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O corpo como cativeiro da alma: a doutrina do ser humano em Platão

Ensaio escrito por Wladymir Soares de Brito Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

As ideias têm consequências. E, em se tratando das ideias do ateniense Arístocles, conhecido para a posteridade por seu apelido, “Platão”, suas consequências se fazem sentidas até hoje, vinte e quatro séculos depois. As reflexões platônicas acerca do que é o ser humano continuam a moldar grande parte dos rumos da cultura do Ocidente. Diante disso, o presente ensaio busca compreender um dos reflexos mais importantes da metafísica desenvolvida por Platão, a saber, sua antropologia do tipo idealista (HOEKEMA, 2018, p. 13). À luz dos diálogos Fédon e Teeteto, busca-se examinar a concepção dualista do corpo como o cativeiro da alma.

A concepção dualista do ser humano em Platão

Na tentativa grega de explicar o mistério entre o Um e o Muitos, a metafísica de Platão compreende as Ideias como a verdadeira causa das coisas. A matéria (hilé) é uma “sombra” de sua forma ideal (morphé) e o mundo da experiência sensível é moldado conforme o mundo das formas (FRAME, 2023, p. 131). Nesse sentido, a Teoria das Ideias de Platão, inspirada pelo misticismo orfírico e pitagórico, concebe o ser humano de uma maneira particular. Ela apresenta uma oposição entre a alma suprassensível, racional e imortal, e o corpo sensível, mortal e irracional (REALE; ANTISERI, 2017, p. 154).

No idealismo platônico, o ser humano não é compreendido como integral, mas como a soma de partes distintas e hierarquizadas: corpo (sôma) e alma (psyché) se distinguem, sendo a última mais importante. Para Platão, o ser humano é fundamentalmente a sua alma e, enquanto estiver “presa” em um corpo, ela estará mortificada (REALE; ANTISERI, 2017, p. 154). A concepção dualista retrata o corpo como “lugar do sensível” e a alma como “lugar do inteligível”. Esta visão é claramente exposta no diálogo Fédon, escrito por Platão durante seu período médio. Este texto discute a morte de seu mestre Sócrates e a imortalidade da alma nestes termos:

Parece que há uma vereda que nos leve, mediante o raciocínio, diretamente a esta consideração: nós, até quando possuirmos o corpo e a nossa alma permanecer aderente a um mal dessa espécie, jamais alcançaremos de modo adequado aquilo que ardentemente desejamos, ou seja, a verdade. (PLATÃO apud REALE; ANTISERI, 2017, p. 156).

Nossos corpos, fracos e imperfeitos, possuem a percepção sensorial, pela qual somos capazes de apreender os objetos sensíveis, o mundo material, o reino das aparências (RUSSELL, 2015, p. 177). Já a alma humana, perfeita e imortal, possui a razão (nous), com a qual podemos apreender as ideias, o mundo das formas (hyperuranion), o reino da realidade.

Se para Sócrates o corpo estava a serviço da alma, pois a ela devia a vida e suas capacidades, em Platão o corpo é compreendido de maneira negativa, com um obstáculo para a aquisição do conhecimento (RUSSELL, 2015, p. 178). As paixões e apetites (alogistikon) são a fonte de amores insanos, paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura. Por isso, é lugar de expiação da alma, seu túmulo e cárcere (REALE; ANTISERI, 2017, p. 154). Novamente recorrendo ao diálogo Fédon, é possível identificar como esta visão negativa acerca do corpo humano está clara nas palavras de Platão:

Com efeito, o corpo nos provoca inúmeras preocupações pela necessidade de nutrimento; por outro lado, as doenças, quando caem sobre nós, nos impedem a busca do ser. Além disso, ele nos preenche de amores, de paixões, de medos, de fantasmas de toda espécie e de muitas vaidades, de modo que, como se costuma dizer, verdadeiramente, por sua culpa, sequer nos é possível deter nosso pensamento em alguma coisa. Com efeito, guerras, tumultos e batalhas não são produzidos por outra coisa, a não ser pelo corpo e suas paixões. Todas as guerras nascem por afã de riquezas, e as riquezas, nós devemos por necessidade buscá-las por causa do corpo, pois nos tornamos servos das necessidades do corpo. E assim nós somos afastados da filosofia, por todas essas razões (PLATÃO apud REALE; ANTISERI, 2017, p. 156).

Para o Sócrates de Platão, em Fédon, portanto, o pensamento é um caminho melhor quando a mente está fechada em si e não é perturbada por sons, visões, dores ou prazeres, despedindo-se do corpo e almejando o ser verdadeiro (RUSSELL, 2015, p. 179).

Fuga do corpo e fuga do mundo: filosofar é se preparar para a morte

Desta concepção dualista entre corpo e alma decorrem os paradoxos platônicos da fuga do corpo como o reencontro do espírito e da fuga do mundo como o assemelhar-se a Deus. Segundo a doutrina do ser humano de Platão, vivemos, outrora, em um mundo no qual as Formas eram diretamente acessíveis a nós. Então, “caímos” daquela existência para o mundo dos sentidos, dentro dos corpos (FRAME, 2023, p. 131).

