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Deficiência, cognição e teologia natural: repensando o conhecimento de Deus

Artigo escrito por Iara Carvalho das Neves, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


“Aos que têm ouvidos para ouvir, ouçam!”1

A busca pelo conhecimento de Deus é uma questão fundamental da teologia natural, que visa entender a natureza divina a partir da criação. Tradicionalmente, a teologia natural baseia-se na premissa de que o mundo natural, em sua complexidade e beleza, revela aspectos do Criador. No entanto, a forma como as diferentes pessoas experimentam essa criação, particularmente aquelas com deficiências, desafia as concepções tradicionais sobre como podemos conhecer e entender Deus. A relação entre deficiência, cognição e teologia natural, portanto, oferece uma oportunidade única para repensar o modo como o conhecimento de Deus é acessado e vivido, não apenas por meio de uma visão normativa dos sentidos, mas por meio de uma diversidade de experiências sensoriais e cognitivas.

O teólogo britânico Alister McGrath2 e Thomas Reid, filósofo do século XVIII, oferecem visões que podem ajudar a aprofundar a compreensão de como a deficiência e as variações cognitivas se inserem na busca pelo conhecimento de Deus. McGrath enfatiza uma abordagem encarnacional da teologia natural, sugerindo que Deus se revela na criação de maneira acessível a todos. Reid, por sua vez, em sua Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum3, argumenta que a percepção humana, mesmo com suas limitações, oferece um meio legítimo e confiável de entender o mundo e, por extensão, o Criador. O presente artigo explora como a deficiência, longe de ser um obstáculo, pode ser uma porta para novas formas de perceber a criação e o conhecimento de Deus, integrando as visões de McGrath e Reid para desenvolver uma teologia natural inclusiva e profunda.

O papel dos sentidos na percepção de Deus

A percepção dos sentidos é uma das maneiras mais imediatas pelas quais as pessoas se conectam com o mundo e, por conseguinte, com Deus. No entanto, as limitações sensoriais que acompanham muitas deficiências podem parecer, à primeira vista, um impeditivo para essa conexão. Os sentidos não são apenas instrumentos biológicos, mas também espirituais. A teologia natural pode integrar tanto a razão quanto a imaginação, permitindo uma visão mais rica e profunda da criação, independentemente das limitações físicas dos sentidos. A visão da criação como um “segredo revelado” permite que, mesmo aqueles com deficiências sensoriais, como a cegueira ou a surdez, possam acessar os sinais de Deus através de outras formas de percepção.

Essa visão é compatível com a filosofia de Thomas Reid, que afirma em sua obra Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum que os sentidos são confiáveis e que, mesmo quando alguns sentidos estão ausentes ou alterados, a percepção humana ainda é capaz de apreender a realidade. Deus nos deu os sentidos como ferramentas seguras para perceber a criação e compreender a realidade. A percepção não depende apenas da recepção passiva de estímulos, mas também da interpretação ativa desses estímulos pela mente humana, o que sugere que qualquer variação na forma de perceber o mundo pode gerar uma experiência válida de conhecimento.

Deficiência como uma nova perspectiva do conhecimento

As deficiências sensoriais e cognitivas oferecem uma nova maneira de perceber e interpretar o mundo. Para aqueles com deficiência, a experiência de Deus pode ser mais intensificada em outros domínios, como o tato, a audição, ou mesmo a intuição. A experiência sensorial da criação é multifacetada, e as pessoas com deficiência não estão em desvantagem, mas, sim, em uma posição única para perceber aspectos diferentes da criação. A imaginação, por exemplo, tem o potencial de expandir os limites da percepção física, permitindo uma conexão espiritual com o divino que transcende os limites físicos. A deficiência, longe de excluir alguém da experiência de Deus, abre novas formas de acessar a revelação divina, especialmente através da imaginação e da espiritualidade.

Nesse sentido, a deficiência não deve ser vista como uma falha nos sentidos, mas como uma variação na forma como os sentidos operam. Samuel, quando, a mando de Deus, fora procurar na casa de Jessé o futuro rei de Israel para ungi-lo, esperava que, de todos os filhos, Deus o direcionasse ao mais bonito e vistoso. Diversamente, o Senhor disse: “Não atentes para a sua aparência, nem para sua altura, porque o rejeitei; porque o Senhor não vê como o homem vê. O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração”4. A diversidade da percepção humana não diminui a capacidade de perceber a realidade de maneira verdadeira. Ao invés de ver as deficiências como um impedimento para o conhecimento, devemos vê-las como uma variação legítima da experiência humana. Mesmo aqueles que não possuem todos os sentidos convencionais ainda podem conhecer a verdade da criação, porque o senso comum é um guia infalível. Isso implica que, ao integrar a experiência de pessoas com deficiência, não estamos apenas ampliando nossa compreensão de Deus, mas também acessando uma maneira mais plena de experienciar a criação.

