Escrito por Fabiana Eickhoff, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
John Frame destaca-se como professor de teologia sistemática e filosofia cristã, sendo considerado um dos principais intérpretes do pensamento de Cornelius Van Til. Em sua obra A doutrina do conhecimento de Deus, Frame aborda o triperspectivismo1, no qual o conhecimento consiste em três perspectivas: normativa, situacional e existencial. O autor nos apresenta a ideia de que a realidade pode ser compreendida a partir dessas três perspectivas interconectadas, proporcionando uma visão mais abrangente da realidade, sem cair em reducionismos. Frame assinala o que ele chama de Teologia do Senhorio, cujo pressuposto é “a autoridade, o controle e a presença” de Deus sobre todas as coisas, considerando também sua imanência, bem como sua transcendência. Como Frame ressalta: “Conhecer a autoridade, o controle e a presença de Deus envolve o conhecimento de sua lei, do seu mundo e de nós mesmos” (FRAME, 2010, p. 79).
Na Teologia do Senhorio, a autoridade e o reinado de Cristo são vistos como abrangentes e abarcam todas as áreas da vida. Isso significa que a vontade de Deus deve ser aplicada em todas as esferas da sociedade e que os cristãos são chamados a viver em submissão a Cristo em todas as áreas da vida. Não obstante, enquanto seres humanos pertencentes a uma sociedade, estamos sempre olhando ao nosso redor nos diversos nichos, buscando nosso “lugar ao sol”. Todos querem pertencer, ser relevantes e ter um “lugar de fala”. Porém, antes de pertencermos, somos seres que pertencem, que buscam seu objetivo, a fim de encontrar descanso e completude. Nesse sentido, a teoria triperspectivista ajuda a compreender que a busca por pertencimento envolve uma interação complexa entre normas objetivas, contextos situacionais e experiências pessoais. O indivíduo procura encontrar seu lugar no mundo, buscando alinhar seus valores, princípios e desejos com as demandas e oportunidades do ambiente em que está inserido. Contudo, não raras vezes, esta busca está esvaziada do sentindo transcendente, gerando inquietude.
Como na leitura de Agostinho, somos como flechas lançadas para um alvo específico e não conseguiremos seguir em paz e descansar o nosso coração, sem que encontremos esse alvo. Este alvo diz tanto sobre a nossa origem quanto sobre o nosso destino, “porque tu nos fizestes para ti, e o nosso coração permanecerá inquieto enquanto não repousar em Ti” (AGOSTINHO 1984, p. 15). Como criaturas, não nos bastamos a nós mesmos; ao contrário, somos seres necessitados daquele a quem pertencemos e para quem fomos criados. Um Criador que controla tudo, que exerce autoridade sobre todas as coisas e que está presente em cada situação, sem se misturar com a criação, nem com a complexidade da vida, ou mesmo com as diversidades das experiências. Ele simplesmente está presente. No entanto, a incompletude humana possui uma raiz primordial, que inevitavelmente afeta todos os seres humanos. A Queda da raça humana, descrita em Gênesis 3, resultou em sofrermos seus efeitos noéticos, perdendo a noção de nossa identidade e adquirindo, assim, uma “lesão”.
Na dicção de João Calvino, o ser humano possui o que ele chama de sensus divinitatis. Trata-se de um conjunto de processos cognitivos por meio dos quais somos capazes de obter conhecimento da presença e das propriedades de Deus. Para o reformador, esse sentido nos permitiria ter uma relação próxima com Deus, caracterizada por amor mútuo, afeição, comunicação e diálogo. No entanto, devido à Queda, essa percepção foi gravemente prejudicada, tornando-se impossível para o ser humano alcançar o conhecimento salvífico por si só: “De acordo com o modelo Aquino e Calvino, esse conhecimento natural sobre Deus foi em muitos casos (ou na maioria deles) comprometido, enfraquecido, reduzido, suavizado, coberto e impedido pelo pecado e suas consequências” (PLANTINGA, 2016, p. 89).
Com essa fratura ativa, nosso coração teve seu rumo alterado. Em vez de adorarmos ao Criador e buscarmos somente nele nossa fonte de deleite e satisfação, começamos a trocar a glória do Criador pela glória da criatura e erramos o alvo. Essa perspectiva é ensinada por Jonas Madureira em seu livro Inteligência Humilhada:
Ou o homem atinge o alvo para o qual ele foi criado, ou ele erra o alvo e, como consequência, atingirá qualquer outra coisa que estiver adiante e que, certamente, não será o alvo. Ora, o que a Queda representou então? Uma mudança fatal no direcionamento do nosso coração. Tal qual uma flecha que tem seu percurso alterado por um obstáculo, assim é o nosso coração que, como uma flecha desviada, corta o vento na direção de quaisquer coisas. O problema é que nenhuma dessas coisas é o seu alvo. Quão miserável e desgraçado é o homem que perdeu e não consegue achar o fim que foi destinado a atingir (MADUREIRA, 2017, p. 78).
