Ensaio escrito por Lucas Macedo, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
A modernidade trouxe consigo uma nova consciência histórica. O homem se colocou no centro da história e o início dessa empreitada foi promissor. Desde a medicina à cosmologia as novas descobertas tornaram o horizonte otimista. Mas, afinal, qual o motivo-base renascentista? Bob Goudzwaard utiliza três historiadores para trazer luz a esta questão: Alfred Von Martin enfatiza o movimento de emancipação da nova burguesia que buscava um novo estilo de vida para o lugar da ética da igreja católica medieval que foi desintegrada; por sua vez, para Dagobert Frey, a pessoa individual passa a ser o novo ponto de partida de toda a realidade; por fim, Jacob Burckhardt destaca a descoberta do mundo e o lugar do homem nele (GOUDZWAARD, 2019, p. 42). Segundo o autor holandês:
A despeito das diferentes ênfases de interpretação, esses escritores compartilham de um mesmo tema subjacente, a saber, o nascimento de uma nova imagem do homem e do mundo, na qual, nas palavras de Peter Gay, “o homem é livre, o dono de seu destino, não preso ao seu lugar numa hierarquia universal, mas capaz de todas as coisas”. Em outras palavras, a terra se torna domínio do homem como a plataforma e o instrumento com o qual ele pode se perceber nas artes assim como na ciência, no comércio assim como no seu contato com o outro sexo. O homem direciona sua atenção para este mundo para ter um melhor entendimento dele, e, consequentemente, de si mesmo (GOUDZWAARD, 2019, p. 42).
Essa mudança de ethos traz consigo uma mudança profunda na imaginação. Não é à toa que grandes nomes como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, Botticelli — apenas para citar alguns — nascem nesse período. Com esse novo caminho imaginativo também surge a literatura utópica. O termo utopia foi criado por Thomas More para intitular seu romance filosófico que foi uma das obras mais influentes de sua época.
Com um novo caminho à frente, uma das perguntas que fica é: qual o limite do ser humano? Qual o limite da sua capacidade? As suas principais frentes: a humanista e a protestante. A redescoberta da res publica, que agora colocava todo cidadão como responsável nos assuntos sobre a sociedade é um dos motivos utilizados por ambas, porém, existe uma bifurcação. O modo da Reforma — em especial em Calvino —, e o do humanismo são eminentemente distintos. Segundo o teólogo reformado Herman Bavinck,
Deus, o mundo e o homem são três realidades com as quais toda ciência e filosofia se ocupam. A concepção que formamos deles, e a relação na qual estabelecemos cada um deles com o outro, determinam o caráter de nossa visão do mundo e da vida, o conteúdo de nossa religião, ciência e moralidade. (BAVINCK, 2019, p.129)
Isto posto, no presente ensaio exploraremos as diferenças essenciais entre estas duas visões no que diz respeito a estes três pontos.
Humanismo e a Utopia
A redescoberta A República de Platão encantou a modernidade e influenciou Thomas More em sua obra Utopia. Segundo Kuiper, “a história foi bastante ao encontro do ideal dos humanistas que, profundamente interessados em renovações pedagógicas, achavam que uma pessoa purificada pelo conhecimento ingressaria num futuro melhor” (KUIPER, 2019, p.58). Por isso, os habitantes de Utopia eram totalmente guiados pela razão e qualquer pessoa utilizando-a reconheceria as escolhas feitas pelo seu povo como corretas.
A consciência histórica moderna trouxe uma nova esperança: o homem como um ser capaz de aperfeiçoar a si mesmo, a sociedade e o mundo. A história passa a ser vista como um processo gerido pela humanidade em busca de um progresso a partir da razão e da educação. Para eles, era possível substituir o que é imperfeito pelo perfeito. Roel explica que
A utopia sempre teve uma função de crítica social. Utopia oferece a imagem de uma “comunidade” que pode servir como exemplo para “países do nosso círculo civilizatório”, como formula More. É muito significativo ver os pontos em que More aplica os contrastes. Utopia é uma sociedade em que moram e trabalham pessoas letradas, na qual as crianças e doentes são bem cuidados, em que não há punições bárbaras e ninguém pode ser preguiçoso ou inútil. Os moradores são sedentos por conhecimentos novos e também deixam se guiar pelo desenvolvimento da sociedade (KUIPER, 2019, p. 59).
