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Entre o espelho e a redenção: a hermenêutica entre o eu e a centralidade de Cristo

Artigo de opinião escrito por Jeferson Barbosa de Freitas, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2025


A mulher estava de joelhos aos pés da cama, fazia uma oração sincera a Deus, enquanto os dedos percorriam as marcas dentadas na lateral da Bíblia que demarcavam o início de cada livro. O posicionamento do dedo foi aleatório, como se movido por uma força maior que direcionava para uma resposta que o anseio tanto buscava. O versículo único foi lido como órfão e despejado sem contexto na solução de um problema contemporâneo do qual nada fazia sentido, a não ser pelo afã cego da fé desesperada de encontrar respostas em meio ao caos.

Essa foi uma cena que presenciei em casa algumas vezes ao longo da adolescência, a leitura fragmentária da Bíblia e, principalmente, o vislumbre da Escritura como guia esotérico ou tarô religioso. Comportamento assimilado no meu lar e por outros milhares de lares evangélicos neopentecostais, e, até hoje, solidificado por leituras de devocionais fragmentados e autocentrados em ideais de desenvolvimento pessoal em uma cultura de leitura não solidificada. Dessa forma, a hermenêutica cristocêntrica, tendo como base a leitura da Bíblia de forma integral e sequencial, é essencial para superar a fragmentação interpretativa da Palavra de Deus em um processo de leitura transformador.

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (IPL, 2024) é uma importante fonte de dados para conhecer os indicadores e hábitos de leitura dos brasileiros. A principal questão aqui no que tange à fragmentação é a definição do conceito de leitor, pois, para a pesquisa, leitor é “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro de qualquer gênero, impresso ou digital, nos últimos três meses” (IPL, 2024, p. 14).

Essa não é uma definição inédita, é a mesma usada, desde 2017. Todavia, é fundamental para avaliar o dado de que 22% da população realiza, conforme a descrição da pesquisa, a leitura da Bíblia, por vontade própria, uma queda de 2% referente a 2019. Porém, como afirmado anteriormente, não seria necessário ler a Bíblia inteira, nem sequer um dos Testamentos, e muito menos algum de seus 66 livros, pois apenas a leitura de algum trecho escolhido ao acaso nos últimos três meses entraria na estatística de leitura. Dessa forma, se 22% parecem um número baixo de leitores, a realidade pode ser ainda mais devastadora.

Tais dados e estatísticas apenas atestam a forma fragmentada de leitura da Bíblia. Some-se a isso a popularização de devocionais que apresentam linhas de tempo alternativas, propostas temáticas sistemáticas com foco no desenvolvimento pessoal e na teologia da prosperidade. Dentre esses, destaca-se o livro mais vendido de 2024 (Publishnews, 2025), o devocional Café com Deus Pai, do Pastor Junior Rostirola, que se tornou um sucesso comercial entre cristãos interdenominacionais.

Os problemas de Café com Deus Pai não se limitam apenas a ele. Muitos devocionais selecionam versículos ou trechos isolados, sem considerar o contexto literário e histórico da passagem. Isso pode levar a aplicações subjetivas e desconectadas da mensagem original. Além disso, no livro de Junior Rostirola percebe-se uma ênfase na individualidade e na busca por revelações pessoais. Pelo sumário destacam-se alguns temas como: “Deus tem planos para você”, “Vencendo gigantes”, “ele cuida de você”, “o melhor tempo da sua vida é hoje”, “reorganize a sua agenda”, “Não perca o foco”, “você foi escolhido”, “você é único”, dentre outros.

Utilizando-se os preceitos de preparação e análise do livro Hermeneutic: Computer-Assisted Interpretation in the Humanities (Rockwell, G., Sinclair, S., 2016) realizei uma análise simplificada sobre o corpus total do texto do livro, utilizando a suíte de ferramentas de análise textual Voyant-Tools, e é substancial que o termo “você(s)” seja o termo mais frequente, com 1837 ocorrências, superando “Deus” com 1731 ocorrências. Os possessivos, “sua” e “seu”, aparecem, respectivamente, em quarto e quinto lugar com 1012 e 732 ocorrências, à frente de “Jesus” com 520 ocorrências. Dessa forma, é qualitativamente complexo afirmar que o material apresenta um enfoque cristocêntrico da leitura bíblica, e até mesmo teocêntrico, uma vez que há, semanticamente, um condicionamento ao contexto individual e autocentrado.

Em um país que pouco se lê, parece inadequado pautar problemas em um livro que fez de alguns poucos mais leitores do que eram. Conviver numa sociedade múltipla de diferentes visões teológicas não é um desafio apenas contemporâneo. Nesse aspecto, Kevin Vanhoozer (2005, p. 348)  nos auxilia detalhando como a diversidade interpretativa é o problema hermenêutico protestante por excelência. Apesar de que a fuga do embate teológico em prol da boa vizinhança produza tempos de falsa paz, essa “solução liberal para o conflito das interpretações é colocar a interpretação ao lado do valor na distinção fato/valor”, e dessa forma as interpretações perdem o peso dos fatos e verdades, ganhando o aspecto de preferência pessoal (Vanhoozer, 2005, p. 351).

É, portanto, impensável se contentar com a falácia da neutralidade e da tolerância, estando diante de inverdades hermenêuticas, propagadas, empacotadas e distribuídas com nomes de Deus e xícaras de café. Vanhoozer (2005, p. 351)  ainda é mais firme ao afirmar que a doutrina do pecado original seria nada mais do que uma declaração da universalidade do mau funcionamento cognitivo, uma confissão de que nosso projeto foi afetado por alterações ilícitas. Não apenas as nossas capacidades cognitivas não estão em perfeitas condições, como também as interpretamos em um ambiente de intensa poluição cognitiva e moral. O mau funcionamento cognitivo pode ser coletivo e individual e é essa experiência dualista e fragmentária que estamos experimentando.

