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Profetas na crise da civilização ocidental: um caminho para o desenvolvimento da personalidade humana

Artigo escrito por Thiago Junio de Almeida Ferreira1, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


De que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?

(Marcos 8:36)

1. Introdução

Na sociedade contemporânea, põe-se uma crise na civilização ocidental, expressa no problema sobre o que é o homem. Essa questão tornou-se ainda mais profunda, como um problema existencial mais amplo do que uma indagação teórica: trata-se da posição do ser humano no universo. Trata-se, conforme Dooyeweerd, da despersonalização da vida atual, com o dilema do homem-massa, sem uma verdadeira consciência de si mesmo e da realidade. A secularização acompanha esse processo e o amplifica, o que permite pensar que subjaz a essa crise uma batalha ainda mais profunda, de caráter religioso.

Nesse sentido, os autores cristãos, como Dooyeweerd e Dostoiévski, são colocados nessa empreitada intelectual como profetas que, na concepção de James Smith sobre Apocalipse, desvelam a realidade por trás das estruturas da sociedade e do pensamento humano. E, assim, compreende-se um verdadeiro papel para o intelectual cristão: seu papel profético. Em direção a essa ideia, será apontado um caminho para o desenvolvimento da personalidade humana.

2. Profetas na crise da civilização ocidental

Há uma crise na civilização ocidental, uma circunstância que se dá, em especial, pela seguinte pergunta: o que é o homem? Recorda-se que, no alvorecer da cultura ocidental, esta questão já se encontrava pressuposta, tal como foi expressa na Sofística antiga, no século V a.C., e atravessa todo o seu desenvolvimento — e, hoje, é matéria do que se denomina como antropologia filosófica2. Porém, segundo Dooyeweerd, essa crise é expressa no “declínio completo da personalidade humana, com o surgimento do homem-massa”3, processo que é acelerado pela estrutura da própria sociedade moderna:

O resultado disso, supostamente, é um processo de despersonalização da vida contemporânea. O homem de massa moderno perdeu todos seus traços pessoais. Seu padrão de comportamento é ditado pelo que é feito em geral, transferindo este a responsabilidade pelo seu comportamento para uma sociedade impessoal. E essa sociedade, em troca, parece estar sendo controlada por um robô, um cérebro eletrônico ou pela burocracia, pela moda, pela organização e outros poderes impessoais. Como resultado, nossa sociedade contemporânea não deixa lugar para a personalidade humana e para uma comunhão espiritual real de pessoa para pessoa. Mesmo a família e a igreja, frequentemente, não conseguem mais garantir uma esfera de intercurso pessoal. A vida familiar é, em larga medida, deslocada pela crescente industrialização, e a própria igreja é confrontada com o risco da despersonalização da vida congregacional, especialmente nas grandes cidades.4

O processo de massificação já vem sido enfatizado como tema de crítica desde o século XIX, a partir da crise da modernidade, quando alguns filósofos, como Friedrich Nietzsche e Søren Kierkegaard, já apontavam a oposição e a complexa relação entre indivíduo e multidão; o primeiro sinalizava as noções que viriam a formar o clima intelectual da contemporaneidade, conforme a criação do Übermensch, o ideal do novo homem que romperia com toda a metafísica que ainda resistia na racionalidade moderna, em rejeição à décadence e o rebanho5; o segundo, por sua vez, opôs o indivíduo à multidão, no caminho do interesse pelo tornar-se si mesmo, identificado com o tornar-se cristão6. Em especial, tal massificação é acompanhada pelo evento da secularização, fenômeno amplificado tanto pelo paradigma da modernidade7 quanto pelo deísmo8 no Ocidente. Dooyeweerd, nessa direção, irá apontar que:

Além disso, o homem médio secularizado de nossos dias perdeu todo e qualquer interesse verdadeiro na religião. Ele caiu preso de um estado de niilismo espiritual, negando todos os valores espirituais. Ele perdeu toda a sua fé e nega quaisquer ideais mais elevados do que a satisfação de seus próprios apetites. Mesmo a fé humanista na humanidade e no poder da razão humana para governar o mundo e elevar o homem a um nível mais elevado de liberdade e moralidade não mais exerce qualquer apelo à mente do homem de massa atual. Para ele, Deus está morto, e as duas guerras mundiais destruíram o ideal humanista de homem. O homem moderno se perdeu e se considera como alguém lançado em um mundo sem sentido, que não oferece esperança de um futuro melhor.9

Mais do que um problema teórico, essa despersonalização tornou-se, na filosofia, um dilema que atinge o âmago do ser humano, situado em sua existência; como resposta à sua angústia existencial, o existencialismo surgiu como uma dessas respostas na contemporaneidade. Assim, em contraste à abstração moral e racional predecessora, traços de uma filosofia cartesiana que situa a razão como centro do ser humano, esses movimentos propõem uma nova perspectiva sobre o homem preocupada com a sua situação concreta no mundo, “com seu estado de decadência como homem de massa contemporâneo e com suas possibilidades de redescoberta de si mesmo como personalidade responsável”10. O existencialismo procura penetrar as profundezas do ego humano, livre por natureza e causa de sua inquietação espiritual e, por isso, a batalha pela existência é o significado da vida do homem. Porém, a reflexão sobre esta liberdade criativa, ele é levado a confrontar-se com a causa de sua angústia: o medo da morte, isto é, mais do que um fato biológico, porém o senso do próprio nada que extermina todos os projetos e objetivos humanos e o mergulha no vazio. O homem possui uma liberdade para a morte11. A crise da sociedade ocidental está estabelecida.

Em especial, o desenraizamento espiritual orienta e permeia essa crise da civilização ocidental, realidade que é gestada e projetada pelo ambiente de uma época, e, para além de uma Zeitgeist que se manifesta a cada período, esse ambiente é, na verdade, como ventos do ar do qual o fôlego humano se nutre; existe duas condições, duas ideias e duas religiões — e, aqui, o bispo Agostinho de Hipona é claro: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial”12. Nesse sentido, o trabalho intelectual, no horizonte e dentro das fronteiras da fé cristã, é, sobretudo, mais do que a mera distinção analítica de conceitos e a crítica intelectual que estabelece os limites da razão e os fundamentos artificiais e sub-reptícios de uma doutrina; os filósofos, escritores e pensadores, na medida que se imiscuem da tarefa do anúncio do reino de Deus, são profetas da sociedade, possuem um olhar apocalíptico, isto é, uma vez que, como identifica James Smith, a literatura apocalíptica envolve um “um gênero que busca nos fazer ver o mundo por outro viés e, assim, enxergar a verdade que tenta ocultar”13.

Portanto, a captação de uma crise na civilização ocidental como processo de despersonalização do indivíduo é o senso de um olhar apocalíptico que desvela a sua interioridade no combate que se dá no centro de sua existência; e, desde os primórdios da humanidade, essa batalha já se imperava como direcionadora da história, com as duas sementes — Caim e Sete, as fundações da Babilônia e de Jerusalém, a cidade dos homens e a cidade de Deus. Como põe o teólogo holandês Herman Bavinck, em sua crítica ao monismo14, o cristianismo é o produtor da história ao postular, pela revelação, uma radical crise:

O cristianismo é, em si, história; ele produz a história, é um dos seus principais fatores e é precisamente aquilo que a ergue acima da natureza e dos processos naturais. E a afirmação e prova disso se dá mediante seus próprios atos; Cristo veio a este mundo para uma crise — o conteúdo da história jaz numa tremenda batalha. O monismo nada sabe a respeito disso, pois esquematiza todas as coisas com suas categorias de “antes” e “depois”. Ele possui apenas um único modelo: anterior ou posterior, inferior ou superior, menor ou maior, ainda-não e já-passado. O monismo não conhece pro e contra, mas agindo assim, ele despreza a vida, a experiência de todo homem e também a gravidade terrivelmente trágica da história. A revelação é uma confirmação e uma explicação da vida ao afirmar que a essência da história reside num intenso conflito entre as trevas e a luz, entre o pecado e a graça, entre o céu e o inferno. A história do mundo não é o julgamento do mundo, contudo é um dos seus julgamentos.15