Platão entende que a alma deve procurar fugir o máximo possível do cárcere que a estupidez e a tolice do corpo sensível representam, para que, então, se possa alcançar a pureza do verdadeiro conhecimento do inteligível (RUSSELL, 2015, p. 178). O filósofo, portanto, é aquele que deseja a morte do seu corpo, para que a sua alma possa viver livre de suas amarras (REALE; ANTISERI, 2017, p. 155). As exigências físicas do corpo, portanto, nos desviam da vida espiritual, sendo um impedimento à busca da verdade. Este paradoxo platônico, que vê a fuga do corpo como meio de reencontrar o espírito, é claramente apresentado novamente no Fédon:

E a coisa pior de todas é que, se conseguimos ter do corpo um momento de trégua e logramos orientar-nos na busca de alguma coisa, eis que, de repente, ele se introduz em meio às nossas buscas e, por todos os lugares, provoca turbamento e confusão e nos atordoa, de sorte que, por culpa sua, nós não podemos ver o verdadeiro. Mas resulta verdadeiramente claro que, caso queiramos ver algo na sua pureza, devemos afastar-nos do corpo e olhar somente com a alma as coisas em si mesmas. E então somente, como parece, nos será permitido alcançar aquilo que vivamente desejamos e do qual nos declaramos amantes, ou seja, o conhecimento supremo: isto é, quando nós estivermos mortos, como demonstra o raciocínio, ao passo, enquanto somos vivos, não é possível (PLATÃO apud REALE; ANTISERI, 2017, p. 156).

Assim, na medida em que Deus é a medida de todas as realidades, só pode se tornar amigo de um ser tão sublime aquele que busca cada vez mais se assemelhar a ele. É por esta razão que o fugir do mundo significa o tornar-se virtuoso e, portanto, parecido com Deus. O paradoxo platônico do fugir do mundo para se assemelhar a Deus fica claro nestas páginas do diálogo Teeteto, escrito da velhice de Platão, cujo grande tema gira entorno da natureza da ciência:

Não é possível que os males desapareçam totalmente — porque é uma necessidade que haja algo contraposto ao bem, nem podem habitar entre os deuses, mas se movem na natureza mortal e neste nosso mundo aqui. É por isso que é preciso também esforçarmo-nos para fugir daqui para lá em cima o mais rápido. E fuga do mundo significa tornar-se semelhantes a Deus segundo as próprias possibilidades: e tornar-se semelhantes a Deus significa tornar-se justos e santos, e ao mesmo tempo sapientes (PLATÃO apud REALE; ANTISERI, 2017, p. 156).

Portanto, fugir do corpo quer dizer fugir do mal do corpo, mediante a virtude e o conhecimento. Similarmente, fugir do mundo quer dizer fugir do mal do mundo, também sempre mediante a virtude e o conhecimento. Por fim, seguir a virtude e o conhecimento quer dizer tornar-se semelhante a Deus (REALE; ANTISERI, 2017, p. 157). Se Sócrates defendia que a suprema tarefa moral do homem é o cuidado da alma, Platão vai além para advogar qual tal tarefa consiste na purificação da alma. Neste processo de elevação rumo ao supremo conhecimento do inteligível, a alma – que é a centelha da divindade dentro do homem — transcende os sentidos e se apodera do puro mundo do inteligível e do espiritual (REALE; ANTISERI, 2017, p. 157).

Em suma, a antropologia idealista de Platão considera o ser humano fundamentalmente como espírito, sendo seu corpo físico algo estranho à sua real natureza. O corpo humano participa da matéria, sendo, assim, algo de ordem inferior, razão pela qual é melhor para a alma partir sem ele (HOEKEMA, 2018, p. 13). 

O dualismo platônico sob escrutínio: uma breve consideração cristã

A dicotomia corpo-pessoa da modernidade tardia encontra suas raízes na concepção platônica do corpo como algo externo à alma, considerada o eu verdadeiro. As realidades imateriais ligadas à alma são boas e verdadeiras, enquanto as realidades materiais ligadas ao corpo são apenas cópias, aparências e engano. Por tais razões, o idealismo de Platão reserva à corporeidade dos seres humanos uma visão negativa, na medida em que as necessidades físicas são enxergadas como um obstáculo à apreensão da verdade. Cabe à alma se libertar do corpo e o caminho do sábio é se libertar das trivialidades deste mundo.

Contudo, é necessário reconhecer que a tensão entre o racionalismo da alma e das ideias e o irracionalismo do corpo e da matéria têm uma essência marcadamente religiosa (FRAME, 2023, p. 137). Assim, ao compreendermos a relação entre corpo e alma no idealismo platônico, fica claro como a defesa da ressurreição do corpo de Jesus Cristo foi motivo de escândalo para os gregos (HOEKEMA, 2018, p. 13). A forma como compreendemos a relação entre corpo e alma, portanto, não é uma questão apenas de debates filosóficos, mas de compromissos fundamentais do coração.

Conclusão

Por tudo isso, em oposição ao paganismo gnóstico de Platão, a visão cristã do ser humano como criatura feita à imagem e semelhança de Deus atribui à corporeidade o status de condição apropriada da existência humana (ALISSON, 2023, p. 29). A Criação é corpórea e, com a Queda dos seres humanos, a tendência ao pecado contaminou não apenas o nosso corpo, mas todo o nosso ser. É contra o pecado, e não contra o corpo, que devemos lutar.


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Referências bibliográficas

ALISSON, Gregg R. Teologia do corpo: vivendo com pessoas inteiras em um mundo fraturado. Tradução de José Pedro H. R. de O. Issa. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 2023. 304 p.

FRAME, John M. História da filosofia e teologia ocidental. Tradução de José Pedro H. R. de O. Issa. 1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 2023. 1.184 p.

HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. Tradução de Heber Carlos de Campos. 3ª Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. 288 p.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. I. Tradução de José Bortolini. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Paulis, 2017. 697 p.

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental – Livro 1: A filosofia antiga. Tradução de Hugo Langone. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 363 p.