Ensaio escrito por Cauê Ribeiro Olivato, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2025
Em meio a um mundo com seu ritmo extremamente acelerado, a produtividade é vista com grande estima. O tempo é algo precioso e, portanto, não se pode desperdiçar nenhuma porção dele. Assim, pessoas têm preenchido seu tempo com o maior número de atividades e responsabilidades e o ócio é visto com desprezo. Práticas rituais, como a observância do sábado, onde se dedica um dia para o descanso, parece algo inconcebível.
O professor Dru Johnson, em seu livro Filosofia bíblica1, expõe como as práticas ritualísticas têm um efeito epistemológico, não sendo apenas práticas impostas por Deus para testar a obediência de Israel, mas com um propósito de moldar o povo. Portanto, o dia do descanso, como o sábado instituído no Antigo Testamento, vai além de uma simples pausa, mas ensina sobre dependência, dignidade e fragilidade humana. Diante disso, o presente ensaio visa examinar como a prática ritual do dia do descanso é ainda necessária atualmente, tanto para o cristão como para o não crente, resgatando os ritmos saudáveis de produtividade.
No exercício de nossa vida profissional, seja ela na cidade ou no campo, debaixo do Sol ou em um escritório, o fato é que todos aguardam com ansiedade o final de semana. Não porque o trabalho seja algo ruim em si mesmo – pelo menos não deveria ser – mas porque nossos corpos e mentes gastam energia para executá-los, e a única forma de repor essa energia é por meio do descanso. Seja você alguém que tenha um preparo físico e psicológico melhor que a média ou não, em algum momento sua fonte de energia acaba, seu corpo já não aguenta mais fazer a força como no início e sua mente não processa mais os pensamentos como deveria.
Como humanos, fomos criados seres limitados e precisamos diariamente de pausas, como o intervalo do almoço, fim do expediente e o sono da noite, além de períodos mais longos como um fim de semana ou mesmo as férias. Mas, e quanto a Deus? De acordo com a perspectiva cristã, Ele é onipotente e, assim, como poderia precisar de algum descanso? De fato, esta é uma questão que desperta a curiosidade. Se Ele é um ser dotado de todo o poder, então não poderia chegar a um momento que desfaleceria, tendo assim que recorrer ao descanso. Mas, a própria Bíblia, que afirma o poder de Deus, também relata este mesmo Deus descansando ao sétimo dia, após concluir a criação do mundo e tudo que nele há. Acredito que não deva ser nada simples, pelo menos aos nossos olhos humanos, criar o universo, mas, para Deus, não é assim. O relato de Gênesis 1 mostra o Senhor criando a partir de sua própria voz, tamanho o seu poder.
Deste modo, Deus, sendo quem é, não pode se cansar e nem precisa de uma pausa. Assim, seu descanso deve ter um significado maior. Quando observado o relato de Êxodo 20, especialmente no Decálogo, vemos que um destes mandamentos é justamente a guarda de um dia de descanso, onde, ao ensinar essa lei a Moisés, Deus usa o próprio exemplo na criação do mundo para dar a ênfase necessária. Assim como Ele descansou, nós igualmente devemos. Aqui, entendemos o sentido do descanso de Deus como um modelo a ser seguido por nós.
No final do Pentateuco, em Deuteronômio 5, Moisés evoca as leis dadas por Deus ao povo. Agora, ao falar sobre a guarda do sábado, ele acrescenta que ao observarem esse mandamento, o povo deveria se lembrar de que foram servos na terra do Egito e que o Senhor os libertou com poderosa mão. Perceba como Deus vem construindo um conhecimento no povo, enquanto observam sua lei, que vai muito além de uma simples folga em suas agendas.
Em primeiro lugar, cumprir este mandamento é um ato de confiança em Deus. Eles não deveriam confiar em suas próprias forças, ou melhor, no exercício de seus trabalhos como algo que dê segurança para se sustentarem. A diligência profissional não é uma segurança de que o retorno financeiro será garantido. Se é Deus que governa e tem o controle sobre todas as coisas, não deveríamos descansar na garantia de seu cuidado? Isto não significa que nunca trabalhar seja então um ato maior de fé, essa seria uma interpretação equivocada, pois o trabalho foi instituído por Deus. A questão da confiança é algo que é reiterado ao longo das Escrituras, o Salmo de número 127 diz: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem”2.
Em segundo lugar, é um reconhecimento de que somos seres finitos. Como abordamos anteriormente, nossos corpos têm um limite, não somos seres dotados de uma energia infinita que podemos trabalhar por horas e horas sem descanso – até gostaríamos que o dia tivesse mais horas, mas acredito que não adiantaria de nada dado ao nosso esgotamento. Essa característica nos lembra de que não somos como Deus, somos limitados, constantemente necessitando parar, para que assim, possamos recuperar nossas forças. Sobre os limites impostos ao homem por Deus, o teólogo holandês Herman Bavinck comenta: “O homem não é autônomo, mas sempre dependente de Deus. Ele foi criado como um ser finito, com limites definidos, tanto em conhecimento quanto em poder”3.
