Escrito por Annie Mucelini, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
“Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele.”
(Provérbios 22:6)
Introdução
Ser pai ou mãe significa tomar decisões sobre a vida de outra pessoa a todo momento. Essas escolhas começam antes do nascimento. Os pais escolhem o nome da criança, decidem se vai dormir em um berço e onde o colocarão. São os pais quem decidem como serão as fraldas, com quantos anos a criança vai para a escola e se terá irmãos ou não.
Contudo, algumas escolhas fogem ao controle parental. Talvez a criança simplesmente não durma no berço e se acalme somente na cama dos pais. Talvez os planos de parto natural e amamentação sejam atropelados por circunstâncias adversas. Outras escolhas são deliberadamente postergadas para que a criança possa decidir se quer furar as orelhas ou acreditar em Deus.
Sobre isso, segundo a Pew Research1, uma das grandes causas das projeções de declínio do cristianismo nos Estados Unidos é a falha na transmissão da identidade religiosa dos pais aos filhos. Nas famílias em que a fé religiosa é muito importante para os pais, 45% dos adolescentes compartilham dessa prioridade. Já entre os pais que não dão importância à religião em suas vidas, 80% dos filhos adolescentes seguem a mesma inclinação2.
O secularismo chegou às famílias. Uma pesquisa de 2019 registrou o declínio da educação religiosa doméstica nos Estados Unidos3. Entre os pais de filhos adultos, 65% responderam que seus filhos frequentaram algum tipo de educação religiosa, como a Escola Bíblica Dominical, e 61% assentiram levar os filhos regularmente às celebrações religiosas quando eram crianças. Já entre os pais de crianças pequenas, apenas 36% delas frequentam algum tipo de educação religiosa e 44% participam das celebrações.
Alguns artigos relacionam essa família não-religiosa à geração conhecida como “millenials”4, que desafia as expectativas da sociedade tradicional. Se havia uma crença de que a religião era importante para ensinar valores às crianças, os pais de hoje querem provar que uma moralidade não religiosa pode ser tão boa quanto, ou até melhor5.
Todavia, o filósofo holandês Herman Dooyeweerd teria muito a dizer sobre as pretensões irreligiosas dessas famílias. Esse artigo articula o seu pensamento com o de Maria Montessori para demonstrar como a religião é inescapável à criança. Vamos iniciar explorando os motivos para a laicidade familiar e confrontando-os com a definição dooyeweerdiana de religião. O segundo tópico trata da “mente absorvente” e os benefícios da educação intencionalmente religiosa. Por fim, teremos uma perspectiva teológica sobre a educação cristã no âmbito familiar.
A família é laica?
Dentre tantas decisões concernentes aos filhos, a decisão religiosa está entre as mais recentes. Ela parece estar associada à preocupação com a autonomia do educando, quando não se quer impor uma afiliação religiosa à criança. A ideia de que a criança deve crescer livre para decidir sobre suas afeições religiosas, especialmente ao afirmar que isso traria maior senso crítico e independência, retrata o humanismo descrito por Dooyeweerd e suas tentativas de “apresentar uma visão da realidade social como um relato imparcial dos próprios fatos sociais”.
O humanismo secular diminui o peso da fé religiosa nas decisões da vida. A espiritualidade se torna assunto de foro íntimo com pouco ou nenhum impacto sobre o que é de fato relevante. Assim surgem as famílias cujos pais professam religiões diferentes e decidem que não transmitirão qualquer delas aos filhos. A cultura familiar é formada a partir de outros elementos, mas isso não os livra da religião.
Dooyeweerd faz uma distinção importante entre a religião e a fé religiosa. Não se trata de um elemento da vida, mas de uma orientação do coração que direciona todas as funções humanas. Doravante, não usaremos a religião como significante para um movimento religioso organizado, individual ou coletivo, ou um sistema de doutrinas, crenças e rituais pré-estabelecido. Todas as vezes em que esse texto se referir à religião, trata-se da força motriz orientadora da ação e do pensamento.
