam a fidelidade; a doutrina heterodoxa nos orienta para outro evangelho e nos convida a participar de outro drama9.

Se as diferenças contextuais implicam em inevitável alteridade na produção teológica, é fato que por vezes essas mudanças produzem resultados nocivos. Diante do panorama apresentado, diferentes grupos políticos brasileiros têm utilizado a interpretação bíblica para agir em resposta. Pode-se identificar, porém, que ao menos duas delas — aqui exploradas — resultam em divergências que implicam em heterodoxia, criando uma interpretação paralela do cânon. Trataremos de dois casos, em espectros políticos opostos, para ilustrar esse ponto.

O bolsonarismo e o texto de João 8:32

Não poucas vezes, Jair Bolsonaro utilizou trechos bíblicos para alicerçar suas propostas e atos de gestão. É certo que, por si só, essa prática não representa contrariedade ao cristianismo. Uma análise mais profunda, porém, pode identificar interpretações que destoam da identidade narrativa canônica. Para tanto, fixaremos a observação no trecho mais frequentemente citado por Bolsonaro durante seu governo, contido em João 8.32: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

O uso, pelo ex-presidente, do texto joanino se estendeu em diferentes canais e ocasiões. Em geral, o contexto do emprego do versículo sugere a ideia de “revelação de uma verdade escondida/mentira por seus inimigos políticos” (profissionais de imprensa, políticos adversários, ou “inimigos ocultos”). A narrativa que Bolsonaro atribui ao texto bíblico, nesses casos10, se afasta de uma interpretação canônica, pois incorpora o entendimento político de que a sua atuação pessoal é instrumento de liberdade ao povo brasileiro que traz à tona as verdades omitidas.

Em outros casos11, porém, o verso é utilizado sob a interpretação de uma “verdade política”. Isto é, como a revelação de uma prova irrefutável de que Jair Bolsonaro — talvez apenas ele — está disposto a apresentar, legitimado pela Palavra de Deus como argumento de autoridade. Por fim, há ainda uma terceira12 exposição comum do versículo por Bolsonaro que pode ser considerada a mais grave, uma vez que sustenta a narrativa herética que se formou em volta do líder político, comparando-o a um líder messiânico, ou ao menos a um profeta13.

O uso do texto bíblico pelo bolsonarismo como forma de sustentação de uma narrativa política demonstra que o compromisso primário, isto é, o ponto de partida da hermenêutica empregada, é a ideologia bolsonarista como significado de “verdade”. Vê-se, portanto, o cânon subordinado à política partidária, não o contrário. Nesse sentido, se Deus não é a origem da interpretação teológica, configura-se um “docetismo Teodramático”14, isto é, teoria que aparenta ser interpretação teológica, mas não passa de uma visão particular filosófica. É a total confusão do papel de dramaturgista com o papel de dramaturgo, o qual só o Senhor pode ocupar, conforme Vanhoozer. Na narrativa bolsonarista, Deus sai do papel de protagonista e dá lugar a Jair Messias Bolsonaro.

Novas narrativas veangélicas: a teologia liberal politizada

Do outro lado do espectro ideológico, surgiu nos anos recentes no Brasil um movimento que se define como “uma comunidade-plataforma da pluralidade de identidades evangélicas”15. Sob o mesmo contexto desafiador à igreja apresentado anteriormente, o Novas se vale de uma combinação da Teoria Expressivista-experiencial e linguística-cultural16 para produzir uma teologia pública que parte das diferentes  experiências interiores de uma comunidade eclesiástica marginalizada e reclama uma interpretação progressista do texto bíblico: “As Teologias são reflexo das experiências humanas com o divino e requeremos que cada vez mais teologias que descentralizem as narrativas de um padrão que não é representativo possam emergir, incidir e ser repercutidas”17.

O Novas apresenta em sua Agenda Evangélica Antifundamentalista18 o texto do Evangelho de João 15:12 para embasar sua posição liberal quanto à questão LGBT nas práticas da Igreja, bem como do Estado. De maneira semelhante ao seu adversário, o bolsonarismo, submete o trecho bíblico à visão filosófica que lhe é particular, gerando uma doutrina estranha ao teodrama19

Conclusão: em busca da terceira tese

Terceira tese, a mais importante, é que algumas diferenças são expressões de fidelidade e podem levar a um maior entendimento20.