Eis o desvelar do olhar apocalíptico que tece as condições para a crise do ser humano: o conflito entre as duas cidades. Jó viu-se no meio dessa batalha; Satanás, aquele que, sem lar, rodeava a terra para observar o que nela ocorre, afirma diante de Deus sobre a fidelidade de Jó: ele “tem bons motivos para temer a Deus”16. A visão apocalíptica do escritor russo Fiódor Dostoiévski descortinou as fronteiras do fim do mundo que se assomava sobre a sociedade russa e a civilização ocidental; em uma objeção profunda à modernidade e ao Iluminismo que, em um só golpe, fere tanto à burguesia capitalista quanto o socialismo, ele destrincha criticamente o falso fundamento da razão moderna e dos três princípios iluministas — Liberté, Égalité, Fraternité! — em Notas de Inverno sobre Impressões de Verão. O ponto fundamental põe-se na fraternidade, cuja substância o sujeito ocidental não pode encontrar:

[…] Ora, este ponto é o mais curioso e, deve-se confessar, constitui no Ocidente, até hoje, a principal pedra de toque. O ocidental refere-se a ela como a grande força que move os homens, e não percebe que não há de onde tirá-la, se ela não existe na realidade. O que fazer, portanto? É preciso criar a fraternidade, custe o que custar. Verifica-se, porém, que não se pode fazer a fraternidade, porque ela se faz por si, concede-se por si, é encontrada na natureza. Todavia, na natureza do francês e, em geral, na do homem do Ocidente, ela não é encontrada, mas sim o princípio pessoal, individual, o princípio da acentuada autodefesa, da autorrealização, da autodeterminação em seu próprio Eu, da oposição deste Eu a toda a natureza e a todas as demais pessoas, na qualidade de princípio independente e isolado, absolutamente igual e do mesmo valor que tudo o que existe além dele. Ora, uma tal autoafirmação não podia dar origem à fraternidade. […] Mas a personalidade ocidental não está acostumada a um tal desenvolvimento dos fatos: ela exige à força o seu direito, ela quer participar, e disso não resulta fraternidade. Está claro: ela pode transformar-se? Mas semelhante transformação leva milênios, porque tais ideias devem antes entrar na carne e no sangue para se tornarem realidade.17

Com efeito, o indivíduo que vive sob esse princípio egoístico e humanista da sociedade ocidental não pode produzi-lo, o que coloca em foco a crise da personalidade na civilização ocidental. Dostoiévski, porém, coloca o desenvolvimento da personalidade humana como uma tarefa radical para a humanidade.

E então, hão de replicar-me vocês: é preciso ser impessoal para ser feliz? Consiste nisso a salvação? Pelo contrário, pelo contrário, digo eu, não só não se deve ser impessoal, mas justamente é preciso tornar-se uma personalidade, e mesmo num grau muito mais elevado do que daquele que se definiu agora no Ocidente. Compreendam-me: o sacrifício de si mesmo em proveito de todos, um sacrifício autodeterminado, de todo consciente e por ninguém obrigado, é que constitui, a meu ver, o sinal do mais alto desenvolvimento da personalidade, de seu máximo poderio, do mais elevado autodomínio, da mais completa liberdade de seu arbítrio.18

Perante a crise da civilização ocidental, subentende-se um conflito religioso. Antes de reestabelecer uma crítica da razão e reavaliar os problemas transcendentais19, retomando o projeto de Kant em sua filosofia transcendental — mas de um modo radicalmente distinto —, Dooyeweerd empreende uma gênese espiritual do ego humano que, com olhar profético, revela as bases religiosas do pensamento. A antítese teórica proposta pelas ciências especiais20 entre a atividade teorética e o horizonte de experiência, a partir de um aspecto modal21, pressupõe um ponto de síntese que não pode ser encontrada nem na razão teórica, nem no horizonte de experiência; ela é estabelecida no sujeito conhecedor, e em sua unidade central, o ego humano:

Mas todos esses aspectos da nossa experiência e existência na ordem do tempo relacionam-se à unidade central de nossa consciência, a qual denominamos eu, ou ego. Eu experimento, e eu existo, e esse eu ultrapassa a diversidade de aspectos que a vida humana apresenta na ordem temporal. O ego não deve ser determinado por nenhum aspecto de nossa experiência temporal, uma vez que é o ponto de referência central de todos eles. Se ao homem faltasse esse eu central ele não poderia, de fato, ter qualquer experiência.22

Logo, a questão sobre o que é o homem envolve um mistério que não é possível ser explicado pelo próprio homem23. Se a unidade do conhecimento se encontra em seu ego, aquilo que ultrapassa a ordem temporal, este exibe a sua verdadeira substância: o nada. O eu se oculta e, tal como demonstra Pascal, o ser humano revela-se como enigma para si mesmo: o “homem ultrapassa infinitamente o homem”24. Pois o “mistério do eu humano é que ele é, de fato, nada em si mesmo; quer dizer, ele é nada enquanto tentamos concebê-lo à parte de suas três relações centrais as quais, unicamente, fornecem-lhe sentido”25, isto é, a relação com o mundo temporal, com os seus semelhantes e com a sua Origem divina.

Esse enigma só encontra resolução no próprio Deus; o autoconhecimento aponta para além do próprio ego, para a relação entre o eu humano e Deus, cuja natureza é religiosa26. Calvino abre as Institutas afirmando que o “verdadeiro conhecimento de nós mesmos é dependente do verdadeiro conhecimento de Deus”27. Todavia, esse saber não procede da teologia, como ciência dogmática dos artigos de fé, mas “pode ser apenas resultado da palavra-revelação de Deus operando no coração, o centro religioso de nossa existência, pelo poder do Espírito Santo”28. Procede essa estrutura do fato de o ser humano ter sido criado como expressão da imagem de Deus, qual seja, a Imago Dei, o núcleo supratemporal de todos os aspectos da criação; porém, ela é apagada quando o homem procurou ser algo a partir de si mesmo, na queda, fora de seu Criador29. E o centro dessa imagem situa-se, segundo as Escrituras, no coração, raiz da atividade espiritual e religiosa do ser humano, com os seus motivos básicos30.

Apenas por meio de Jesus Cristo, Palavra encarnada e Redentor, a imagem de Deus tem sido restaurada no centro religioso da natureza humana. A redenção por Jesus Cristo em seu sentido bíblico radical significa o renascimento de nosso coração e deve se revelar no todo de nossa vida temporal. Consequentemente, não pode haver um autoconhecimento real à parte de Jesus Cristo. E esse autoconhecimento bíblico implica que toda a nossa visão de mundo e da vida precisa ser reformada em um sentido cristocêntrico (…)31

Assim, o mais alto grau de desenvolvimento da personalidade humana é trilhado pelo caminho aberto por Cristo, o Deus-homem que revela tanto a natureza perfeita de Deus, quanto uma humanidade plena. A sua revelação põe, no mundo, um conflito, um ponto de antítese entre duas religiões: nos termos de Dostoiévski, a religião do Deus-homem e a do homem-deus; a visão de Jerusalém, cidade da paz, na qual todos os povos se reúnem para a grande ceia em torno de Cristo, e a visão da Babilônia, cujo centro é uma torre na qual línguas se confundem e os homens se dividem, em guerra, uns contra os outros. Em Irmãos Karamázov, encontramos a descrição da batalha entre essas duas religiões, com o impulsivo personagem Dimitri:

[…] A beleza é uma coisa terrível e horrível! Terrível porque indefinível, e impossível de definir porque Deus só nos propôs enigmas. Aí os extremos se tocam, aí todas as contradições convivem. […] Existe um número formidável de mistérios! Um número excessivo de enigmas oprime o homem na Terra. Decifra-os como és capaz e sai enxuto da chuva. A beleza! Não posso, ademais, suportar que algum homem, até de coração superior e de inteligência elevada, comece pelo ideal de Madona mas termine no ideal de Sodoma. Ainda mais terrível é aquele que, já tendo o ideal de Sodoma na alma, não nega o ideal de Madona, e seu coração arde de fato por ele, arde de fato como nos seus puros anos juvenis. Não, o homem é vasto, vasto até demais; eu o faria mais estreito. Até o diabo sabe o que é isso, veja só! O que à mente parece desonra é tudo beleza para o coração. A beleza estará em Sodoma? Podes crer que é em Sodoma que ela está para a imensa maioria dos homens — conhecias ou não esse segredo? É horrível que a beleza seja uma coisa não só terrível, mas também misteriosa. Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens. […]32

Como Agostinho33, Dostoiévski compreendeu a verdadeira beleza, o anseio de um coração religioso: “[…] Há no mundo apenas uma figura de absoluta beleza: Cristo. Aquela figura infinitamente adorável é, de fato, uma maravilha infinita (todo o Evangelho de São João está repleto desse pensamento; João vê a maravilha da Encarnação, a aparição visível do Belo)”34. A encarnação de Cristo é a imagem do Deus-homem, o ideal de Madona35, o sacrifício daquele que, sendo Criador, fez-se criatura para salvação do ser humano; em contraste, o ideal de Sodoma é o do homem-deus, figura que o escritor russo, na obra Os Demônios, alude, por meio do personagem niilista Kirílov, para representar a inversão antropológica36, na acepção materialista de Ludwig Feuerbach: a teologia é antropologia37. Essa ideia é a gênese do mal: se Deus não existe, tudo é permitido. Nesse ideal de Sodoma, para Dostoiévski, há o demoníaco, a liberdade irrestrita que nega a existência divina e produz a violência.

Como profetas na crise da civilização ocidental, autores como Dooyeweerd e Dostoiévski apontam para um dilema que se dá para além da esfera da discussão intelectual e da guerra de ideias; eles despem as estruturas da sociedade para que, com uma visão mergulhada nos textos bíblicos, tragam à superfície a realidade das forças religiosas que orientam o coração; é nele que “lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens”38. E, assim, para o interior do homem, Dooyeweerd propõe outro motivo básico religioso, contra aquele não bíblico, fundamentado no tema da revelação, a criação, a queda no pecado e a redenção por Jesus Cristo como a Palavra Encarnada, na comunhão do Espírito Santo. Esse motivo básico sinaliza uma nova orientação para o autêntico e verdadeiro desenvolvimento da personalidade humana, para a transcendência do homem, quando este, ao negar a si mesmo, encontra Cristo. 

Antes do trabalho intelectual, o profetismo cristão, com o desvelar dos movimentos espirituais do coração, assinala uma nova antropologia que designa uma tarefa ao cristão da anunciação da mensagem cristã e, além disso, um novo paradigma para construção da personalidade humana. Como Cristo expressou, de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Kierkegaard apontou que tornar-se si mesmo é tornar-se cristão; não haverá homens e mulheres verdadeiramente engajados com a missão de Deus, com o empreendimento teorético e científico a partir da fé cristã, sem antes passarem por uma renovação radical e regeneração do coração pelo poder do Espírito, demonstrado na fidelidade a Jesus Cristo. Ao mundo, põe-se uma crise, um conflito que se inicia no interior humano; o Senhor diz: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”39. O servo fiel é chamado para tal batalha, para a renovação da humanidade no poder do Evangelho, contra o ideal de Sodoma, a cidade dos homens e a palavra do homem-deus.