A partir desse fundamento, não há qualquer ação, intenção ou pensamento desprovido de motivação religiosa. A religião é, em si, o motivo que direciona todas as coisas. A diferença não está em ser religioso ou não, mas em quê constitui a sua religião. Assim explica o autor de Raízes da cultura ocidental:
A filosofia é teórica, e na sua constituição ela permanece ligada à relatividade de todo pensamento humano. Como tal, a própria filosofia necessita de um ponto de partida absoluto. E esse ponto advém exclusivamente da religião. A religião dá estabilidade e alicerce até mesmo ao pensamento teórico. […] O absoluto tem direito a existir apenas na religião.6
Neste sentido, a diferença entre uma educação religiosa e o ensino laico está no nível de consciência e intencionalidade com que os motivos básicos religiosos são transmitidos de geração em geração.
Um manancial de alegria e grandeza
Maria Montessori descreve a primeira infância como portadora de uma “mente absorvente”. Diferente da mente dos adultos, que adquire conhecimento, a criança simplesmente os absorve até ser transformada por ele. “As impressões não só penetram na sua mente, como a formam”7. A mente absorvente da criança é capaz de aprender velozmente tudo o que a circunda, até mesmo o que não lhes é ensinado.
Do mesmo modo, os movimentos religiosos inconscientes não passam despercebidos à criança. Como uma esponja, ela absorve as experiências positivas ou negativas, sejam elas intencionais ou não. No entanto, quando há intencionalidade sobre a religião a ser transmitida, a criança acolhe a experiência como um manancial de alegria e grandeza.
A educação montessoriana está entre aquelas que valorizam a autonomia da criança, mas não considera a educação religiosa como uma prisão. Assim relata Maria Montessori, ao descrever as crianças que receberam educação religiosa em sua metodologia:
Religiosas e livres em suas operações intelectuais e no trabalho que nosso método oferece, mostram-se espíritos fortes, excepcionalmente robustos, como são robustas, fisicamente, as crianças asseadas e bem nutridas. […] sua intuição nos faz pensar na existência de um período religioso sensível: a primeira idade parece ligada a Deus.8
Educando para a eternidade
É vão esperar comportamento piedoso do ímpio, mas no contexto cristão a laicidade familiar é incoerente. Não é possível professar a fé cristã sem uma preocupação com a transmissão da fé aos filhos. Isso não quer dizer que a religião familiar deve ser imposta, pois ao Senhor, e não aos pais, pertence a salvação.
No entanto, a própria Bíblia ordena às famílias que ensinem as crianças a guardar os mandamentos. Tedd Tripp chama essa educação religiosa de “instrução formativa”, cujo foco é “interpretar a vida e reagir às circunstâncias de maneira bíblica”9. Isso acontece tanto em contextos planejados quanto em oportunidades improvisadas, mas sempre com intencionalidade de educar para a eternidade. Uma noção pré-teórica do divino já está instalada. O que será feito dela? A autonomia da criança não exclui a sua necessidade por um educador. O adulto é responsável por preparar o ambiente, modelar a cultura bíblica e ensinar aquilo que ouviu, aprendeu e foi contado por seus pais.
Todo cristão é chamado para testemunhar da ressurreição de Cristo, mas, para os pais cristãos, esse chamado é uma urgência excepcional. Amar os filhos é não suportar que eles não conheçam o Salvador. Se cremos que Jesus Cristo é o único caminho, a verdade e a vida, ocultar essa verdade em nome de qualquer liberdade é uma grande incoerência. Ou não cremos realmente, ou não os amamos tanto assim.
Conclusão
A importância que se dá à educação religiosa familiar é reveladora sobre as motivações básicas no coração dos pais. Para os que creem que somente em Cristo há salvação, não há nada mais urgente do que transmitir a mensagem de salvação aos filhos. Os pais não podem, de fato, escolher se seus filhos crerão em Deus, ou em qual deidade depositarão a sua fé. A salvação é individual, mas há uma escolha a ser feita pelos pais, e esta escolha se refere aos motivos básicos da cultura familiar à qual a criança estará exposta.
