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Vestígios da Trindade¹: explicação última da realidade e fundamento apologético

Escrito por Felipe Barnabé, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

O título desse artigo faz referência ao livro, de mesmo nome, do autor Peter J. Leithart. Nesse livro, o autor apresenta evidências da Trindade na experiência humana e na criação. O ponto é mostrar que o Deus trinitário se apresenta a nós de maneiras diferentes, não como um “deus” qualquer ou uma ideia de divindade, mas como o Deus triúno da Bíblia. Uma ontologia bíblica deve partir do Deus triúno como fundamento. Leithart interpreta bem o que Van Til afirma quando diz que devemos “começar com” a Trindade. Nas palavras de Scott Oliphint na introdução ao livro Graça Comum e o Evangelho de Van Til: “’Começar com a Trindade ontológica significa, pelo menos, que a realidade de Deus como Deus deve ser o pressuposto e a realidade controladora por trás de tudo que é dito”2.

A Trindade é um mistério, assim como outras importantes doutrinas cristãs. O que não significa que elas sejam irracionais, mas significa que não podem ser conhecidas em sentido científico. Nas palavras de Herman Bavinck:

O termo ‘mistério’ na Escritura não significa uma verdade abstrata sobrenatural no sentido Católico Romano. No entanto, a Escritura está igualmente muito longe da ideia de que os crentes podem compreender os mistérios revelados em um sentido científico. Na verdade, o conhecimento que Deus revelou de si mesmo na natureza e na Escritura ultrapassa a imaginação e o entendimento humanos3.



O objetivo desse artigo é apresentar alguns aspectos desse mistério que é a Trindade e como ela pode funcionar como ponto central de coerência da realidade. Ela deve nos dar a base para o desenvolvimento de toda cultura humana e para a interpretação do cosmo. E, mostrar, como uma apologética cristã deve pressupor a Trindade como ponto de partida.

CRIAÇÃO

Partir de uma ontologia trinitária nos permite resolver um problema recorrente da filosofia: a relação entre os universais e os particulares ou entre o uno e o múltiplo. Se todas as coisas têm uma origem comum, como se explica a multiplicidade? Ou, se existe só o múltiplo, de onde vem a unidade? Oliphint nos ajuda mais uma vez:

E não somente isso, mas, como Deus, o único ser que é independente, é trino, a singularidade de Deus, que confessamos como cristãos, deve ser afirmada, também em sua diversidade trina. Isto é, Deus é três em um, não simplesmente um. Sua singularidade tripla é o fundamento para a interação, na criação, do um (categorias universais) com os muitos (coisas particulares). A triunidade de Deus é, de fato, um mistério, e esse mistério tem análogos em toda a criação, quando as suas criaturas reconhecem unidade e diversidade no mundo que Deus criou. (VAN TIL, 2018, p. 11)

Diversos pensadores ao longo da história propuseram explicações para a coerência da realidade. As alternativas, em geral, caem em uma visão materialista, o universo é autoexistente e eterno, ou em uma visão criacional, alguma divindade criou o cosmos, seja por acidente, por necessidade ou por vontade. Em alguns casos a criação ainda é sustentada por essa divindade, em outros ela se sustenta de forma autônoma ou é parte da própria divindade. O dr. David Koyzis em seu prefácio ao livro de Guilherme Braun Jr.4, aponta quatro insights da filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd que nos podem ser úteis aqui como um resumo da posição cristã sobre o assunto:

Primeiramente, o cosmo não é um agregado fortuito de matéria e energia, mas a criação de Deus, dotada de sentido e ordenada. Em segundo lugar, esta criação é irredutivelmente complexa, sendo a realidade constituída de múltiplos aspectos, ou modos, pelos quais podemos compreender as diferenças entre as várias entidades, incluindo as formações sociais humanas. Em terceiro lugar, todo pensamento teórico tem fundamentos, mesmo aqueles que afirmam neutralidade em relação à religião e Deus. Assim sendo, mesmo ateus e agnósticos professos estão longe de ser ‘não religiosos’. Eles simplesmente redirecionaram sua fidelidade para algo dentro da criação, o qual efetivamente divinizam. Em quarto e último lugar, é possível traçar as grandes diferenças entre as várias abordagens ao universo de Deus a uma forma ou outra de reducionismo, isto é, a tendência de interpretar a totalidade da realidade por meio de um dos seus aspectos ou modos, como o biológico, o histórico ou o econômico. (BRAUN JR., 2019, p.12)

A única forma de ter uma visão não reducionista da realidade é aceitar a revelação de Deus na Bíblia. A Trindade é independente do mundo criado, Deus não necessitava criar o cosmos e este não é uma manifestação dEle. Qualquer tentativa de explicar a realidade sem o Deus trino é reducionista e não faz jus a revelação. A multiplicidade, assim como a unidade, ou coerência, só podem ser devidamente entendidas à luz do mistério trinitário. O Deus triúno, que possui em Seu próprio ser a unidade e a multiplicidade, é o fundamento necessário para o entendimento da realidade. Jeremy Ive ilustra bem esse ponto em Kuyper e Van Til:

“Van Til desenvolve os insights de Kuyper e argumenta que a Trindade é a única base para entender a unidade e a pluralidade do mundo. Ele afirma que relacionalidade só é possível e inteligível à luz da unidade e diversidade da Trindade. Na Trindade, a unidade e a diversidade são igualmente definitivas. É apenas através de Cristo, e iluminado pelo Espírito Santo que as relações são possíveis, e de fato conhecidas”5.

RELACIONAMENTO PACTUAL

A Trindade é um relacionamento pactual interno, indissolúvel e independente. Ive, cita Van Til em seu artigo The Trinitarian Alternative to the Scholastic Dilemma, já citado acima:

“As relações imanentes dentro das três Pessoas da santíssima Trindade são a base das relações que o Deus triúno sustenta ao mundo. É, claro, verdade que não sabemos nada sobre as relações imanentes dentro das Pessoas da Trindade, exceto através da revelação desta trindade através de Cristo nas Escrituras. Mas desde que o próprio Deus nos disse que ele é triúno em seu ser, é este ser triúno que está na base da criação e redenção.”

Ive, segue interpretando a citação, com a ajuda de Lane Tipton, que afirma: 

“a posição de Van Til como definindo o “princípio representacional”: internamente (“imanentemente”) nas relações de amor entre as três Pessoas e externamente (“economicamente”) no pacto decorrente dessas relações, segundo o qual o mundo é criado e redimido.  Para Van Til, o pacto afirma o princípio da personalidade no coração do universo e coloca a humanidade em uma relação pessoa-pessoa com Deus.”

Essa citação apresenta um complemento ao tópico anterior, afirmando a asseidade6 de Deus. Dele, também, se segue que todos os homens estão em um relacionamento pactual com Ele. As personalidades dentro da Trindade estão em um relacionamento com o cosmos. A criação, a sustentação do mundo, assim como sua redenção, são manifestações desse relacionamento pactual de Deus com a realidade criada.

O que nos leva ao último ponto desse artigo. A defesa da fé cristã depende da pressuposição da Trindade como fundamento da realidade criada e da apresentação de Deus como parte necessária do pacto com a criação.

APOLOGÉTICA

Romanos 1.207 nos diz que os atributos invisíveis de Deus e sua própria divindade são reconhecidos claramente na criação desde o princípio do mundo. Como vimos até agora a Trindade revelada pelas Escrituras é o mistério da tradição cristã que serve como fundamento para a interpretação da realidade.

Agora nos voltaremos para a apologética, a defesa da fé cristã. Dois pensadores cristãos reformados vem à mente aqui: Van Til que apresenta uma visão apologética mais próxima à pregação direta do evangelho, em que o Deus triúno deve ser apresentado e o não cristão deve ficar ciente de sua rebelião contra Ele, e Dooyeweerd que propõe uma filosofia cristã não reducionista da realidade como ponto de diálogo com o não cristão e crítica à racionalidade autônoma. Guilherme Braun Jr., em seu livro citado acima, apresenta um método apologético que integra a filosofia reformacional não reducionista de Dooyeweerd com a apologética pressuposicional de Van Til na tentativa de uma síntese que mantenha a Trindade como fundamento da defesa da fé, ao mesmo tempo em que não perca de vista as diferentes modalidades em que a realidade temporal se apresenta a nós.

Na abordagem de Braun Jr. o fundamento da realidade criada é a Trindade ontológica, o que faz com que os dois pensadores, Dooyeweerd e Van Til, possam dialogar, pois a base de ambos é revelacional. Estão amparados pela Palavra de Deus, seja em sua manifestação revelacional ou criacional. Como Braun afirma: “A doutrina da Trindade ontológica deve ser considerada uma ideia limitante, por meio da qual se pode conceber uma unidade radical da diversidade da realidade criada”. (BRAUN Jr., 2019, p. 88) e: “o cosmo é, em última análise, dependente do Deus triúno” (p. 89).

Em outras palavras:

“A Santíssima Trindade também fornece a base da compreensão integral da Palavra-Revelação de Deus (Palavra da criação, Palavra encarnada e Palavra inspirada de Deus) que engloba as relações modais-esféricas diversas e coesas da ordem criada e sua relação de pacto com a humanidade”. (p. 90).


Van Til argumenta que: “Parte da tarefa apologética cristã consiste em tornar os homens autoconscientes – guardiões ou violadores do pacto”. (p. 32) Braun argumentaria que esse pacto se manifesta de formas diferentes na realidade criada, fazendo referência aos aspectos modais de Dooyeweerd, e que a apologética cristã deve encontrar o timing correto para apresentar a Trindade em cada aspecto pois toda a criação manifesta ao Deus triúno.

“A fé é a finalidade principal do ser humano, embora seja apenas uma dentre outras que juntas formam o horizonte da experiência humana. O discurso apologético verdadeiramente neocalvinista deveria falar ao homem integral, isto é, aproximar a realidade das muitas facetas (aspectos, funções) da existência humana. Essa visão de toda a realidade é fornecida pela ontologia não reducionista da filosofia reformacional. A teologia reformada, por sua vez, fala da inevitável autorrevelação do soberano Deus triúno e do chamado humano para responder a revelação. O método apologético consoante ao espírito da reforma deve combinar os dois aspectos: considerar a fé cristã e chamar os incrédulos à crença no evangelho – o único modo de viver e de encontrar unidade na diversidade da realidade criada.” (p. 136)

Em outras palavras, a defesa da fé cristã deve fazer jus à Trindade, apresentado o Deus triúno em todos as formas como Ele se apresenta a nós. Seja na realidade, seja na revelação. Nunca nos esquecendo que esse mistério, a Trindade, deve ser pressuposto pelo apologista e é mais bem conhecido pela Palavra em sua forma integral (Palavra da criação, Palavra encarnada e Palavra inspirada de Deus).

CONCLUSÃO

A Trindade deve ser o fundamento de toda interpretação cristã da realidade. O relacionamento pactual intra-trinitário se manifesta a nós na revelação bíblica assim como na multiplicidade de aspectos da realidade criada.

O apologista cristão deve ser sábio para reconhecer os vestígios da Trindade em todas as áreas da realidade e encontrar o timing para apresentar ao não cristão a revelação de Deus que demanda uma resposta pactual do ser humano. Continuar em rebelião ou selar a paz através da fé em Cristo.