Vanhoozer (2005, p. 42) dialoga com Agostinho nesta questão de “O que acontece quando cristãos apresentam interpretações conflitantes da Bíblia?”, na qual a principal regra hermenêutica é a de escolher a interpretação que melhor promove o amor a Deus e ao próximo. Ou seja, nunca uma visão para o “eu” e o campo semântico/linguístico da posse e identidade, como vimos até aqui. Quando há a disputa, a solução aponta para Cristo. 

Portanto, em contraponto a isso, é necessário priorizar a leitura da Bíblia de forma integral e contínua, ao invés de seriada e fragmentária, começando pelo Antigo Testamento e caminhando até o Novo. Isso permite compreender a progressão da história da redenção em sua totalidade. Soma-se a isso o enfoque voltado para Cristo em uma leitura cristocêntrica, e não mais autocentrada e com esboços de autodesenvolvimento.

Greidanus propõe um método hermenêutico que arremata todas essas soluções. Ele o intitula método cristocêntrico histórico-redentor, que move o leitor do Antigo para o Novo Testamento, buscando entender o texto em seu próprio contexto histórico-cultural, mas sempre visando conectar a mensagem com Jesus Cristo. Apenas uma leitura integral e contínua permite ao leitor notar essas conexões ao longo da Bíblia, e não por meio de trechos isolados. Ele enfatiza que “na pregação de qualquer porção das Escrituras, deve-se entender sua mensagem à luz deste centro: Jesus Cristo” (Greidanus, 2019, p. 239).

Todavia, Greidanus reafirma que não se deve pensar que o aspecto progressivo na história redentiva e na revelação que leva a Cristo faz o Antigo Testamento ser menos cristão. A progressão ocorre no contexto mais amplo de continuidade e, portanto, ressalta a unicidade do texto bíblico e sua importância de leitura sequencial para o pleno entendimento da história redentiva. Jesus Cristo é o elo entre o Antigo e o Novo Testamento (Greidanus, 2019, p. 63, 67). 

Apesar disso, não se pode esperar que apenas a existência de um método resolva a questão, do contrário, tal problema já seria um passado superado. Vanhoozer (2005, p. 443) explicita de forma inequívoca que todo entendimento textual é uma questão teológica e as virtudes interpretativas são, na realidade, virtudes espirituais. Ou seja, sem fé, nunca encontraríamos alguma coisa no texto que não nossa própria criação, ou nosso próprio reflexo. A ideia de encontrar o nosso próprio reflexo no texto bíblico, como um espelho, e não a imagem de Cristo, é a síntese de nosso problema até aqui. 

Mas Vanhoozer (2005, p. 443) arremata que, mesmo diante da verdade, os leitores podem ter razões para não querer o real significado do texto: seja pelo desafio, pela ameaça ao seu estilo de vida e até mesmo para o seu entendimento. A luta do leitor com o texto pode ser, às vezes, uma luta até a morte. Conforme afirma Christopher Lasch (1983, p. 27), o ambiente contemporâneo prioriza o aspecto terapêutico em detrimento do religioso. Atualmente, as pessoas não buscam mais a salvação pessoal, mas sim uma sensação de bem-estar imediato, saúde e estabilidade emocional, ainda que essas experiências sejam efêmeras e ilusórias.

Há, portanto, um caminho fragmentado e autocentrado que trata a Bíblia como um manual de autoajuda, e há a leitura sequencial e cristocêntrica que acompanha o progresso redentivo das Escrituras. A escolha parece óbvia, mas é um desafio que exige comprometimento. A fragmentação pode ser confortável, oferecendo respostas rápidas e terapêuticas, mas ela compromete a profundidade do entendimento e da fé. Diante disso, a leitura integral e contínua, guiada por um método hermenêutico sólido, não é apenas uma opção mais coerente, mas uma necessidade para aqueles que desejam encontrar, no texto bíblico, não apenas a si, um reflexo fajuto da contemporaneidade, mas a verdade revelada em Cristo.


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Referências bibliográficas

GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do Antigo Testamento: um método hermenêutico contemporâneo. Trad. Elizabeth Gomes. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.

INSTITUTO PRÓ-LIVRO (IPL). Retratos da leitura no Brasil. 6. ed. São Paulo: IPL, 2024. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/wp-content/uploads/2024/11/Apresentac%CC%A7a%CC%83o_Retratos_da_Leitura_2024_13-11_SITE.pdf. Acesso em: 1 fev. 2025.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Trad. Ernani Pavaneli. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

SOBOTA, Guilherme. “Café com Deus Pai – 2024” é o livro mais vendido do Brasil na Lista de Mais Vendidos do PublishNews de 2024. PublishNews. 2025. Disponível em: https://www.publishnews.com.br/materias/2025/01/22/cafe-com-deus-pai-2024-e-o-livro-mais-vendido-do-brasil-na-lista-de-mais-vendidos-do-publishnews-de-2024. Acesso em: 1 fev. 2025.

ROCKWELL, Geoffrey; SINCLAIR, Stéfan. Hermeneutic: computer-assisted interpretation in the humanities. Cambridge, MA: MIT Press, 2016.

VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto?: interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. Trad. Álvaro Hattnher. 1. ed. São Paulo: Vida, 2005.