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Arte, mimese e a fuga da moldura platônica

Escrito por Pedro dos Anjos, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022

Introdução

Pensar na civilização grega é visualizar determinadas imagens que simbolizam todo o desenvolvimento de uma cultura que formou muito do que somos e temos ainda hoje. É lembrar de seus pensadores, de sua mitologia, das grandes narrativas homéricas, dos altares e estátuas erigidos em honra a deuses e homens, além de uma arquitetura inconfundível e até mesmo canônica. O pensamento grego floresceu num caldeirão cultural onde houve uma transição na forma de se entender e explicar o mundo. Religião, certo tipo de proto-ciência e proto-filosofia se confundem nessa origem, em que o homem grego faz o movimento de deixar as explicações míticas para buscar explicações mais especulativas e conceituais do mundo. Não somente as técnicas artísticas — o desenvolvimento de proporção, realismo, harmonia e perspectiva — mas o próprio entendimento do papel da arte na civilização também evoluem, neste contexto, naturalmente, acompanhando as reflexões a respeito da própria natureza da realidade (GOMBRICH, 2018, p. 68).

O filósofo grego Platão (428 a.C – 348 a.C) foi um dos grandes nomes do pensamento pagão e sua filosofia tem sido, no decorrer dos séculos, além de uma força estruturante poderosa do motivo básico grego, um corpo teórico que se impregnou na cultura ocidental, deixando marcas profundas nos mais diversos campos da vida humana, não somente em nossa religiosidade ou reflexão filosófica, mas na arte e nos domínios da beleza.

Os seres humanos sempre tiveram uma relação interessante e variada com imagens. Ora tendem para a iconoclastia, ora forjam delas ídolos — de estátuas de madeira a pixels numa tela. Nossos sentidos são constantemente convocados a reagir às imagens lançadas a nós. Platão concebe uma visão particular que forma um tipo de moldura dentro da qual podemos enxergar a beleza e a arte de maneira muito particular. Como essa visão se apresenta ainda em nossa época? O que perdemos por influência do platonismo e que substituto seria o instrumento ordenador de vida que não somente valorizaria a beleza e a arte, mas, sobretudo, possibilitaria o livre florescimento das mesmas em nossa cultura?

O mundo partido em dois e a arte à deriva

Platão, partindo de dois de seus antecessores, os pensadores Heráclito e Parmênides, propõe a Teoria das Ideias, sua teoria da realidade, como a síntese que resolveria o dilema entre o constante Devir (o fluxo contínuo de mudança) heraclitiano e a perfeita imutabilidade do Ser em Parmênides. A proposta platônica é conceber a realidade em duas esferas: o mundo sensível da matéria, em constante estado de mobilidade e variação, e o mundo suprassensível, o inteligível, o patamar do real a que todas as coisas terrenas respondem. Platão, entretanto, deixa bem claro que o mundo parmenidiano é superior, e, enquanto a percepção intelectual deve ser o nosso guia em direção ao eterno, nossos sentidos pouco tem a nos oferecer (KENNY, 2004).

Numa visão em que os sentidos e as experiências com a matéria pouco oferecem, naturalmente a arte, domínio humano que se comunica a nós intensamente pela experiência sensorial, é também rebaixada. Platão sugere que em vez de tentarmos olhar para o mundo à nossa volta buscando significado nele, deveríamos buscar o ser das coisas por meio do nosso intelecto, ferramenta que pode tocar aquilo que é eterno, o mundo inteligível da Formas, sem ser iludido pelo mundo sensível. Tal esfera material havia sido moldada pelo Demiurgo, uma entidade divina que a moldou do caos, baseando-se em sua visão do mundo das Ideias. A arte (techné) seria o trabalho humano de imitação da ação criativa do Demiurgo.

[…] a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança, que lhe imprimiu, de um autêntico carpinteiro. (PLATÃO, 2001, 598c)

A arte está no domínio da Mimese (imitação). Para Platão, artistas atuam como falsários ao reproduzir aquilo que eles experimentam do mundo sensível, dedicando seu trabalho à criação de aparências, ilusões que afastam as pessoas ainda mais da verdade. A arte que de fato nos aproximaria da beleza não é qualquer uma, senão a dialética1, mediante a sua ação de purificar a alma humana do prazer sensível, a liberando pela apreensão intelectual das essências e fazendo-a chegar até a Beleza. O artista plástico, em nossa moderna concepção, seria um colaborador da eikasia, o conhecimento por imagens, tido como o estágio de conhecimento mais primário, o estado dos que, segundo a alegoria da caverna, estão como prisioneiros vendo o mundo por meio das sombras. O trabalho artístico se vê diminuído em relação à poesia, por envolver diretamente a matéria, e em relação aos artesãos, por não produzir utilidade prática e não carregar a virtude da representação de uma ideia verdadeira. A obra de arte é a imitação da imitação, como a pintura de uma cama feita pelo carpinteiro.

Com efeito, a diferença entre o artesão e o pintor é capital para o nosso propósito : o artesão fabrica uma cama que tem a unidade , a identidade de uma coisa (598a). O pintor, em contrapartida, apenas pinta, apenas “reproduz” um aspecto da cama, de frente ou de lado, etc. Portanto, o pintor imita o real, não como este é, mas como aparenta ser. Ele pinta um phántasma (598b). A pintura define-se, pois, por seu distanciamento do real e do verdadeiro, produz um simulacro, um ídolo (eidolon). (LACOSTE, 1985, p. 12)

Na exposição platônica, só o que há são molduras vazias, o quadro nada pode nos dizer, porque foi abduzido. O que importa é a abstração ideal para a qual a arte, em toda a sua materialidade contaminada pelo devir, consegue debilmente sinalizar no mundo inteligível. Como na obra do pintor surrealista René Magritte, A traição das Imagens (1929), na qual o artista belga pinta um cachimbo no centro da composição, para em seguida escrever abaixo da imagem a célebre inscrição “Isto não é um cachimbo”, pondo em xeque, de maneira tragicômica, o tecido da realidade criacional, ao propor alienação entre palavra escrita, conceito abstrato e representação imagética. A arte se torna imaterial, perde seu caráter imanente e participante da vida humana, se torna por demais hermética, incomunicável. Assume-se como um simulacro, uma ilusão. A arte provocativa pode nos ajudar a ver realidades que não percebemos, mas a arte dissimuladora engana a experiência de seu público, criando um ambiente de desconfiança e traição, provando assim o ponto de Platão. Não há terreno sólido neste mundo, tal arte nos diz. O quadro é triturado diante de nossos olhos, como uma obra de Banksy2, e tudo o que resta é o embaraço de lidar com o vazio na moldura.

Realocando as imagens, as molduras e os olhares

Imagens têm poder na realidade porque possuem caráter universal, produzem — como o próprio Platão constata — efeitos diversificados e viscerais sobre seus próprios criadores e, por fim, representam, o que significa dizer que tornam presente algo que está ausente (WOLFF, 2005). Nossa cultura tem sido marcada pelo uso exacerbado das imagens, dentro de inúmeras possibilidades — boas e más. Há muito deixaram a tutela primaz das artes visuais, com a popularização de meios fotográficos e ferramentas de edição, as quais contribuem para a democratização do acesso à arte e do alcance criativo das pessoas e ainda assim possibilitam pornografia, feiura, manipulação de informação e alienação da verdade e da beleza.

Qual a proposta escriturística quando se tem, de um lado, o reducionismo da imagem na arte a um simulacro inferior à realidade suprassensível e, de outro, a provocação de nossos sentidos pelo mau uso de recursos visuais por parte da nossa cultura que, ao mesmo tempo em que incentiva a criação de mais imagens, destrói sua importância e o potencial imaginativo e belo das mesmas? A resposta pode ser esclarecida com a ajuda de outra pintura.

Cristo na casa de seus pais, ou, como é também conhecida, A oficina do carpinteiro, de 1849, do pintor inglês John Everett Millais, nos apresenta uma cena cotidiana na oficina de José, pai de Jesus. Dois homens estão em segundo plano, trabalhando na mesa central da oficina. O jovem João Batista se aproxima do centro da imagem carregando uma vasilha com água, com uma expressão de espanto, e em primeiro plano, no meio da composição, vemos Jesus ainda garoto, com um ferimento na mão, provavelmente ocasionado por um prego da oficina, na qual está dando seus primeiros passos no aprendizado do ofício técnico de seu pai. Sua mãe se ajoelha, consolando o sereno menino, enquanto José se inclina, pegando a mão do pequeno. O sangue de sua mão pinga sobre seu pé, profetizando simbolicamente o futuro sacrifício do menino-Deus e ovelhas em terceiro plano, no cercado, vibram incomodadas, como se seu pastor estivesse sob algum tipo de apuro. A pintura, embora realizada com uma técnica de pintura impressionante, nos mostra uma cena da vida ordinária, da beleza simples do Evangelho, no Logos encarnado. Deus é também gente, que não rejeitou a singeleza da vida comum, não desprezou as mãos calejadas de seu pai e nem os calos e cicatrizes que se incorporariam à sua natureza humana. Ele não rejeitou a oficina e as ferramentas, Ele não desprezou a arte e a técnica. Não há espaço vago para dissimulação ou ardis na pintura, tudo é real, cognoscível e experimentável a cada ser humano na terra. Dor, amparo, aconchego, intimidade, beleza, espanto. Está tudo ali, como assim está a nossa volta. Partilhamos, nós e a imagem, de uma mesma realidade sensível e compreensível.

Ao contrário de Platão, para quem a beleza na materialidade é uma concessão da Beleza Suprema, utilizada como um ardil para capturar a atenção das almas humanas, direcioná-las às formas e livrá-las do cárcere do corpo (NUNES, 1999, p. 12), a beleza para o Cristianismo é um dom do Criador, uma graça derramada em um mundo que está em um tipo de cativeiro temporário, por culpa do pecado, e sua função é apontar para a Palavra, que tendo criado o universo todo, o sustenta, com as mesmas mãos encarnadas, feridas na pintura por um acidente na oficina e no tempo-espaço, pelos cravos romanos ao ser pendurado no madeiro. Essa beleza nos convida à co-criação, como artistas ou não. A realidade é nos apresentada como uma composição unificada, uma associação verdadeira entre visível e invisível, num quadro que por hora parece estar torto na moldura, mas que em breve será ajustado na parede, bem diante dos olhos de todos nós.

Conclusão

Sobre o trabalho do artista, em breves palavras, o filósofo da arte canadense Calvin Seerveeld escreve: “Este é o espírito, creio, que artistas deveriam inspirar em suas obras de arte: normalidade, abundância, encantamento, shalom” (SEERVELD, 2014, p. 72). O Criador e Redentor eterno do cosmos em nenhum momento desprezou a beleza comum, a variedade abundante de sua criação. Antes, continua preenchendo-a de encantamento até que sua Paz venha numa realidade absoluta. “Não é este o carpinteiro, filho de Maria?” (Mc 6:3). Sim, o Senhor de todas as mãos calejadas, sujas de tinta ou de gesso, dos dedos espetados com farpas de madeira, das mãos que escrevem, das vozes que cantam e pés que dançam. O artista não mimetiza a criação de um deus impessoal e imperfeito, ele colabora com o Autor de todas as coisas que não poupou as suas próprias mãos da sujeira do pó da terra.

1  A arte da conversação, ou do debate, por meio da qual chega-se, racionalmente, à verdade ou conhecimento acerca de algum assunto (BLACKBURN, 1997).

2 Notícia disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-45771649


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Referências bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Tradução: João Ferreira de  Almeida Revista e atualizada. 2ª ed. Barueri: Sociedade  Bíblica do Brasil, 1999. 896 p.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Tradução: Desidério Murcho…et al. 1ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. 437 p.

GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Tradução: Cristina de Assis Serra. 1. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018. 1046 p.

KENNY, Anthony.  Uma nova história da filosofia ocidental volume 1: filosofia antiga. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 395 p.

LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tradução: Álvaro Cabral. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. 109 p.

NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. 4.ed. São Paulo: Editora Ática, 1999. 56 p.


PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. 9. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2001. 512 p.

SEERVELD, Calvin. Imaginative reenchantment of society in God’s world. In: KOK, John H. (org.) Cultural Problems in Western Society: Sundry writings and occasional lectures. Sioux Center: Dordt College Press, 2014. 199 p.


WOLFF, Francis. O poder da imagem. In: NOVAES, Adauto (org.) Muito além do espetáculo. São Paulo: SENAC, 2007. 304 p.