Artigo escrito por Thiago Nonato Souza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
Introdução
A busca pela autonomia, ou a crença de que o homem pode organizar sua existência de forma totalmente autônoma, tem se tornado o principal guia e motor da civilização contemporânea, e não é necessário ir longe para perceber a decadência moral na qual a sociedade em que vivemos se encontra em consequência disso. Cientistas sociais falam sobre uma sociedade do cansaço (Byung-Chul Han)1, sobre a corrosão do caráter (Richard Sennett)2 e sobre como vivemos em uma modernidade líquida (Zygmunt Bauman)3. São sintomas que podemos sentir de forma quase palpável, pois vêm nos levando a uma decadência, principalmente moral, que tem tornado o homem contemporâneo cada dia mais apático à realidade, afastado do outro e sem confiança nas instituições e no próximo.
Sobre isso, Roel Kuiper, em sua obra Capital moral: o poder de conexão da sociedade (2019)4, desenvolve uma análise sociológica robusta e propõe um paradigma no qual a sociedade poderia superar a crise atual, a saber, a recuperação do capital moral por um viés pactual — o amor ao próximo. Ele entende como capital moral “a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada”5. Além disso, atribui a essa crise o que o Anthony Giddens chama de desenraizamento, afirmando que “os processos habituais de confiança social e reciprocidade estão capengando e cresce uma cultura de desconexão que tem efeitos tanto locais quanto globais”6. O autor ainda afirma que esse desprendimento desencadeou o afinamento das relações através de pensamento construtivista em termos de contrato não baseado em lealdade; a exclusão social que desenvolve uma perda de identidade, causada por desnivelamento de renda e segregação econômica e social; e crise de confiança causada pela consciência maior de riscos sociais, políticos e econômicos7.
Assim, observando, a partir de uma ótica cristã, e reconhecendo que o papel do cristão é obedecer a Deus em sua relação com o próprio Deus, com o próximo e com a realidade, o presente artigo busca refletir sobre o quão importante e urgente é essa perspectiva pactual que Kuiper nos traz e o quanto ela está alinhada com as Escrituras.
Eu e eu
Na sociedade contemporânea, o individualismo se destaca como um fenômeno marcante, refletindo a valorização da autonomia, da independência e da autorrealização pessoal. Impulsionado pelos avanços tecnológicos, pela globalização e pelas mudanças socioeconômicas, esse paradigma incentiva os indivíduos a perseguirem seus próprios interesses e objetivos. Apesar de o individualismo poder promover inovação e liberdade pessoal, ele também suscita preocupações sobre seu impacto nas relações comunitárias e na coesão social, desafiando-nos a encontrar um equilíbrio entre a valorização do indivíduo e a responsabilidade coletiva.
Herman Dooyeweerd, em seu livro No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico, discorre sobre expressões desse individualismo no âmbito pessoal, familiar e congregacional. Ele observa que:
(…) nossa sociedade contemporânea não deixa espaço para a personalidade humana e para uma comunhão espiritual real de pessoa para a pessoa. Frequentemente, nem mesmo a família e a igreja conseguem garantir uma esfera de intercurso pessoal. A vida familiar, em larga medida, é deslocada pela crescente industrialização. A própria igreja é confrontada com o risco da despersonalização da vida congregacional, sobretudo nas grandes cidades8.
Essa falta de vínculo, preocupação com o próximo e, em última instância, essa falta de amor ao próximo, tende a crescer e aumentar ainda mais a instabilidade social. Falta de confiança, isolamento e solidão são algumas das consequências desse fenômeno, que já vem sendo anunciado como prejudicial há bastante tempo. A situação encontra-se fora de controle; no final de 2023, a Organização Mundial da Saúde tornou a solidão uma prioridade de saúde global9.