A utopia, apesar de ser um “não lugar”, tem um caráter pedagógico. Seu objetivo é ditar o norte da sociedade e mostrar os seus reais valores. Pensando nos três pontos abordados por Bavinck, o centro da realidade humanista é o homem, mas não qualquer um, é o ser humano amante da ciência e guiado pela razão e o caminho para esse homem ideal é a educação. Goudzwaard mostra que a Renascença se encontra entre a Idade Média e um novo período, por isso ela está na fronteira entre o cristianismo e o humanismo e ambos ainda estavam muito misturados (GOUDZWAARD, 2019, p. 43). Mas, em geral, a proposta humanista vê Deus como parte de um sistema, o que difere do motivo-base da Reforma Protestante. Sua relação com o cosmos é uma relação de aperfeiçoamento. Se o ser humano é o centro histórico, cabe a ele explorar o mundo e fazê-lo progredir segundo seus ideais, utilizando a razão e a ciência para isso. Todavia, o pensamento utópico criou frustração e ansiedade. A terra prometida que parecia estar próxima começou a se parecer mais com uma miragem do que uma realidade. Nas palavras de Kuiper:
Com isso, o pensamento utópico faz com que se olhe além dos limites das próprias possibilidades e condições. A força desse pensamento utópico é surpreendente. Ela explica a dinâmica contínua da modernidade, mas igualmente os muitos acidentes que causou. A utopia muitas vezes foi a legitimação da violência contra um presente concreto. Entre o legado da utopia estão as vítimas de ideologias e ditadoras. De modo mais sutil, o pensamento utópico leva a formas de indiferença e negligência do que fica para trás na história. Por fim, a utopia alimentou o pensamento de que é possível realizar um outro mundo e parece suficientemente forte para desregular o mundo do presente concreto (KUIPER, 2019, p. 58).
A Reforma Protestante e a esperança
A Reforma Protestante também resgata as suas fontes, em especial Agostinho de Hipona. Ela se preocupava com a res publica, entretanto, a base para a criação do bem comum não era a razão autônoma, mas, sim, a lei de Deus. Para os reformadores a vida natural — e isso incluía a economia — precisava ser santificada por Deus, mas não significava uma mediação da igreja para chegar neste propósito. Devido à sua consciência da amplitude do pecado, eles eram apreensivos quanto aos perigos da compulsão pelas riquezas que acompanhavam a autonomia do comércio e da indústria (GOUDZWAARD, 2019, p. 40-41).
Os reformadores tinham uma visão de mundo onde a expectativa do futuro não era dependente de uma sociedade perfeita, onde fariam tudo para alcançá-la, pois sua confiança estava na soberania divina. Para eles, a vida cristã exigia um padrão neocriacional que transforma e alcança todas as áreas e, com isso, a Reforma não atingia o “espírito” como algo interior e abstrato, mas envolvia uma nova maneira de viver a vida no presente. Segundo Kuiper:
O interessante em Calvino é o fato de que ele partilha do ponto de partida de crítica social dos humanistas e, apesar disso, desenvolve-se como um pensador antiutópico. Melhor ainda: ele combinava o ímpeto reformista dos humanistas com as expectativas declaradamente antiutópicas concernentes ao homem e à sociedade. […] A primeira frase de As Institutas destaca o seguinte: a verdadeira sabedoria consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Esse autoconhecimento humano só se é possível na reflexão das revelações divinas. O autoconhecimento ensina que o homem é um ser frágil e dependente, provido de uma natureza má, ou seja: por si só ele não está em condições de escolher e fazer o bem. Só é capaz de ser melhorado até certo grau, diria Calvino (KUIPER, 2019, p. 67).
A Reforma Protestante e a esperança
A Reforma Protestante também resgata as suas fontes, em especial Agostinho de Hipona. Ela se preocupava com a res publica, entretanto, a base para a criação do bem comum não era a razão autônoma, mas, sim, a lei de Deus. Para os reformadores a vida natural — e isso incluía a economia — precisava ser santificada por Deus, mas não significava uma mediação da igreja para chegar neste propósito. Devido à sua consciência da amplitude do pecado, eles eram apreensivos quanto aos perigos da compulsão pelas riquezas que acompanhavam a autonomia do comércio e da indústria (GOUDZWAARD, 2019, p. 40-41).
Os reformadores tinham uma visão de mundo onde a expectativa do futuro não era dependente de uma sociedade perfeita, onde fariam tudo para alcançá-la, pois sua confiança estava na soberania divina. Para eles, a vida cristã exigia um padrão neocriacional que transforma e alcança todas as áreas e, com isso, a Reforma não atingia o “espírito” como algo interior e abstrato, mas envolvia uma nova maneira de viver a vida no presente. Segundo Kuiper:
O interessante em Calvino é o fato de que ele partilha do ponto de partida de crítica social dos humanistas e, apesar disso, desenvolve-se como um pensador antiutópico. Melhor ainda: ele combinava o ímpeto reformista dos humanistas com as expectativas declaradamente antiutópicas concernentes ao homem e à sociedade. […] A primeira frase de As Institutas destaca o seguinte: a verdadeira sabedoria consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Esse autoconhecimento humano só se é possível na reflexão das revelações divinas. O autoconhecimento ensina que o homem é um ser frágil e dependente, provido de uma natureza má, ou seja: por si só ele não está em condições de escolher e fazer o bem. Só é capaz de ser melhorado até certo grau, diria Calvino (KUIPER, 2019, p. 67).