Psicologia da percepção, cognição religiosa e inclusão

A psicologia da percepção é um campo onde a mente humana ativa e interpreta os dados sensoriais para criar uma imagem coerente da realidade. Mesmo em casos de deficiência, a mente humana é capaz de preencher lacunas e criar uma compreensão funcional do mundo. Isso tem implicações significativas para a teologia natural, uma vez que sugere que a cognição religiosa não depende exclusivamente da percepção sensorial, mas também da forma como a mente interpreta e se conecta com o divino. O capítulo 6, verso 45 do Evangelho segundo João relembra uma passagem do livro do profeta Isaías que nos diz que todos serão ensinados por Deus. “Todo aquele que da parte de Deus tem ouvido e aprendido, esse vem a mim”5.

O texto supracitado fala sobre ouvir e aprender. A psicologia cognitiva moderna sugere que a maneira como percebemos o mundo pode ser moldada por nossas experiências, crenças e limitações. Quando consideramos as pessoas com deficiência, é essencial reconhecer que elas têm uma percepção distinta da realidade, que também pode ser usada para explorar a natureza de Deus e sua criação. Da mesma maneira que, pela neuroplasticidade, alguma área danificada do cérebro pode ter sua função parcialmente substituída por outra, uma pessoa que não possui determinado sentido necessário a percepção do mundo natural e do consequente conhecimento de Deus, pode perfeitamente perceber e aprender por meios diversos. Um surdo pode perceber o mundo através de um intérprete de libras. Desse modo, a teologia natural deve ser inclusiva, permitindo que todas as formas de percepção, incluindo aquelas geradas por deficiências, sejam reconhecidas como válidas para o conhecimento de Deus.

A cognição religiosa, portanto, não se limita a uma percepção sensorial direta, mas envolve um processo de interpretação ativo influenciado pela mente humana. As pessoas com deficiência, ao integrar suas experiências cognitivas e sensoriais únicas, podem ter uma compreensão rica e profunda de Deus, que complementa e expande a experiência daqueles com uma percepção “normal”. Em outras palavras, uma percepção profunda do coração e da mente. No Senhor estão todas as riquezas da sabedoria e do conhecimento6. A teologia inclusiva, conforme proposta por McGrath e complementada por Reid, convida a Igreja a expandir sua visão sobre a experiência espiritual. A Igreja deve ser um reflexo da diversidade humana, reconhecendo as variadas formas de perceber a criação e de acessar o conhecimento divino. Isso implica que a Igreja deve criar espaços para pessoas com deficiência, permitindo que suas experiências únicas sejam incorporadas na vida comunitária de fé.

A teologia natural moderna deve celebrar a diversidade das formas humanas de percepção, incluindo aquelas que surgem das experiências de deficiência. A verdadeira diversidade espiritual na Igreja se reflete na aceitação das diferentes formas de percepção e cognição, incluindo aquelas moldadas pela deficiência. Por outro lado, a Igreja, ao reconhecer o senso comum e a percepção variada dos membros, pode expandir sua compreensão do divino. Todos têm acesso ao conhecimento de Deus, não importa suas limitações sensoriais ou cognitivas. Essa diversidade de percepção é uma expressão da graça de Deus, refletindo a plenitude da criação divina. A Igreja tem um chamado divino para ser inclusiva.

Repensando o conhecimento de Deus na diversidade humana

A relação entre deficiência, cognição e teologia natural oferece uma perspectiva rica e profunda sobre como o conhecimento de Deus pode ser experimentado e vivido de maneiras diversificadas. A experiência sensorial humana, embora fundamental, não é a única via para conhecer a Deus. A deficiência, longe de ser uma barreira, oferece uma nova forma de se perceber a criação e de se conectar com o Criador.

Portanto, a teologia de McGrath e a filosofia de Reid, se integradas, podem construir uma teologia natural inclusiva, que reconhece e celebra a diversidade da experiência humana como um reflexo da complexidade divina. Nesse modelo, todas as formas de percepção, sejam elas convencionais ou adaptadas pela deficiência, são válidas para o conhecimento de Deus. A Igreja, como corpo de Cristo, deve ser uma comunidade onde todos, independentemente de suas diferenças sensoriais ou cognitivas, podem acessar a revelação divina e participar plenamente da vida espiritual.


1A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009, p. 1512.

2MCGRATH, Alister E. Teologia natural: uma nova abordagem. Tradução Marisa K. A. de Siqueira. São Paulo. Vida Nova, 2019.

3REID, Thomas. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução Aline Ramos. São Paulo. Vida Nova. 2013.

4A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO, op. cit., p. 488.

5Ibid., p. 1683.

6Ibid., p.1924.


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Referências Bibliográficas

A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

MCGRATH, Alister E. Teologia natural: uma nova abordagem. Tradução Marisa K. A. de Siqueira. São Paulo. Vida Nova, 2019.

REID, Thomas. Investigação sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução Aline Ramos. São Paulo. Vida Nova. 2013.