E, no entanto, também ali se processa a mesma luta tenaz, surda e já antiga, a luta de morte do princípio pessoal, comum a todo o Ocidente, com a necessidade de acomodar-se de algum modo ao menos, formar de algum modo uma comunidade e instalar-se num formigueiro comum; transformar-se nem que seja num formigueiro, mas organizar-se sem que uns devorem os outros, senão todos se tornarão antropófagos! Neste sentido, por outro lado, observa-se o mesmo que em Paris: a mesma ânsia de se deter, por desespero, num status quo, arrancar de si com carne todos os desejos e esperanças, amaldiçoar o futuro, em que talvez os próprios generais do progresso não tenham suficiente fé, e venerar Baal. […] Tudo isto é tão solene, triunfante, altivo, que nos oprime o espírito. Olham-se estas centenas de milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para cá de todo o globo terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único, que se aglomeram plácida, obstinada e silenciosamente neste palácio colossal, e sente-se que aqui se realizou algo definitivo, que assim chegou ao término. Isto constitui não sei que cena bíblica, algo sobre a Babilônia, uma profecia do Apocalipse que se realiza aos nossos olhos. Sente-se a necessidade de muita resistência espiritual e muita negação para não ceder, não se submeter à impressão, não se inclinar ante o fato e não deificar Baal, isto é, não aceitar o existente como sendo o ideal…40

3. Conclusão

A crise na sociedade ocidental sobre o problema antropológico evidencia, sobretudo, a insuficiência das concepções de ser humano fundamentadas no registro da temporalidade; o homem ultrapassa o homem, disse Pascal, e, no horizonte da experiência, ele apenas poderá encontrar algo que é menor do que si mesmo, no qual irá se escravizar e diminuir. Transcender a si mesmo, por algo que possa se sacrificar absolutamente, na direção de um princípio absoluto e que seja maior do que o próprio indivíduo, é a única via para a salvação deste. Porém, ele não poderia alcançar tal salvação com os seus próprios esforços: Deus se fez carne, como Palavra-revelação, e revelou-se aos homens, apontando a direção para o ser humano.

Os pensadores cristãos, como profetas em uma cultura, descortinam, então, as estruturas de uma civilização para apontar para as expressões religiosas do coração humano e a batalha entre a Jerusalém e a Babilônia no seu interior. A crise de uma sociedade é o sinal desse embate antigo, desde o início dos tempos: a semente da mulher e a semente da serpente, os filhos da promessa e os filhos do diabo.


Graduando em Filosofia (Licenciatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Jornalismo pela PUC Minas. Líder do Núcleo de Filosofia Cristã da ABC². E-mail: [email protected]

VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica. 1 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2020, p. 23.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme V. R. de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos de Souza. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 242-243.

Ibid., p. 242-243.

Em O Anticristo, Nietzsche (2007, p. 7) busca empreender uma crítica aos valores de décadence, concepções morais aspirantes à divindade e à virtude que, para ele, representam uma deterioração do homem, o seu enfraquecimento. A crítica de Nietzsche à sociedade e ao cristianismo como um rebanho apoia-se na noção da submissão de uma multidão a ideais e figuras de cunhos morais, religiosos e sociais sem reflexividade e autocriação. Um exemplo de exploração dos dilemas desses argumentos está em diversas obras do Fiódor Dostoiévski.

KIERKEGAARD, S. Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70. 1986.

O paradigma da modernidade, aqui, pode ser concebido com a autonomia do sujeito.

O deísmo foi um movimento espiritual na Europa que substituiu a noção de um Deus que detém o controle sobre todas as coisas pela crença em uma espécie de grande relojeiro que produzira um relógio mecânico autômato.

Dooyeweerd, op.cit., p. 243.

10 Ibid., p. 245.

11 Ibid., p. 246.

12 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2, XIV, XXVIII.

13 SMITH, J. K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. Tradução: James Reis. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 64.

