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O Antigo Testamento ainda serve à igreja brasileira de hoje?  

Artigo de opinião escrito por Emanoel Ferreira Cardoso, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


A igreja de Cristo, particularmente a brasileira, tem enfrentado um difícil dilema quanto ao proveito do ensino no Antigo Testamento. Parece estranho que um texto tão antigo e, aparentemente, aquém da clareza e poder do texto do Novo Testamento ainda possa auxiliar na formação espiritual dos discípulos de Cristo e ajudar a edificar a igreja na dependência do Espírito Santo. Nas páginas iniciais de seu livro, Pregando Cristo a partir do Antigo testamento, Sidney Greidanus, profícuo mestre nos estudos do Antigo Testamento afirma que 

O clímax vem no Novo Testamento, quando Deus envia seu único Filho para salvar o mundo. Assim, como não se pode entender o último ato de uma peça dramática sem conhecer os atos anteriores, assim esse ato culminante de Deus enviar seu Filho não pode ser entendido sem o conhecimento dos atos anteriores de Deus (GREIDANUS, 2019, p. 44).

O Primeiro Testamento, uma nomenclatura que talvez nos ajude a evitar o pensamento que o texto está datado na história, tem sido mutilado e distorcido em nossos dias e inúmeras vezes, por lobos travestidos de pastores trazendo o rigor da Lei e colocando-o sobre os ombros dos fiéis como meio de relacionamento com Deus a fim de, unicamente, devorar as ovelhas do aprisco. Em contextos diferentes, porém, onde o evangelho é pregado verdadeiramente, há também o obstáculo do manuseio limitado do Antigo Testamento, levando-o a ser tratado com menor importância e visitado esporadicamente, talvez por seus maiores obstáculos hermenêuticos, comparado com o Novo Testamento. 

O resultado na vida da igreja é um agudo desconhecimento do texto veterotestamentário, e quando se ouve algumas mensagens, geralmente são moralistas, apenas incitando ouvintes a imitarem a fé de Abraão, buscarem a comunhão de Moisés ou a viverem com a coragem de Davi. Mas, infelizmente, isso não evidencia o texto como Escritura cristã aos membros da igreja local, apontando para Cristo como ápice, cumprimento e consumação do pacto de Deus com seu povo, nem mostra como podemos viver a partir da verdade revelada e, fatidicamente, desloca o texto de seu contexto maior na História da Redenção.  

Geerhardus Vos foi um exímio estudioso das Escrituras. Em sua obra Teologia Bíblica: Antigo e Novos Testamentos, ele esclarece: “O Antigo Testamento é aquele período do pacto da graça que precede a vinda do Messias; o Novo Testamento compreende aquele período do pacto da graça que segue da sua aparição e sob o qual nós ainda vivemos” (VOS, 2019, p. 38). 

Portanto, se ambos Testamentos falam sobre o pacto da graça. Não temos alternativa senão nos debruçarmos sobre o negligenciado Antigo Testamento a fim de conhecê-lo no sentido hebraico do termo: compreensão da mensagem e prática de vida, possibilitando-nos viver de forma que esta porção tem a nos ensinar sobre Cristo e ajudar aqueles que seguem nesta mesma direção.  

A disciplina que nos auxilia neste substancial desafio é a Teologia Bíblica. Geerhardus vos delineia que a “Teologia Bíblica lida com a revelação como sendo atividade divina, não o produto final dessa atividade. Sua natureza e método terão, naturalmente, de manter estreito contato e reproduzir, até onde possível, as características do trabalho divino em si” (VOS, 2019, p. 16). Há, portanto, algumas características que tal exigente trabalho demanda de nós e temos de considerá-las. 

Primeiramente, a autorrevelação de Deus nas Escrituras se deu historicamente. John Goldingay, em sua volumosa obra Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs, assinala que

No modo como as Escrituras fazem teologia, duas formas estão entre as mais proeminentes. Ambos os testamentos são dominados por uma série de narrativas, e essa característica reflete e aponta para um aspecto chave da teologia bíblica: trata-se de uma teologia que se concentra em uma história. Ela abrange um relato de coisas particulares que Deus e o ser humano fizeram em lugares e tempos particulares, bem como uma reflexão considerável sobre essas ações e acontecimentos (GOLDINGAY, 2020, p. 14).

