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A busca por cosmovisões avalizadas

Artigo escrito por João Antônio Borghi Meireles Guimarães, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


Introdução

Com o passar dos anos, o termo cosmovisão tem se tornado cada vez mais comum em ambientes cristãos, principalmente naqueles dedicados à reflexão sobre teologia pública. A compreensão de que o mundo em sua totalidade é, de certa forma, subordinado à percepção individual é de grande auxílio para aqueles que buscam defender a validade da fé no debate público, mesmo que, a princípio, isso também possa implicar em um solipsismo problemático para qualquer debate. Diante disso, o presente artigo tem como propósito apresentar as implicações epistêmicas do conceito cosmovisão. Com isso, pretendemos demonstrar como essa ideia é, por natureza, contrária ao solipsismo e, consequentemente, apresenta parâmetros para a avaliação de percepções pessoais.    

1. Cosmovisão e solipsismo

Em seu livro Cosmovisão: A história de um conceito, David. K. Naugle nos apresenta a seguinte definição de cosmovisão:

Uma Cosmovisão, então, é um sistema semiótico de sinais narrativos que cria o universo simbólico definitivo que é responsável principalmente pelo modelamento de uma variedade de práticas humanas determinantes da vida. Ela cria os canais em que as águas da razão fluem. Estabelece os horizontes do ponto de vista de um intérprete pelos quais textos de todos os tipos são compreendidos. É aquele meio mental pelo qual o mundo é conhecido. O coração humano é seu lar e ela fornece um lar para o coração humano (NAUGLE, 2017, p. 415).

Aqui, cosmovisão é definida como o meio pelo qual enxergamos o mundo, a estrutura pela qual ele é organizado e dotado de sentido. Naugle não nos apresenta essa estrutura como algo exterior ao ser humano, algo imposto ao indivíduo. Cosmovisões nascem no coração humano e, por isso, estão intimamente entrelaçadas à sua identidade. Existe, porém, um problema. Se uma cosmovisão não é apenas fruto da percepção humana, mas também a estrutura pela qual essa percepção se orienta, como podemos avaliá-la?

 Essa questão, por sua vez, nos leva a outro problema: se não podemos julgar nossas próprias cosmovisões, como podemos lidar com a realidade concreta que existe além das nossas percepções? Podemos ao menos afirmar a existência de uma realidade concreta? Levadas às últimas consequências, as dúvidas acerca da capacidade humana de compreender uma realidade exterior ao próprio indivíduo estabelecem o cárcere do solipsismo. Afinal, não há justificativas para se crer na existência do “Outro” e há única coisa que nos resta é o “Eu”. 

Seria o solipsismo uma das implicações epistêmicas do conceito de cosmovisão? Uma percepção solipsista da realidade é claramente uma percepção antinatural, um artefato cognitivo dependente de um raciocínio que exclui a validade de toda experiência humana e abraça uma dúvida idólatra. Justamente por ser antinatural, não podemos compreender o solipsismo como uma consequência lógica do conceito de cosmovisão, afinal, ele depende da capacidade humana de se interagir com uma realidade externa ao “Eu”.

2. Cosmovisão e a realidade

O conceito de cosmovisão implica necessariamente na compreensão de que o ser humano é capaz de interagir com uma realidade exterior a si. Ora, afirmar a existência de uma visão de mundo e, ao mesmo tempo, negar a capacidade de se ver o mundo é uma contradição performática. Afinal, sendo a cosmovisão um produto do “Eu” com a realidade, essa relação apresenta caráter axiomático. Por mais que a dependência da capacidade de se interagir com um mundo não garanta a validade das faculdades humanas necessárias para tal feito, não podemos negar que a exclusão de toda experiência é tão absurda como a validação de toda experiência. 

Reconhecemos, então, como primeira implicação epistêmica do conceito de cosmovisão a existência de um mundo exterior ao indivíduo. A segunda implicação é a capacidade de se interagir com esse mundo externo. A realidade pode ser conhecida e, consequentemente, a humanidade foi dotada das capacidades para tal. Numa cosmovisão cristã, podemos afirmar que o Deus Criador nos criou numa realidade concreta e, mais do que isso, nos criou em pacto com toda a Sua criação. Enquanto toda cosmovisão deve, por necessidade, aderir a certo realismo, a cosmovisão cristã apresenta justificativas sólidas para tal. Aqui, não apenas compreendemos o porquê de podermos nos relacionar com o mundo, mas também o porquê de nossas limitações.   