NOTAS

¹ LEITHART, Peter J. Vestígios da Trindade: Sinais de Deus na criação e na experiência humana. Tradução: Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

2 VAN TIL, Cornelius. Graça Comum e o Evangelho. Tradução: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.

3 BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Deus e a criação. Tradução: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

4 BRAUN JR. Guilherme. Um Método Trinitário Neocalvinista de Apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional. Tradução: Marcelo Lemos. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

5 IVE, Jeremy. The Trinitarian Alternative to the Scholastic Dilemma. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/59111813/The-Trinitarian-Alternative-to-the-Scholastic-Dilemma. Acesso em: 30/05/2020. Minha tradução.

6 Qualidade fundamental de Deus que O distingue de todos os demais seres do universo, pela qual Ele possui em si mesmo a causa ou o princípio de sua própria existência, sendo, portanto, incriado, além de absolutamente autônomo, livre e incondicionado.

7 Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas.

REFERÊNCIAS

BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Deus e a criação. Tradução: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

BRAUN JR. Guilherme. Um Método Trinitário Neocalvinista de Apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional. Tradução: Marcelo Lemos. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

IVE, Jeremy. The Trinitarian Alternative to the Scholastic Dilemma. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/59111813/The-Trinitarian-Alternative-to-the-Scholastic-Dilemma. Acesso em: 30/05/2020. Minha tradução.

LEITHART, Peter J. Vestígios da Trindade: Sinais de Deus na criação e na experiência humana. Tradução: Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

VAN TIL, Cornelius. Graça Comum e o Evangelho. Tradução: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.


2 comments

  1. Gabriel Sarmento

    Boa tarde.

    Eu gostaria de saber se a apologética pressuposicional, que afirma (corrijam-me se eu estiver enganado) ser Deus Triúno o fundamento de toda a realidade e que a Bíblia é a Palavra de Deus porque ela diz ser a Palavra de Deus, sustenta essas afirmações com base naquilo que o John Piper chama de “A glória peculiar”, ou seja, no caráter auto-autenticador das Escrituras.

    Há pouco tempo comecei a estudar sobre a apologética pressuposicional (assistindo uma série de vídeos do Seminário Presbiteriano JMC e lendo alguns textos de epistemologia do Rev. Davi Charles Gomes), embora já tivesse lido um pouco sobre apologética clássica em “Não tenho fé suficiente para ser ateu (Geisler e Turek”, “Em Guarda (Craig)” e “A Fé na era do ceticismo (Keller)”, além de duas obras do Ravi Zacharias (“A morte da razão” e “Jesus entre outros deuses”).

    Aproveitando esse último livro citado, a proposta do Ravi Zacharias se aproxima, de alguma forma, com a apologética pressuposicional, ao tentar mostrar Jesus como sendo distinto de qualquer um?

    Última pergunta: Por que não seria possível pensar na possibilidade de existir um Ser, muito parecido com aquele revelado na Palavra de Deus (inclusive tendo colocado no ser humano a “semente da religião”), que, fosse, ao invés de três pessoas, duas ou quatro pessoas? O problema da unidade na pluralidade não poderia ser resolvido dessa maneira também?

    Agradeço pela resposta.

    Também quero parabenizá-los pelos cursos “Rompendo a Bolha” (que já assisti) e “Olhando pra Fora” (estou acompanhando). Excelentes, sem sombra de dúvida!

    Deus abençoe!

  2. Gabriel Sarmento

    Boa tarde.

    A apologética pressuposicional, que se baseia em Deus como pressuposto para compreender a realidade e na afirmação de que a Bíblia é a Palavra de Deus porque ela diz ser a Palavra de Deus, se baseia naquilo que John Piper chama de “glória peculiar”, ou seja, no caráter auto-autenticador das Escrituras, e/ou na confrontação do cristianismo com outras visões de mundo, mostrando suas incoerências (irracionalidade ?) ?

    (Eu tinha mandado uma mensagem um pouco mais longa, porém parece que ele não foi salva. Portanto, se a primeira aparecer, considerem essa, por gentileza.)

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