14 Em A Filosofia da Revelação, Bavinck tece uma profunda crítica ao monismo, enquanto uma doutrina que, disfarçadamente, oculta distinções fundamentais. Cf. BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

15 Ibid., p.173.

16 Jó 1:9.

17 Dostoiévski, 2011, p.132-133.

18 Dooyeweerd, semelhantemente a Kant, quer fazer uma crítica da razão e estabelecer o fundamento do conhecimento, bem como seus limites, ao mesmo tempo que esclarece a base epistêmica no ego humano; porém, em oposição a este último, que permanece na incognoscibilidade do númeno, isto é, da coisa-em-si, o que envolve o problema do ego como ponto de síntese teórica do saber, o holandês estabelece que a fundação do conhecimento deve se situar no coração, como centro do eu humano, o que demarca as bases religiosas do conhecimento humano.

19 A partir de uma crítica transcendental do pensamento teórico, Dooyeweerd identifica três problemas transcendentais básicos na relação entre a esfera teórica da reflexão filosófica e suprateórica do conhecimento da consciência humana. Esses três problemas, já postulado por Kant anteriormente — da cosmologia, da antropologia e da teologia metafísicas — gera a ideia transcendental básica tríplice que, de forma consciente ou inconsciente, subjaz a qualquer reflexão filosófica e a possibilita. Essa ideia básica tríplice é denominada como ideia cosmonômica da filosofia. Essas três ideias são: (1) a ideia de totalidade do sentido cósmico; (2) a ideia de ponto arquimediano do pensamento teórico; (3) a ideia de arché ou da origem do sentido cósmico (DOOYEWEERD, op. cit., p. 87, 104 e 281).

20 Uma ciência especial, ou ciência positiva, é a ciência de um aspecto modal particular do horizonte de experiência, isto é, ela propõe uma antítese teórica entre o aspecto teórico e algum outro aspecto da experiência, pois a antítese teórica está na oposição entre a abstração teorética e a experiência. Inclusive, os problemas teóricos que a ciência especial enfrenta são suscitados a partir dessa resistência de um objeto não lógico à atividade lógica, o que envolve, para Dooyeweerd, uma filosofia propriamente de tais ciências para determinação dos limites e conceitos desta mesma. Ref: Uma crítica do pensamento teórico in: Ibid., p. 47-76).

21 Um aspecto modal, esfera modal ou modalidade, são modos de ser, e se referem aos quinzes aspectos (numérico, espacial, cinemático, físico, biótico, sensitivo-psíquico, analítico, histórico-cultural, linguístico, social, econômico, estético, jurídico, ético e pístico) (Ibid., p. 284-285).

22 Ibid., p. 249.

23 Ibid., p. 251.

24 Pascal, 1973, p. 149.

25 Dooyeweerd, op.cit., p. 251.

26 Ibid., p.253-254.

27 Institutas I.i.1.

28 Ibid., p. 254.

29 Id., 1984, p. 105.

30 Ibid., p. 255-256.

31 Ibid., p. 261.

32 Dostoiévski, 2019, p. 162.

33 “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. Mas eis: estavas dentro e eu estava fora. Lá fora eu te procurava e me atirava, deforme, sobre as formosuras que fizeste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Mantinham-me longe de ti coisas que, se não estivessem em ti, não seriam. Chamaste e clamaste e quebraste minha surdez; faiscaste, resplandeceste e expulsaste minha cegueira; exalaste e respirei e te aspirei; saboreei e tenho fome e sede; tocaste-me, e ardo na tua paz” (Santo Agostinho, Confissões, Livro X, 38).

34 Dostoiévski, 2009, p. 138.

35 Madona é a representação artística da Maria, mãe de Jesus, na iconografia cristã.

36 Em Os Demônios, o personagem Kirílov retoma essa problemática do homem-deus como ideal de um homem novo, próprio à modernidade, em uma semelhança com o ideal de Übermensch em Nietzsche em relação ao problema do suicídio lógico. Ref: Dostoiévski, 2018, p. 596-600.

37 Ref.: Feuerbach, 2018.

38 Dostoiévski, 2019, p. 162.

39 Mateus 10:34.

40 Dostoiévski, 2011, p.115-116.


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