Resenha escrita por Emanoel Ferreira Cardoso, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022
NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Tradução: Marcelo Herberts. 1ª edição. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017. 488 p.
O livro Cosmovisão: a história de um conceito, de David K. Naugle, tem muito a contribuir com o atual cenário de crenças fragmentadas e cosmovisões díspares da igreja evangélica que, consequentemente, aleijam sua práxis e enfraquecem a oportunidade ímpar de referenciar o real sentido da existência àqueles que vêm tateando em sua busca.
Em tal contexto, o autor David K. Naugle, ThD (Seminário Teológico de Dallas), PhD (Universidade de Texas-Arlington) e presidente da cadeira de filosofia na Universidade Batista de Dallas, faz um resgate da história, desenvolvimento e usos do rico conceito alemão Weltanchauung (cosmovisão). O propício insight do autor para iniciar seu empreendimento foi perceber a ausência de material em língua inglesa que justificasse a robustez e urgência de tal conceito (NAUGLE, 2017, p. 18).
Para a homérica tarefa, Naugle usa sua pena em quase quinhentas páginas discorrendo a profusa história do conceito e seus usos com maestria. Dividido em dez capítulos, o livro inicia com a chegada do termo no evangelicalismo protestante, indo até seu desenvolvimento no século XX. Depois, volta às origens alemãs desde seu primeiro uso, por Immanuel Kant, até sua recente crise na pós-modernidade, passando ainda por sua expansão nas áreas das ciências naturais e sociais. Nos últimos dois capítulos, o autor faz valiosíssimas reflexões teológicas e filosóficas sobre implicações e aplicações de uma cosmovisão. De fato, sua escrita é leve, cativante e de fácil compreensão. Com isto, porém, o leitor não deve pensar que a obra receba um tratamento raso do assunto. Naugle não nos deixa dúvidas de sua vasta pesquisa histórica e literária do conceito, administrando habilmente a fluída escrita com vigoroso conteúdo.
É possível perceber três vertentes na referida obra. Na primeira parte, o autor nos conta sobre uso de cosmovisão no evangelicalismo reformado. O uso pioneiro de James Orr foi um terreno rico e fértil para o florescimento do conceito e percepção de sua importância para a vida cristã percebida como um todo coeso, firmado em Jesus Cristo. Posteriormente desenvolvido por Abraham Kuyper, o homem “de dez cabeças e uma centena de mãos” (NAUGLE, 2017, p. 43), o conceito de cosmovisão teve um estirão de crescimento e tomou forma robusta. Sob a perícia e árduo trabalho deste gigante, houve larga apropriação e aplicação do conceito pelos cristãos em diversas ciências. Em seu discurso de inauguração da Universidade Livre em Amsterdã, fundada por ele mesmo, o brilhante neocalvinista conclui com aquilo que podemos chamar de seu epítome cosmovisional: “não há uma só polegada quadrada no domínio total da nossa existência humana sobre a qual Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, não grite “Meu!” (NAUGLE, 2017, p. 43).
Porém, estes profícuos homens de Deus também se mostraram fruto do seu tempo no trato intensamente racional do conceito de cosmovisão, muito característico no modernismo vigente. Foi com Herman Dooyeweerd que o conceito tomou sua forma mais próxima da perspectiva bíblica de uma vida cristã integrada. O importantíssimo filósofo holandês e professor na Universidade livre em Amsterdã percebeu que não era a mente, mas o coração a força motriz do ser humano. Naugle afirma: “Quando Dooyeweerd fez a descoberta bíblica da importância central do coração… a regra da razão foi destronada” (NAUGLE, 2017, p. 55). Este descobrimento o levou a concluir que não são os conteúdos das cosmovisões que nos dirigem, mas os compromissos do nosso coração. O autor ainda nos ajuda sobre o pensamento deste gigante: “A religião do coração é a causa; as filosofias e cosmovisões são o efeito cognitivo” (NAUGLE, 2017, p. 57).
Francis A. Schaeffer, então evangelista e apologista da segunda metade do século XX, reuniu seus esforços para direcionar uma sociedade ocidental perdida e distante de seus valores fundamentais. Neste cenário de desmoronamento, o suíço fundou a sociedade L’Abri, que “recomendava a cosmovisão cristã como a única resposta crível para os profundos dilemas da vida secular moderna” (NAUGLE, 2017, p. 61). O trabalho e contribuição destes homens é de grande valor para uma cosmovisão cristã no tratamento dos dilemas do homem moderno e pós-moderno.
Na segunda parte, começando no quarto capítulo indo até oitavo, o autor apresenta o surgimento tímido e de ordem secundária de weltanchauung na filosofia de Immanuel Kant ((NAUGLE, 2017, p. 93) tomando forma e expressividade somente com a fenomenologia de G. W. F. Hegel. Digno de nota é o uso e influência do conceito por Soren Kierkegaard e seu correlato “visão de vida”.
Wilhelm Dilthey foi o erudito alemão que marcou uma mudança brusca no uso do conceito de cosmovisão, na segunda metade do séc. XIX, pois, nas palavras de Naugle: “Em lugar dos sistemas metafísicos tradicionais que reivindicam validade universal, Dilthey estabeleceu sua metafilosofia de cosmovisão” (NAUGLE, 2017, p. 123). Com Friedrich Nietzsche, o conceito, conforme vinha sendo desenvolvido durante o idealismo alemão, chega a sua implicação lógica de impossibilidade, uma vez que o transcendente fora deixado de lado. Naugle nos elucida quanto ao pensamento nietzschiano: A alegada “verdade” de uma cosmovisão é meramente uma convenção estabelecida – o produto de hábitos e costumes linguísticos.
O século XX, por sua vez, é marcado por um cunho cético crescente quanto a weltanchauung. Deve ser apontada em Ludwig Wittgenstein seu uso de Weltbild (imagem de mundo), onde “uma abordagem para o mundo consiste não em modelos verificáveis de vida, linguagem e significado” (NAUGLE, 2017, p. 209). Há ainda a presença de weltanchauung nas ciências naturais e sociais abrangendo um longo período, as implicações e aplicações nas respectivas áreas.
A terceira e última parte da obra traz reflexões e cuidados tanto teológicos, quanto filosóficos no uso do conceito que são de grande ajuda para o discernimento do leitor. Concluindo, Naugle aponta que “uma cosmovisão ligada ao coração e um coração ligado a uma cosmovisão é a raiz daquela força embutida que determina como a vida vem e vai. Ela é decisiva para o tempo e para a eternidade” (NAUGLE, 2017, p. 434).
Diante de tal abordagem, o leitor constata que o trabalho do autor em apresentar a história do conceito de cosmovisão é primoroso, com perceptível capacidade de clareza e síntese, bem como profunda exposição dos tratamentos que recebera durante sua trajetória. Talvez, uma justa ponderação seja infeliz a opção do autor para o desenvolvimento do conceito primeiramente no cristianismo e, só então, nos pensadores não-cristãos. Este livro, contudo, é indispensável àqueles que anseiam mergulhar fundo no conceito de cosmovisão, as forças motrizes que movem e direcionam a vida humana.