É fato que o cenário de hiperpolarização tem posto a Igreja em um difícil desafio. À medida que o evangelho é chamado frequentemente ao debate público, encenar o teodrama preservando sua identidade exige, ao mesmo tempo, intimidade com o roteiro de Deus21 e sabedoria quanto às pressões sociais que permeiam a temática. À nossa vista, estão claros os exemplos de heterodoxia no âmbito político brasileiro. Mas como podemos, diante de tal complexidade, improvisar de modo a produzir diferenças que traduzam ainda melhor o Teodrama canônico?22 Essa é a questão que deve guiar a atuação do teólogo público que deseja se manter fiel ao drama narrado na Bíblia. Basear-se nela é, certamente, o primeiro passo.


1 VANHOOZER, K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. p.140.

2 Id., 2016, p. 36.

3 Ibid, p. 42.

4 VANHOOZER, K. J. op. cit., p.142.

5 Ibid, p. 42.

6 IPEC Inteligência. Índice de Confiança Social 2023. Disponível em: https://www.ipec-inteligencia.com.br/Repository/Files/2223/230196_ICS_INDICE_CONFIANCA_SOCIAL_2023.pdf. Acesso em: 5 de fevereiro de 2024.

7 Folha de S.Paulo. Datafolha: 74% dizem apoiar a democracia como melhor forma de governo no Brasil. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/12/datafolha-74-dizem-apoiar-a-democracia-como-melhor-forma-de-governo-no-brasil.shtml. Acesso em: 5 de fevereiro de 2024.

8 Poder360. Saiba quem comanda e quem integra a bancada evangélica no Congresso. Poder360. Disponível em: https://www.poder360.com.br/congresso/saiba-quem-comanda-e-quem-integra-a-bancada-evangelica-no-congresso/. Acesso em: 5 de fevereiro de 2024.

9 VANHOOZER, op. cit., p. 142.

10 Exemplo no Discurso e abertura da Assembleia Geral da ONU, em 24.09.2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-09/presidente-jair-bolsonaro-discursa-na-assembleia-geral-da-onu Também no Tweet de Jair Bolsonaro em 26.08.2019. Disponível em: https://x.com/jairbolsonaro/status/1166008237935796226?s=46

11 Exemplo no Tweet de Jair Bolsonaro em 18.08.2019. É possível notar ainda que nesse mesmo exemplo, Bolsonaro adiciona em novo Tweet o texto de Provérbios 28:19 como complemento ao argumento descrito. Disponível em: https://x.com/jairbolsonaro/status/1163054848805363712?s=46

12 Exemplo no Tweet de Jair Bolsonaro em 21.05.2019, com adição de imagem em que aparece em frente a um quadro com a cena da Santa Ceia. Disponível em: https://x.com/jairbolsonaro/status/1130797095122853888?s=46 Também em novo Tweet, em 26.02.2020. Disponível em: https://x.com/jairbolsonaro/status/1232791206662459392?s=46

13 MARTINS, Y. A religião do bolsonarismo: um ensaio teológico. Campo Grande: Episteme, 2021. p.43.

14 VANHOOZER, K. J. op. cit., p. 151.

15  Novas Narrativas Evangélicas. Quem Somos. Novas Narrativas Evangélicas. Disponível em: https://novasnarrativasevangelicas.com 

16 LINDBECK apud McGrath, 2015, p. 36 – 49.

17 Novas Narrativas Evangélicas. Agenda Evangélica Antifundamentalista. Novas Narrativas Evangélicas. p. 21. Disponível em: https://novasnarrativasevangelicas.com/wp-content/uploads/2023/09/Agenda_Evangelica_Antifundam

18 Ibid, 2022, p. 21.

19 VANHOOZER, K. J. op. cit., p.143.

20 Ibid., p. 142.

21  Ibid., p. 153.

22 Ibid., p. 155.


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Referências bibliográficas

MARTINS, Y. A religião do bolsonarismo: um ensaio teológico. Campo Grande: Episteme, 2021. 88 p.

MCGRATH, A. E. A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. tradução de A. G. Mendes – São Paulo: Vida Nova, 2015. 256 p.

VANHOOZER, K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 509 p.

VANHOOZER, K. J. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida/ Kevin J Vanhoozer e Owen Strachan.  Tradução de Márcio Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 256 p.