Em terceiro lugar, é um ensinamento sobre a dignidade da pessoa, do amor ao próximo. Ainda que alguém observe o mandamento de guardar um dia sem exercer o trabalho, esta pessoa poderia colocar outra em seu lugar para assim continuar trabalhando. É sobre isto então que o mandamento vem nos alertar: não só aquele que escuta essa lei diretamente deve dar uma pausa, como todos aqueles que estão em volta dele, como família, os servos, animais e outros. Da mesma forma que somos limitados, os outros também são, portanto merecem o devido descanso a fim de recuperar suas energias.
Ao analisar a fundo este mandamento, vemos que o objetivo do Senhor era muito maior que impor um simples ritual ao seu povo. A prática ritualística, como o dia de sábado ou outras citadas nas Escrituras, estavam acima disto, elas tinham o propósito de ensinar uma sabedoria a este povo. Sobre tais práticas, Dru Johnson diz o seguinte:
Os autores bíblicos são explicitamente conscientes da função epistêmica dos rituais e os empregam expressamente em prol do conhecimento preciso. Não apenas gera conhecimento, mas também ajuda Israel a se tornar um tipo particular de comunidade, que inclui, mas não se limita, ao seu mundo intelectual compartilhado.4
Desta forma, é possível afirmar que há um tipo de sabedoria hebraica que não se limita ao conhecimento apenas deles, mas tem poder de ensinar e influenciar aqueles que têm contato com ela.
Hoje, estamos extremamente necessitados de voltar a beber deste conhecimento. Como visto, o descanso é fundamental para uma correta percepção da realidade de quem somos e do nosso relacionamento com Deus e o mundo ao redor. Porém, o que temos visto são pessoas cada vez mais sobrecarregadas buscando ser cada dia mais produtivas. Não damos o devido descanso para nossas mentes, mesmo quando os compromissos profissionais se encerram, buscamos algo para preencher esse vazio, como redes sociais e outros meios de entretenimento, que ao invés de trazer descanso, ocupam ainda mais nossas cabeças, nos levando assim a uma completa exaustão.
Não só as agendas cheias, mas a facilidade da comunicação com o advento da tecnologia levou a sociedade a não saber mais distinguir tempo de trabalho e tempo de descanso. É comum hoje chegar em casa após um longo dia de trabalho, e pegar o celular ou computador para continuar trabalhando. A ideia de um dia sagrado para recuperar a saúde física e mental parece coisa de preguiçoso, e não há virtude nenhuma nisso, segundo o pensamento moderno. Cada dia mais, as pessoas caem no engano de acharem que com sua própria força irão “edificar suas casas”. Dessa maneira, não só prejudicam a si mesmas, como aqueles que estão a sua volta, como a família, que perde momentos preciosos junto com o ente querido. Discussões sobre este tema estão em alta no Brasil, como a jornada de trabalho 6×1. Por falta de tempo e conhecimento de vários fatores envolvidos, não entrarei na discussão sobre ser saudável ou não esta jornada de trabalho, mas o fato do tema estar em debate é porque as pessoas já têm sentido os efeitos da cultura da produtividade.
Diante deste cenário, a prática do sábado pode oferecer uma alternativa para a sociedade contemporânea. Seja dentro do contexto religioso ou não, a noção de separar um dia para descanso e reflexão pode ser o remédio necessário para a cura de vários problemas. É urgente que recuperemos ritmos saudáveis de vida que sejam verdadeiramente produtivos. Essa prática ritual ensina para nós, milênios depois, que o tempo não deve ser consumido apenas pela produção, mas também pelo descanso, contemplação. Em meio a uma sociedade acelerada, redescobrir ritmos saudáveis, como o descanso, é algo revolucionário. O Sábado, logo, não se limita a uma tradição antiga, mas é uma prática atemporal, rica em ensinamentos para nossas vidas, para refletirmos e aprendermos a usar nosso tempo.
1 JOHNSON, D. Filosofia Bíblica: a origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução de Igor Sabino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, p. 144.
2 BÍBLIA SAGRADA. Almeida revista e atualizada (ARA). Salmos 127, versículos 1 e 2.
3 BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 2. Tradução de Albert J. de Lange. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
4 JOHNSON op. cit., p. 144.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.
Referências bibliográficas
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 2. Tradução de Albert J. de Lange. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
BÍBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica do Brasil, 1959. Disponível em: https://www.bible.com. Acesso em: 02 de Fevereiro de 2025.
JOHNSON, D. (2022). Filosofia Bíblica: A origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução de Igor Sabino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil.