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Fé na razão ou razão da fé?

Ensaio escrito por Hesddras Franco Gomes, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

A Bíblia inicia o relato da criação sem explicar questões racionais sobre a origem e a criação do universo ou do mundo. Diversas vezes, as Escrituras apenas descrevem as ações de Deus tanto em suas manifestações de criação quanto em providência, sem necessariamente dar razões ou explicações aos homens. De fato, Deus questiona onde estava Jó enquanto Ele criava o mundo. Não obstante, as Escrituras tratam da razão e, inclusive, o apóstolo Pedro instrui os seguidores de Cristo a serem aptos a dar razão da sua fé. Porém, existe uma tensão entre o crer e o entender. Será que a razão deve preceder a fé, ou o contrário? Este é o tópico central do presente texto.

Os limites da razão humana

Em primeiro lugar, dois fatores afetam a razão humana de forma contundente: somos seres criados e, portanto, limitados; soma-se a isto os efeitos do pecado por todo o cosmo, incluindo as capacidades cognitivas humanas. Nesse sentido, poderia ser dito que usamos lentes imperfeitas, e pior: elas estão sujas. Ainda assim, há momentos nos quais as Escrituras tornam explícitas as razões (motivos) de certos acontecimentos, como em Marcos 2:10-11, quando Cristo cura um paralítico “para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar pecados”. O Messias também esperava um raciocínio lógico de seus seguidores, como em Lucas 20:24 — “Mostrai-me um denário. De quem é a efígie e a inscrição?” —, bem como em inúmeras associações, inferências e parábolas. 

Além disso, considerando que a razão foi criada por Deus, ela deve sempre estar sujeita ao Seu senhorio. É perceptível o contraste, por um lado, entre Adão sendo convocado a nomear os animais, ou seja, participando com Deus da criação e estruturação da linguagem — condição de possibilidade do pensar — enquanto, por outro lado, em Babel o homem é retratado usando seus conhecimentos para criar uma torre elevada para exaltação própria. Nesta última situação, é interessante notar que a linguagem foi afetada, resultando em maior diversidade de línguas, maior glória a Deus na Criação e maior dificuldade e ambiguidade ao pensamento humano; um lembrete de que as criaturas dependem do Senhor. Isto posto, percebe-se que, se, por um lado, a razão faz parte da criação, por outro lado, ela deve ser colocada no lugar certo: servindo a Deus e não usada de forma autônoma. Como, então, a razão deve se relacionar com a fé?

Crer é anterior ao entender

Neste ponto, destaca-se Anselmo de Aosta (1033-1109 d.C.), também conhecido como Anselmo de Cantuária, o qual nasceu em Aosta, região noroeste da Itália. Foi arcebispo de Cantuária (Inglaterra) e ficou conhecido como o fundador do escolasticismo. Durante sua vida, buscou estudar as Escrituras e a filosofia não por meras questões intelectuais, mas com o “sentimento da responsabilidade e do dever de difundir a verdade, a verdade de Deus” (REALE; ANTISERI, 2017, p. 511). Duas obras se destacam em sua produção literária: Monologium (Monológio, 1076) e Proslogium (Proslógio, 1077–8). A primeira tinha como finalidade provar a existência de Deus partindo da criação, por meio dos sentidos, para o conhecimento divino e, portanto, com o conhecido argumento a posteriori. A segunda obra trilha o caminho em sentido oposto, adotando, portanto, o pensamento a priori e construindo o argumento que afetou completamente a filosofia desde que foi postulado, tendo recebido o nome de “argumento ontológico” pelo alemão Immanuel Kant. Embora sua obra tenha sido colocada por vezes como um exercício meramente intelectual, depreende-se da leitura dos escritos de Anselmo um exemplo de um homem temente ao Senhor, sujeitando o exercício do seu labor e pensamento ao Senhor. Como forma de oração, o Arcebispo inicia o Proslógio como no belo trecho a seguir:

Reconheço, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem, para que me lembre de ti, para que pense em ti, para que te ame. Mas tão destruída está ela por obra dos vícios, tão escurecida pelo fumo dos pecados, que não pode alcançar o fim a que fora destinada, a não ser que a reformes e renoves. Não tento, Senhor, penetrar tua profundidade, pois a ela de modo algum pode comparar-se minha inteligência; mas desejo, na medida de minhas forças, compreender tua verdade, em que crê e que ama meu coração. Pois não busco entender para crer, mas creio para entender. Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei (Anselmo, 2016, p. 49).

O lugar da razão

Ademais, devemos lembrar que o cristão é chamado a estar sempre pronto a dar razão da sua fé (1Pedro 3:15). Neste sentido, Benjamin B. Warfield orienta que:

Apesar da fé ser uma dádiva de Deus, isso não implica que a fé dada a nós por Deus é uma fé irracional, isso é, uma fé sem um fundamento cognitivo na razão. Nós cremos em Cristo porque é algo racional crer NEle, nem mesmo que se fosse irracional. Obviamente, mero reconhecimento racional não torna alguém um cristão, mas isso não é porque a fé não é resultado de evidência, mas porque uma alma morta não pode responder à evidência. A ação do Espírito Santo nos dando fé não está separada das evidências, mas vem junto com as evidências, e em primeira instância consiste em preparar a alma para aceitar as evidências (Warfield, 2024, grifo do autor).

Por fim, mesmo após recebermos corpos glorificados, ainda exerceremos nossas capacidades cognitivas (razão) para a glória de Deus. O autor Randy Alcorn sugere que no céu ainda aprenderemos coisas novas! O americano defende que a onisciência pertence ao Senhor, e não às suas criaturas, afirmando que isso não é resultado do pecado, mas um atributo de criaturas limitadas e nos lembra que nem os anjos conhecem todas as coisas (1 Pedro 1:12). A razão é uma graça divina e tem papel importante na obra da criação (Alcorn, 2024). 

Conclusão

Conclui-se que a necessidade de dar razão da fé deve fazer com que o cristão coloque a razão no lugar correto, considerando dois aspectos: (1) a fé antecede a razão e, assim como Anselmo, o homem que teme ao Senhor crê para entender e jamais adota a razão como o fundamento de tudo; por outro lado, (2) a razão é instrumento que fortalece a fé e glorifica ainda mais o Criador, uma vez que Ele é o ordenador do mundo e apenas por meio Dele, e da Sua revelação, o homem tem condição de possibilidade de estabelecer qualquer forma de raciocínio. 

Portanto, o cristão não deve abandonar a razão, mas tê-la sempre orientada pela fé. Deve usar a razão tanto para descobrir o mundo criado por Deus como para desenvolvê-lo em todos os aspectos possíveis, cultivando sociedades, culturas, medicina, engenharia, tecnologia, teologia e qualquer outra disciplina, cumprindo a tarefa dada por Deus aos homens em Gênesis 1:28 no exercício do mandato cultural.


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Referências

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, volume 1. Tradução de José Bortolini. Edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Paulus, 2017, 704 p.

WARFIELD, Benjamin B. Apologética. In: Monergismo. Disponível em: <https://www.monergismo.com/textos/apologetica/apologetica_warfield.htm>. Acesso em 1 de maio de 2024.

ALCORN, Randy. Will We Know Everything in Heaven or Will We Learn? In: Randy Alcorn. EPM. 6 de Novembro de 2023. Disponível em: <https://www.epm.org/resources/2023/Nov/6/know-learn-heaven/>. Acesso em 1 de maio de 2024.

ALSELMO DE CANTUÁRIA, Santo. Proslógio. Trad. Sérgio de Carvalho Pachá. 1ª ed. Porto Alegre, RS: Concreta, 2016. 124 p.