3. Cosmovisões avalizadas

Caso abracemos a ideia de que todas as faculdades humanas são plenamente capazes de compreender a realidade, poderemos afirmar que, ao nos empenharmos no estudo de algo, nossa compreensão deveria ser idêntica a esse algo. Aqui, enfrentamos o risco de cairmos em uma cosmovisão materialista, onde o estudo das ciências naturais seria o suficiente para a correta compreensão da realidade. Ora, ao interagirmos com outras pessoas, costumeiramente percebemos divergências justamente naquilo que nos era certo. A interpessoalidade nos mostra que nossas faculdades pessoais são insuficientes para a construção de uma cosmovisão coerente com a realidade.

Seria, então, a própria interpessoalidade a responsável por avalizar uma visão de mundo? Podemos, por meio de certo mínimo divisor comum das cosmovisões humanas, alcançar uma compreensão plena da realidade? Em toda experiência humana, poucas foram as questões onde encontramos unanimidade. Ora, julgar cosmovisões por meio de um mínimo divisor não seria justamente aderir a um reducionismo? Afinal, não parece sábio crer que a realidade se resuma naquilo onde os homens encontram um aceitamento comum.

Vimos que a existência de cosmovisões implica na capacidade de se interagir com o mundo, mas se nossas faculdades perceptivas são limitadas, como podemos rejeitar os aspectos falsos de uma cosmovisão e justificar seus aspectos verdadeiros? Por mais que a experiência empírica e as relações interpessoais sejam insuficientes para validar uma cosmovisão, elas ainda contribuem para tal feito. Afinal, uma cosmovisão que não se relacione de forma coerente com a realidade empírica e se confine na mente de um único indivíduo não nos parece digna de credibilidade. Todavia, ainda precisamos de um critério validação e é na cosmovisão cristã que encontramos uma proposta coesa. 

Os problemas levantados acima não são estranhos ao cristianismo. Se o pacto é o meio pelo qual a humanidade se relaciona com a criação, a quebra desse pacto traz duras consequências para esse relacionamento. Essa é a narrativa cristã. Ao desobedecer seu Criador, quebrando, assim, um pacto, Adão, e consigo toda a humanidade, acabam tendo sua identidade ferida e, consequentemente, todas as suas faculdades perceptivas. Assim, não é a razão, a experiência, ou mesmo o consenso que levarão o homem a uma compreensão plena da realidade, pois seus olhos estão cegos e seu coração duro como pedra, de certa forma, incompatíveis com uma criação que expressa a glória de Deus.

Claro, não temos apenas uma justificativa para o problema, mas também sua solução. A narrativa cristã é uma narrativa de redenção. Deus, em Cristo, redime sua criação. No tocante às cosmovisões, Deus, em Cristo, por meio das Sagradas Escrituras, se revela ao homem. Aqui encontramos a peça que faltava. O ser humano é incapaz de encontrar uma verdade plena sobre o mundo por si mesmo, por isso, o evangelho nos lembra que somos dependentes. Esse é o critério último que o cristianismo apresenta para a validação de cosmovisões: A coerência com a revelação divina.

Conclusão

Por mais que um solipsismo puro seja estranho às nossas mentes, muitas vezes vivemos como se nossas percepções reinassem sobre a realidade que nos cerca. Vivemos como se fôssemos aqueles dotados de definir o sentido do mundo à nossa volta, mas isso não passa de ilusão. Mesmo quando buscamos critérios exteriores à nossa individualidade para dirigir nosso mundo, tendemos a entronizar as ciências, os sábios, as comunidades as quais pertencemos, mas isso ainda não passa de ilusão. Comumente, sustentamos nossas cosmovisões sobre ídolos, o que nos leva a compreensões totalmente distorcidas da realidade e a uma incapacidade de interagirmos de forma correta com o mundo ao nosso redor. A boa notícia desse artigo é que as falhas de cada um desses ídolos são evidentes e, quando encaramos cada uma delas, somos convidados a reconhecer as nossas cosmovisões como dependentes da graça do Deus trino. 


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Bibliografia 

NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Tradução de Marcelo Herberts. Brasília, DF: Editora monergismo, 2017. 487 p.