Aquilo que foi uma vez afirmado pelo Pregador em Eclesiastes, e reafirmado por Agostinho e Calvino, continua verdadeiro. Há em cada um de nós um desejo pela eternidade. A semente que busca pelo Criador está pronta para desabrochar também nas crianças. Precisamos regar suas vidas com a Revelação para que delas venha a brotar aquilo que foram destinadas a ser desde a Criação.
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1 MASCHEK, L.; STEWART, A. How U.S. religious composition has changed in recent decades. Pew Research Center, 2022. Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2022/09/13/how-u-s-religious-composition-has-changed-in-recent-decades/#Education-politics-and-geography. Acesso em: 01 maio 2023.
2 PARKER, K.; EAGLESON, E. U.S. Teens Take After Their Parents Religiously, Attend Services Together and Enjoy Family Rituals. Pew Research Center, 2020. Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2020/09/10/u-s-teens-take-after-their-parents-religiously-attend-services-together-and-enjoy-family-rituals/. Acesso em: 01 maio 2023.
3 WILCOX, W. B.; WANG, W. The decline of religion in American family life. American Enterprise Institute, 2011. Disponível em: https://www.aei.org/research-products/report/the-decline-of-religion-in-american-family-life/. Acesso em: 01 maio 2023.
4 MIRANDA, L. Millennial Parents Are Raising Their Kids Without Religion—and That’s Totally Okay. Parents, 2018. Disponível em: https://www.parents.com/parenting/better-parenting/style/millennial-parents-are-raising-their-kids-without-religion-and-thats-totally-ok/. Acesso em: 01 maio 2023.
5 Há vários artigos jornalísticos replicando um estudo que conclui que as crianças não-religiosas são, na verdade, mais gentis e graciosas do que as crianças que recebem educação religiosa em casa. O estudo foi desconstruído em um artigo pelo Dr. Robert Woodberry, disponível em: https://ifstudies.org/blog/are-non-religious-children-really-more-altruistic. Acesso em: 01 maio 2023.
6 DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental. Trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 21.
7 MONTESSORI, Maria. A mente absorvente. Trad. Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Nórdica, 1987, p. 36.
8 MONTESSORI, Maria. A descoberta da criança: pedagogia científica. Trad. Pe. Aury Maria Azélio Brunetti. Campinas (SP): Kírion, 2017, p. 298-299.
9 TRIPP, Tedd. Instruindo o coração da criança. Trad. Waléria Coicev. São José dos Campos (SP): Fiel, 2015, p. 42.
Referências bibliográficas
BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Nova Versão Internacional (NVI). Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018. 1664 p.
DAVIES, Simone. A criança Montessori: guia para educar crianças curiosas e responsáveis. Trad. Thaïs Costa. São Paulo: Nversos, 2021, 312 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília (DF): Monergismo, 2018, 276 p.
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KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. Trad. Rodrigo Amorim de Souza. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, 288 p.
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WOODBERRY, Robert. Are Non-Religious Children Really More Altruistic? IF Studies, 2015. Disponível em: https://ifstudies.org/blog/are-non-religious-children-really-more-altruistic. Acesso em: 01 maio 2023.
MIRANDA, L. Millennial Parents Are Raising Their Kids Without Religion—and That’s Totally Okay. Parents, 2018. Disponível em: https://www.parents.com/parenting/better-parenting/style/millennial-parents-are-raising-their-kids-without-religion-and-thats-totally-ok/. Acesso em: 01 maio 2023.
MONTESSORI, Maria. A descoberta da criança: pedagogia científica. Trad. Pe. Aury Maria Azélio Brunetti. Campinas (SP): Kírion, 2017, 347 p.
MONTESSORI, Maria. A mente absorvente. Trad. Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Nórdica, 1987, 347 p.