Analisando as três realidades levantadas por Bavinck, podemos notar que as respostas do reformador suíço são de outra ordem. Para ele, a revelação é a chave para um relacionamento com Deus e através desse relacionamento é possível conhecer a Deus e a si mesmo. Com isso, as dinâmicas sociais mudam completamente, pois direciona a responsabilidade humana e suas vocações nas práticas presentes. Essas vocações envolvem as suas relações interpessoais e suas relações com o mundo ao seu redor. Todas elas precisam ser redimidas por Deus para poderem estar em seu lugar certo.
Jesus, quando foi questionado por fariseus sobre os dois maiores mandamentos, respondeu: amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a ti mesmo. O pensamento reformado resgata esse padrão para as relações. Amar a Deus — ter um relacionamento com Ele — é a pressuposição necessária para se relacionar com o próximo e com o mundo criado por Ele. Seu pessimismo quanto à natureza e a capacidade humana de fazer o bem não os levava ao desinteresse pelo mundo criado. Ao contrário, a crença de que o Reino de Deus já chegou e que eles deveriam viver com os padrões desse reino os levava a viver e buscar uma sociedade melhor no presente, confiando na provisão divina. Mais uma vez, Kuiper nos auxilia:
As forças antiutópicas que o pensamento utópico evocou desde o princípio se voltam justamente contra essa crença no homem perfectível com os seus ideais utópicos. A crítica não era contra o desejo de liberdade, harmonia, completude e felicidade como tal, mas contra a suposição de que o homem pode alcançá-las pela elevação de um dado presente (KUIPER, 2019, p. 63).
A expressão latina Coram Deo expressa essa nova vida proposta pelos reformadores. Se relacionar com Deus é viver diante Dele. Essa atitude os leva a buscar liberdade, completude, harmonia e felicidade Nele. Nesse sentido, sua desconfiança está ligada à incapacidade humana de encontrar todas essas coisas sem Deus. Esse é o modo de vida neocriacional iniciado na morte e ressurreição de Jesus.
Conclusão
Se antes o humanismo e o cristianismo estavam misturados, seus caminhos tomaram direções completamente opostos. A ênfase humanista caminhou para a autonomia completa do ser humano. Com isso, Deus se tornou secundário. Para alguns autores, Ele é uma necessidade para um sistema filosófico, enquanto para outros Ele é só uma necessidade de causa; para outros, Ele deixa de existir e para alguns ele precisa deixar de existir para que o projeto realmente humanista passe a ter forma. O pensamento utópico segue se manifestando em diversas correntes no mundo contemporâneo e a sobreposição do futuro em detrimento ao presente continua a fraturar a sociedade.
Por outro lado, Deus tem levantado cristãos por todo o mundo para exercerem os seus chamados no mundo presente, transformando as suas vidas e guiando-os a viver o padrão de vida neocriacional e, com isso, causando impactos profundos. C. S. Lewis foi assertivo ao dizer:
A Esperança é uma das virtudes teologais. Isso significa uma visão constantemente voltada para a frente, para o mundo eterno, não (como algumas pessoas modernas pensam) uma forma de escapismo ou ilusão, mas uma atitude típica de um cristão. Isso não significa que devamos deixar o mundo presente do jeito que está. Quem investiga os registros da história descobre que os cristãos que fizeram mais pelo mundo presente formam justamente aqueles que mais pensaram no porvir […]. Desde que os cristãos deixaram de pensar amplamente no mundo vindouro, tornaram-se ineficazes neste mundo. Aspire o Céu e terás a terra de “lambuja”; aspire à Terra e não terá nenhum dos dois. (LEWIS, 2017, p.180).
Em outras palavras, viver diante da face de Deus é a chave para uma vida cristã transformadora.
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Referências bibliográficas
BAVINCK, Herman. A filosofia da Revelação. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo, 2019. 342 p.
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Tradução Leonardo Ramos. Viçosa: Ultimato, 2019. 280 p.
KUIPER, Roel. Capital Moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução Francis Petra Janssen. Brasília: Editora Monergismo, 2019. 310 p.
LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Tradução de Gabriele Greggersen. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. 288 p.