Artigo escrito por Amanda Diniz Vallada, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
Sem dúvidas, a revelação tem sido um dos temas mais caros para os cristãos ao longo dos séculos. É, de fato, um tópico fundamental para quem está empenhado no trabalho intelectual teológico, motivando questionamentos sobre mecanismos que Deus, em sua sabedoria e vontade, escolheu empregar para se manifestar à criação através de atos-revelações sucessivos e orgânicos (VOS, 2019). Embora basilar no esforço teológico, a revelação é um fenômeno complexo e multifacetado, o que é facilmente verificável quando vemos as múltiplas maneiras de abordá-la, desde a autoridade das fontes da revelação até sua aplicabilidade prática para uma vida coram Deo, ou diante de Deus.
À vista dessa complexidade, “nossos olhos estão sendo cada vez mais abertos para o fato de que a revelação, em vários sentidos, é histórica e psicologicamente ‘mediada’” (BAVINCK, 2016, p. 31). Essas palavras de Herman Bavinck nos motivam a considerar outras maneiras de desenvolvimento da revelação – isto é, o que mais media o nosso acesso à revelação? Considerando isso, o objetivo deste artigo é discutir a mediação semiótica da revelação pensando, sobretudo, na produtividade da análise semiótica para compreender como a revelação se desenvolve e manifesta.
Para o alcance desse objetivo, mobilizamos principalmente as contribuições de Geerhardus Vos (2019) sobre o progresso da revelação, de Herman Bavinck (2016) sobre a filosofia da revelação, e de Charles Peirce (2005) e Ferdinand de Saussure (2012) sobre a descrição do funcionamento do signo. Além dessas referências principais, textos de outros autores e autoras são empregados ao longo do texto para o sustento da reflexão teórica proposta.
A respeito da revelação especial pré-redentiva (pré-queda), Vos diz:
Tudo o que está ligado a essa revelação é extremamente primitivo. Tudo é altamente simbólico, ou seja, expresso não tanto em palavras, mas em signos; e esses signos compartilham do caráter geral do simbolismo bíblico no fato de que, além de serem meios de instrução, eles também são prefigurações típicas (ou seja, sacramentais), comunicando segurança concernente à consumação futura das coisas simbolizadas (VOS, 2019, p. 43, grifos adicionados).
Concordamos com Vos em relação ao simbolismo presente nos elementos que compõem a revelação especial antes da queda – a árvore da vida simbolizando o potencial máximo do princípio da vida, a árvore do conhecimento do bem e do mal simbolizando o princípio da prova, a serpente simbolizando o princípio da tentação e do pecado, e, por fim, a dissolução do corpo simbolizando o princípio da morte. No entanto, entendemos que a representação simbólica da revelação pode ser ampliada em dois sentidos: primeiro, considerando que toda manifestação de linguagem, e não somente o símbolo, é um signo; segundo, entendendo que mesmo a revelação que nos alcança via palavras acontece num sistema semiótico. Passemos, inicialmente, ao primeiro ponto.
“Semiótia” é o adjetivo que caracteriza qualquer atividade que comunica algo através de signos, quer pela linguagem verbal, quer pela linguagem não verbal, quer seja este signo uma palavra escrita, um gesto, uma imagem ou um som. Para Ferdinand de Saussure (2012), considerado por muitos o fundador da Linguística moderna, o signo é o elemento total composto pela união de um certo significado a um certo significante, isto é, de um conceito a um componente da linguagem que o representa.
Em muitos sentidos, a contribuição de Saussure para a Linguística foi também produtiva para os estudos semióticos (ou semiológicos, como chamava em seus escritos), pois ele separou para a disciplina que fundava os signos relacionados ao sistema linguístico. Por conseguinte, Saussure julgou que à Semiótica, ciência que ainda estava em formação no início do século XX, caberia o estudo dos sistemas de signo não linguísticos. Conforme suas palavras, a Semiótica “nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência não existe ainda, não se pode dizer o que será; ela tem direito, porém, à existência; seu lugar está determinado de antemão. A Linguística não é senão uma parte dessa ciência geral” (SAUSSURE, 2012, p. 48).
Contemporâneo a Saussure, o estadunidense Charles Peirce, filósofo e matemático, dedicava parte de seus estudos para o desenvolvimento de uma teoria dos signos. Apesar das várias descrições de signo que o filósofo traz em suas obras, podemos sintetizar que, “para que algo possa ser um Signo, esse algo deve ‘representar’, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto” (PEIRCE, 2005, p. 47).
Tal como o linguista suíço, Peirce também faz uma partição do signo; não em dois constituintes, mas sim em três. Essa tricotomia, alusiva à relação entre signo e objeto, divide os signos em: símbolo, índice e ícone. Abaixo, descrevemos cada parte dessa divisão1.
- O símbolo representa um objeto através da associação com alguma lei, hábito ou convenção. Grande parte das palavras das línguas do mundo são símbolos (exemplo: é socialmente convencionado que, em português, a palavra “gato” designa um mamífero, felino e domesticado), bem como alguns sinais de trânsito e os símbolos religiosos (a cruz é mundialmente reconhecida como símbolo do cristianismo);
- O índice representa um objeto através de uma relação de contiguidade ou causalidade. As pegadas de um animal, por exemplo, indiciam sua presença em um determinado local; semelhantemente, manchas em uma parede são índices de infiltração;
- O ícone representa um objeto através de uma relação de semelhança ou do compartilhamento de algumas de suas características. Desse modo, as representações cartográficas são ícones de paisagens geográficas, as sinalizações de risco de choque elétrico são ícones de corrente elétrica e as onomatopeias são ícones de sons percebidos pela audição.