Compromisso em aliança
Kuiper nos traz uma perspectiva de capital moral aplicada ao modo pactual no qual a sociedade deveria se sustentar em detrimento do contratual. Ele destaca que:
O pacto é uma forma de acordo que começa com o todo, o contrato é uma forma de acordo que começa no indivíduo. O pacto é aberto e universal; o contrato, por sua vez, é fechado e particular. O pacto parte de um laço natural entre as pessoas que permanecem fiéis umas às outras nas vicissitudes da vida. O contrato parte de uma relação contingente de pessoas que fazem acordos temporários. O pacto aceita o outro como pessoa e considera a relação eu-tu como uma relação sagrada e moral. O contrato enxerga o outro como um concidadão que ameaça ou melhora o meu interesse. O pacto promove reciprocidade e, com isso, antecipa as necessidades do outro; o contrato vive de relações mútuas e ensina o homem a permanecer perto dos seus interesses privados10.
Essa aplicação se assemelha ao significado do termo amor utilizado na Bíblia hebraica e grega. Daniel I. Block, em seu livro Para a glória de Deus, afirma que o termo significa “demonstrar compromisso de aliança por meio de ações que servem o interesse e o bem-estar da outra pessoa”11. Essa conexão demonstra que o amor ao próximo é o paradigma para que a sociedade consiga superar a barreira da solidão e viver de modo responsável.
A obediência a Deus gera vida, enquanto a desobediência gera morte. O amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo são os mandamentos fundamentais segundo os quais Cristo nos adverte a obedecer. Kuiper menciona que “o envolvimento de amor para com o outro poderia ser denominado a qualidade central do homem”12. Assim sendo, deve ser buscado e aplicado em nossas vidas, para que nossas relações sociais, políticas e econômicas floresçam.
Conclusão
Diante do exposto, a proposta que Roel Kuiper apresenta está em consonância com as Escrituras, quando guia o olhar para uma prática de viver em preocupação com o próximo de forma pactual. Este modo de agir — amor ao próximo — é o que Cristo nos orienta e nos demanda. É assim que conseguiremos superar o caos que o individualismo, o neoliberalismo, o triunfo da terapêutica, dentre tantas outras filosofias que criam um muro entre o eu e o diferente, disseminaram.
1 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada — Petrópolis, RJ : Vozes, 2017. 128 p.
2 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução Marcos Santarrita.— 24ª ed. — Rio de Janeiro: Record, 2023.
3 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien — 1ª ed. — Rio de Janeiro; Zahar, 2021.
4 A edição original foi publicada em 2009, pela Buijten & Schipperheijn, com o título Moreel Kapitaal: De verbindingskracht van de samenleving. Em 2019, a editora Monergismo publicou sua versão em português, com o título Capital moral: o poder de conexão da sociedade, usada no presente artigo.
5 KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução de Francis Petra Janssen.— Brasília, DF: Monergismo, 2019, p. 24.
6 Ibid., p. 42.
7 Ibid., p. 44-49.
8 DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza- Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 225.
9 OMS torna a solidão prioridade de saúde global com nova comissão de trabalho. CNN Brasil, 1 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/oms-torna-a-solidao-prioridade-de-saude-global-com-nova-comissao-de-trabalho/. Acesso em: 3 ago. 2024.
10 KUIPER, op. cit., p. 186.
11 BLOCK, Daniel. Para a Glória de Deus. Traduzido por Thiago Machado Silva.- São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 94.
12 KUIPER, op. cit., p. 138.
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Referências
BLOCK, Daniel. Para a glória de Deus. Traduzido por Thiago Machado Silva.- São Paulo: Cultura Cristã,2018 p. 432.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien — 1ª ed. — Rio de Janeiro; Zahar, 2021. 280 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza- Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 225.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada — Petrópolis, RJ : Vozes, 2017. 128 p.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução de Francis Petra Janssen. — Brasília, DF: Monergismo, 2019, p. 310.
OMS torna a solidão prioridade de saúde global com nova comissão de trabalho. CNN Brasil, 1 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/oms-torna-a-solidao-prioridade-de-saude-global-com-nova-comissao-de-trabalho/. Acesso em: 3 ago. 2024.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução Marcos Santarrita.— 24ª ed. — Rio de Janeiro: Record, 2023. 174p.