Artigo escrito por Thiago Botelhos, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
Introdução
A sociedade do século XXI se encontra em uma situação de desconexão. Esta se manifesta em três macro condições: globalização, informatização e individualização (KUIPER, 2019, p. 39). Enquanto a globalização expande o imaginário do indivíduo, fazendo-o projetar sua vida em diferentes localidades e experimentando diferentes culturas, a informatização nos coloca diante de infinitas possibilidades de escolha a todo tempo, tornando as decisões algo pesado e carregado de incertezas e insegurança. No paralelo, perdemos a nossa confiança nas relações sociais, econômicas e políticas, tornando a vida em sociedade um risco constante. “A perda de confiança social e institucional, na verdade, tem tudo a ver com os padrões relacionais cada vez mais abstratos e (literalmente) mais distantes” (KUIPER, 2019, p. 286). Desta forma, tudo o que resta é o próprio indivíduo lidando com o seu próprio projeto de vida. Temos assim, para completar a tríade da desconexão, o individualismo na sua essência.
Essa tríplice condição nos leva a um problema ainda mais profundo: a desmoralização da cultura. Nas palavras de Kuiper:
A sociedade pós-moderna é caracterizada por uma abrangente cultura do desprendimento. O que deveria estar ligado não quer mais se conectar… esse desprendimento reforça a si mesmo pelo desaparecimento das atitudes fundamentais morais… a sociedade pós moderna pensa de forma construtivista sobre relações, em termos de contrato, acordo e projeto e não com base numa lealdade duradoura e no compromisso de cuidar (KUIPER, 2019, p. 43-44).
Neste sentido, percebemos que as práticas morais (amor, fidelidade, afeto, respeito mútuo) que deveriam sustentar os laços comunitários, foram substituídas por práticas utilitaristas e pragmáticas que acabam minando os relacionamentos. Inúmeras relações que não eram contratualistas passaram a ser, como o casamento, a relação entre pais e filhos, as amizades, para não mencionar algo que, para muitos, já nem faz mais sentido: servir à pátria ou à sua comunidade local.
Todo este cenário não afeta apenas a esfera da ética e da moral, ela perpassa todas as nossas experiências temporais, incluindo a econômica, influenciando definitivamente a maneira como lidamos com o dinheiro. Em um contexto assim, como um planejador financeiro deveria aconselhar seus clientes? Até que ponto a metodologia de trabalho reforça, incentiva ou simplesmente ignora o fato de que o cliente usa seu próprio dinheiro apenas no sentido de validar o seu projeto de vida individualista?
Pacto vs. Contrato
Antes de lidar mais diretamente com essas aplicações práticas, faz-se necessário construir uma base argumentativa a partir da distinção entre relações contratuais e relações pactuais. As duas são de extrema importância para o pleno funcionamento de uma sociedade, mas suas particularidades nos ajudam a entender que o capital moral (entendido como: a capacidade de se preocupar com o outro) é formado de maneira preponderante em comunidades pactuais, e que, abrir mão desse tipo de laço traz consequências morais a uma sociedade.
Os contratos ligam as pessoas condicionalmente. Neles, existe uma disposição para compreensão mútua, com regras de entrada e saída. Aqui estão tipicamente associações especializadas, sindicatos, clubes e empresas. Nesse tipo de relação, a conexão entre as pessoas acontece apenas se houver interesse bilateral e não envolve, necessariamente, preocupação com o outro. “O pensamento contratual imagina a sociedade como uma sociedade de interesses, mas não oferece nenhuma garantia de estabilidade social” (KUIPER, 2019, p. 180).
Já a relação pactual vai além. Ela se desenvolve a partir do compromisso de não abandonar o outro e de preocupar-se com ele, o que, nas palavras de Kuiper, significa uma existência preocupada-responsiva (KUIPER, 2019, p. 134). O que faz uma relação deixar o status de contrato e assumir a posição de pacto é a capacidade das pessoas de irem além de acordos e fazerem promessas de cunho incondicional.
Kuiper ainda trata de três pilares que nos ajudam a compreender porque a comunidade pactual é o lugar propício para formação de capital moral (KUIPER, 2019, p. 159). Em primeiro lugar, temos a durabilidade, que estabelece que o relacionamento longevo é crucial para a moralidade. Nenhuma família pode melhorar se o marido troca de esposa a cada quatro anos, por exemplo. Assim como, nenhuma igreja pode prosperar se o pastor é substituído a cada ano. Leva-se tempo para laços significativos serem formados. Em segundo lugar, está a inclusividade. Com isso, Kuiper quer dizer que uma comunidade formadora de capital moral é bastante abrangente ao envolver muitas áreas da vida, diferente de uma associação de música, por exemplo, onde há apenas um objetivo específico: a produção musical. Em terceiro e último lugar, está a questão hierárquica. As relações assimétricas ajudam na compreensão de uma responsabilidade pelo outro. Na relação de autoridade entre pai e filho, por exemplo, nasce uma consciência moral.