Quando Vos considera a revelação especial pré-redentiva como “altamente simbólica”, ele está operando na contramão da teoria semiótica construída ao longo do século XX, a qual não trabalha com a ideia de que tão somente os signos não verbais funcionam semioticamente. Afinal, “a noção de signo implica que um elemento A, de natureza diversa, funcione como um representante de um elemento B” (WILSON; MARTELOTTA, 2015, p. 72). Isso é comum à totalidade da linguagem e a todo sistema de signos.
Essa opção interpretativa de Vos é, na realidade, um senso comum em vários empreendimentos disciplinares. Elizabeth Mertz destaca como essa concepção usual na área da Antropologia Social ao dizer que,
já por muitas décadas, os estudos de semiose na antropologia têm sido vastamente abordados sob a égide de ‘antropologia simbólica’. Contudo, […] o símbolo é somente um tipo de signo, e a redução de ‘semiótico’ a ‘simbólico’ não é capaz de fazer justiça ao complexo sistema em que os signos executam e constituem o sentido sociocultural (MERTZ, 1985, p. 1).
Sendo assim, chamamos atenção para a integralidade do sistema semiótico que possibilita nosso acesso e interpretação da revelação de Deus. Como nos lembra Bavinck (2016, p. 31), quando falamos em revelação especial, julgamos acertadamente que a palavra de Deus vem do alto, mas não podemos esquecer que ela “é trazida a nós por meio da senda da História. A Escritura expressa sucintamente esse duplo fato ao descrever a Palavra divina como ρηθεν υπό του θεου δια των προφητων [dito da parte de Deus através do profeta]”.
A palavra revelada, portanto, nos interpela através da linguagem, ou seja, através de signos que se organizam semioticamente – de modo mais ou menos simbólico, mais ou menos indicial ou mais ou menos icônico – em atos de fala de Deus. Evidentemente, devemos esse entendimento a Kevin Vanhoozer (2016) e sua abordagem canônico-linguística da doutrina bíblica, cuja tese é que Deus realiza ações pela linguagem. Essas ações estão registradas nas Escrituras, as quais devem ser interpretadas conforme as regras de um jogo de linguagem específico2, determinado pelo cânon bíblico.
Desse modo, Vanhoozer entende que
falar é uma forma de ação, tema conhecido na Bíblia. O livro de Tiago propõe uma ética da fala, exatamente porque a língua é um instrumento muito poderoso (Tg. 3.5-10). Deus, no entanto, é o paradigma do agente de comunicação. A palavra de Deus é algo que Deus diz, algo que Deus faz e (com referência à encarnação) algo que Deus é (VANHOOZER, 2016, p. 63, grifos no original).
Diante disso, podemos dizer que a revelação de Deus nos alcança semioticamente através do discurso divino presente nas Escrituras. Os signos que formam esse discurso (o conjunto dos atos de fala de Deus) estão disponíveis para nossa interpretação, a qual deve proceder conforme as regras do jogo canônico. Em outras palavras, podemos conhecer o objeto representado pelo signo mediante a interpretação fiel e coerente do sistema semiótico usado por Deus.
Como vimos ao longo deste artigo, a revelação emerge como um tema intrincado e central na teologia cristã, desafiando estudiosos a explorar suas dimensões profundas e variadas. Como destacado por Herman Bavinck, a revelação é mediada por alguns fatores, o que sugere a natureza de sua complexidade. Compreender a revelação, portanto, instiga uma investigação mais profunda sobre suas formas e mecanismos de manifestação, levando-nos a considerar a mediação semiótica como uma lente valiosa para analisar seu desenvolvimento e expressão.
Neste contexto, a integração das contribuições de teólogos como Geerhardus Vos e Herman Bavinck com as propostas de Charles Peirce e Ferdinand de Saussure sobre o funcionamento dos signos, oferece um caminho fecundo para explorar a natureza da revelação. Ao aplicar uma perspectiva semiótica, somos convidados a examinar a integralidade dos aspectos envolvidos na transmissão e recepção da revelação. Dessa forma, podemos avançar em nossa compreensão da revelação como um fenômeno dinâmico e multifacetado, enriquecendo o debate teológico interdisciplinar.
1A tricotomia do signo não necessariamente implica numa manifestação purista de cada tipo. Peirce (2005) admite que o índice envolve uma espécie de ícone e que o símbolo envolve uma espécie de índice. Para nós, importa que essa divisão não seja tomada rigidamente.
2Vanhoozer (2016) é profícuo em articular a virada linguística na Filosofia, representada em sua obra pelos jogos de linguagem de Ludwig Wittgenstein (2014 [1953]) e pelos estudos dos atos de fala, iniciados por John L. Austin (1965), na construção de um modelo fiel para a interpretação das Escrituras.
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Referências
BAVINCK, Herman. Filosofia da Revelação. Tradução por Fabrício Tavares. E-book. Brasília: Editora Monergismo, 2016.
MERTZ, Elizabeth. Beyond Symbolic Anthropology: Introducing Semiotic Mediation. In: MERTZ Elizabeth; PARMENTIER, Richard. (Orgs.). Semiotic Mediations: Sociocultural and Psychological Perspectives. Academic Press: 1985. p. 1-19.
PEIRCE, Charles. Semiótica. Tradução por José Teixeira Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução por Antônio Chelini e José Paulo Paes. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
VANHOOZER, Kevin. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução por Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução por Alberto de Paula. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã. 496 p.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução por Marcos Montagnoli. 9. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 350 p.