Desse modo, a teologia bíblica trabalha diacronicamente, percebendo como Deus falou e agiu com os homens no decorrer da história, a fim de, mais atentamente, ouvir o que o Autor divino, por meio do autor humano, intentou comunicar naquela porção sobre o pacto da graça de redimir e separar para si um povo. Mais uma vez nos ajuda Vos, esclarecendo que

O processo da revelação não é somente concomitante com a História, mas se torna encarnado na História. Os próprios fatos da História adquirem uma significação reveladora. A crucificação e a ressurreição são exemplos disso. Devemos posicionar ato-revelação ao lado de palavra-revelação. A ordem usual é: primeiro a palavra, então o fato, depois de novo a palavra interpretativa. O Antigo testamento traz a palavra preditiva preparatória, os evangelhos registram o fato redentor-revelatório, as epístolas suprem a subsequente interpretação final (VOS, 2019, p. 17 e 18).

Em segundo lugar, se ele se revelou na história, ele o fez progressivamente e não em um único ato. Deus revelou-se a pessoas e ao seu povo em dados momentos históricos, considerando suas condições e acomodando a mensagem de forma que seus leitores originais tivessem o preciso entendimento de como ele estava agindo para salvar o seu povo. Por isso, Vos nos traz um importantíssimo aspecto que joga luz ao revelar progressivo de Deus na história, afirmando que

A revelação não foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou ao longo de uma série de atos sucessivos. Em termos abstratos, ela pode, conceitualmente, ter sido de outra maneira. Contudo, como matéria de fato, ela não poderia ser, porque revelação não se firma por si só, mas está (no que concerne à revelação especial) inseparavelmente ligada à outra atividade de Deus que chamamos redenção. Agora, redenção não poderia ser de outra maneira a não ser em sucessão histórica, porque ela se dirige à sucessão de gerações da humanidade que vêm à existência no curso da história. Revelação é a interpretação da redenção; ela deve, portanto, se desdobrar em etapas como a redenção o faz. (VOS, 2019, p. 16).

A revelação, à medida que vai sendo expandida, aponta, esclarece e traz maior compreensão à ação de Deus de formar para si um povo, com quem estabeleceu um pacto de redimir, sustentar e não abandonar, firmado em seu amor leal. Kevin Vanhoozer, em sua oportuna obra, O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística das Escrituras, é cirúrgico ao apontar que

A revelação não é apenas comunicação de verdades sobre Deus, mas, acima de tudo, a autocomunicação de Deus em atos e palavras. A teologia nada saberia de Deus se ele não tivesse tomado a iniciativa de “tirar o véu” e subir a cortina do teodrama. Tanto o conteúdo quanto o processo de revelação divina são, portanto, essencialmente dramáticos. Deus revela-se na história de Israel e na história de Jesus Cristo através de uma série de iniciativas de comunicação — algumas verbais, outras cheias de acontecimentos — todas elas, em última análise, redentoras. O ´´evento´´ de Jesus Cristo permanece como o auge de uma série de eventos de revelação e redenção, registrados no Antigo e no Novo Testamento, os quais juntos, recontam um único drama da redenção que é tanto pactual no foco quanto cósmico no escopo (VANHOOZER, 2016, p. 54).

Diante disso, é prudente concluirmos que a teologia bíblica ajuda-nos não só a resgatar o Antigo Testamento como Escritura cristã, o que já é inestimável valor, mas também nos é uma exímia ferramenta para interpretá-lo e aplicá-lo, em primeiro lugar pessoalmente, mas também à vida da igreja à luz do teodrama divino. Podendo, assim, não nos ver cativos de mensagens moralistas e rasas diante da profundidade de riqueza espiritual que o texto tem quando entendido dentro de seu contexto na Grande História da Redenção, encontrando seu clímax na pessoa e obra de Cristo Jesus.


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Referências Bibliográficas

GOLDINGAY, John. Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs. Tradução: Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2020. 656 p. 

GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do Antigo Testamento: um método hermenêutico contemporâneo. Tradução: Elizabeth Gomes. 2ª. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 400 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p. 

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula, 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 496 p.