Diante disso, será que um planejador financeiro estaria disposto a superar a inicial desconexão com o outro a partir de uma atitude criativa que tem como base um compromisso de amor ao cliente? Como este profissional seria capaz de pavimentar um possível caminho para contribuir para a construção de capital moral?
Indo além de meros acordos
Uma vez que entendemos que associações são basicamente relações contratuais, poderíamos concluir que não lhes cabe promover pactos. Mas isso seria um equívoco. Em certa medida, o cumprimento de contratos exige capital moral emprestado das comunidades morais. Além disso, toda associação poderá se beneficiar de práticas que promovem o bem comum e que praticam o princípio da alteridade.
Portanto, enquanto guia, o planejador financeiro pode e deve se comprometer com a formação de capital moral a partir de duas vertentes paralelas: (1) fazendo promessas aos clientes; (2) incentivando para que os clientes façam o mesmo com as pessoas à sua volta. Mas será que é isso que cabe ao planejador financeiro? Não estaria ele extrapolando as linhas éticas de um trabalho que deveria se concentrar em questões econômicas? Estas são perguntas legítimas, e apenas uma convicção profunda sobre as funções do dinheiro poderão trazer novos paradigmas para a atuação do planejador.
Suponhamos que um planejador esteja lidando com o seguinte caso: um casal que demonstra uma relação disfuncional em torno do dinheiro. O marido tem seu hobby predileto e não mede esforços financeiros para que ele seja financiado da forma que merece. Do outro lado, a esposa tem uma rotina extenuante, com trabalho fora e dentro de casa, incluindo as crianças. Ela não vê outra forma a não ser simplesmente gastar o dinheiro para cobrir os gaps emocionais, ainda que com a desculpa de estar cuidando da casa e dos filhos. Ainda que o cenário contenha questões legítimas, o ponto central é que os parceiros começaram a seguir caminhos separados quando se tornaram incapazes de dialogar sobre um projeto de vida em conjunto.
Nesta situação, o conselheiro precisa pensar em formas de conduzir uma conversa que promova o projeto de vida familiar, ou ainda antes, descobrir junto do casal se existe algum projeto comum. Um projeto de vida bem construído sempre irá se desdobrar na realidade cotidiana. O dia a dia ordinário, passando por como uma família gasta seu tempo e seu dinheiro, é o que prova se o projeto de vida sendo construído é de ordem familiar e pactual, ou de ordem contratual e individual.
Neste exemplo, o planejador tem a responsabilidade de ressaltar a função do dinheiro não apenas como meio para alcançar uma vida confortável, mas como um testemunho de amor, fidelidade e preocupação com o outro e com o mundo. Um planejador que se restringe ao contrato, está ocupado em quitar dívidas, formar uma reserva de emergência, otimizar gastos e aumentar a rentabilidade dos investimentos. Já um planejador que pratica uma existência preocupada-responsiva, é capaz de fazer promessas do tipo: “você não estará mais sozinho para tomar grandes decisões financeiras”, “eu não vou entrar em conflitos de interesse, lhe oferecendo produtos fora de contexto”, “conte comigo para conversas difíceis e para dizer o que precisa ser dito”, “eu estou disposto a te ouvir, até entender de verdade”, “antes de me preocupar com os seus números, eu quero me preocupar com a sua vida”. A pergunta central aqui é: o que dá os contornos do relacionamento entre o planejador e o cliente: o paradigma contratual utilitarista ou o paradigma pactual do cuidado?
Considerações finais
Podemos concluir que o planejador financeiro só consegue exercer plenamente seu chamado se for reconhecido como uma pessoa confiável. Esta confiança não é construída a partir de relações contratuais, mas, sim, a partir de comunidades morais. Portanto, o profissional que reconhece as práticas morais como sustento das relações contratuais com os seus clientes, precisa ter de onde pegar esse capital moral emprestado. E de onde viria esse capital emprestado, senão da forma como este profissional exerce suas responsabilidades nas comunidades morais em que está inserido, como a família, a igreja e o Estado? Nas palavras de Kuiper: “O único fator decisivo pelo qual a confiança social cresce é o empenho de uma pessoa pela outra. Quando alguém se mostra confiável (faz o que diz), quando alguém se dispõe do capital para fazer promessas e concretizá-las, isso levará a uma confiança social que se fortalecerá junto àqueles a quem essa preocupação foi estendida” (KUIPER, 2019, p. 287). Todo verdadeiro planejador financeiro deveria cultivar relações pactuadas com os seus clientes, a partir de uma existência preocupada-responsiva, fazendo promessas e cuidando do que mais importa: da vida do cliente e não apenas do dinheiro dele.
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Referências bibliográficas
KUIPER, Roel. Capital Moral: o poder de conexão da sociedade; Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310 p.
BRAUN JUNIOR, Guilherme. Um método trinitário neocalvinista de apologética: reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional; Brasília, DF: Academia Monergista 2019. 276 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo 2018. 276 p.
BAVINCK, Herman. Filosofia da Revelação; Tradução e notas de Fabricio Tavares de Moraes – Brasília, DF: Editora Monergismo 2019. 342 p.
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VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina – Uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã; Tradução de Daniel de Oliveira. – São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.