Sem Deus, encontramos com o vazio de uma busca frenética por pertencimento e identidade nunca satisfeita. Queremos ser relevantes, ter voz, um “lugar de fala”, performar, ter satisfação, desempenho, visibilidade, notoriedade, mesmo que para isso tenhamos que “cruzar a linha do desespero”2 numa franca rendição ao espírito do tempo3, mergulhado na liquidez da pós-modernidade. Uma das razões que nos impulsiona nessa busca desenfreada por reconhecimento está relacionada à nossa necessidade de agradar o outro, intimamente ligada à necessidade de pertencimento
Segundo Viktor Frankl, médico psiquiatra e neurologista, sobrevivente do Holocausto, na Segunda Guerra Mundial, o pertencimento é o que nos proporciona a sensação de estarmos conectados com outras pessoas, evitando a solidão no mundo. Esse sentimento nos confere um senso de propósito e significado (FRANKL, 2015). Desejamos ser suficientes para alguém. Queremos ser a fonte e, assim, fingimos que nunca decepcionaremos o outro, nunca falharemos, nunca deixaremos de atingir o que é requerido ou esperado de nós. Vivemos uma mentira, pois somente Deus é suficiente e jamais falha. Esse desejo de agradar, no fundo, não é algo altruísta que busca amar o outro. Pelo contrário, é um desejo egoísta de ser indispensável, de ocupar um lugar glorioso.
Por outro lado, quando começamos a acreditar que o mundo não tem sentido algum, simplesmente porque nossa vontade não está satisfeita — e sim o desejo do outro em nós —, acabamos caindo em algo tão tirânico quanto a essa primeira demanda: a necessidade de satisfazer nossos próprios desejos e nosso ego a qualquer custo, mesmo que isso signifique prejudicar o outro. Em última instância, o nosso deus interior é aquilo que entesouramos no coração. Por este prisma, a verdadeira religião se inicia ao sacrificar no altar do cordeiro o louvor e a glória do nosso próprio nome. Somente em Deus encontraremos a felicidade genuína e verdadeira. Não na imagem que desejamos ter diante dos outros, nem naquilo que nós mesmos desejamos ser, mas, sim, naquilo que Deus, o princípio e o fim, onde nosso coração encontra paz, deseja que nos tornemos. Jesus é o exemplo de se tornar aquilo que Deus deseja. É um caminho que vai contra a nossa própria vontade.
Não obstante, como lidar com isto? Socorrendo-nos dos conceitos trazidos por Jonas Madureira, extraídos, por sua vez, do que Paulo ensina aos filipenses, é no próprio Deus encarnado e em sua gloriosa humildade e, sobretudo obediência resoluta [Phronesis4] que encontraremos descanso. Por sua vez, Frame vai um pouco além. Ele explica que desobediência representa o questionamento da autoridade de Deus. Para amar a vontade de Deus, o ponto de partida é a conversão, não baseada em regras externas, estereótipos ou aparências, mas, sim, no coração. Não se trata de uma mera adaptação à subcultura evangélica, mas de uma transformação interna que se reflete em frutos evidentes na obediência (FRAME, 2010). Assim, buscar ser o que Deus deseja que sejamos é uma batalha constante com Ele. E somente teremos sucesso quando nos submetermos à Sua vontade, mesmo quando não desejamos obedecer.
Não se trata de nossa própria vontade, mas, sim, da vontade soberana de Deus, sintonizada com o coração. Essa sintonia não ocorre sem enfrentar dificuldades. Ao buscarmos fazer a vontade de Deus, nos encontramos no “jardim das aflições”, pois é nesse momento que enfrentamos desafios intensos. É sobre o desencontro de querer fazer o bem e fazer o bem, de fato. Nosso maior problema é que isso não acontece pela nossa própria vontade, mas apesar dela e por causa da vontade de Deus. Deus nos coloca contra a parede, uma vez que Ele aponta para nossos pecados. Não gostamos e é por isso que há luta. Nossa única chance de vencer é quando Deus vence.
Embora convertidos, nossa natureza pecaminosa luta contra a vontade de Deus. É ela, justamente, que nos leva a ser o que os outros desejam que sejamos, ou o que nós mesmos desejamos ser, pois é baseada em estar no centro, no lugar de Deus. Somente por meio da regeneração seremos capacitados a cumprir o propósito de Deus em nossas vidas. Se a Phronesis de Cristo foi esvaziar-se, ao contrário do nosso Senhor, que para poder esvaziar-se precisou ser homem, a nossa é encher-nos Dele. Nós, que somos vazios, precisamos desesperadamente entender nosso papel de obediência, para que possamos ser servos bons e fiéis, relevantes no Reino. Só quem obedece consegue perceber-se como servo. Ao reconhecermos que o Senhor é o nosso Senhor, também dizemos quem somos, seus servos.
Apesar de querermos o sucesso e os holofotes voltados para nós, Deus nos pede obediência. Isso implica em acertar o alvo, mas também implica em humilhação. Essa é a única cura para a “loucura da vontade” chamada pecado: Quando, pela vontade do Pai, recebemos o sacrifício do Filho através do poder do Espírito, e somos restaurados e capacitados a nos encher, por sua autoridade, controle e presença. Trata-se, portanto de não apenas ser o que os nossos pais, amigos, igreja, professores ou patrões esperam de nós, ou o que queremos ser, de forma independente ou a despeito de qualquer autoridade, mas, sim, o que o Senhor quer que sejamos. Feridos, então, por sua Palavra de autoridade, nos entregamos ao seu controle, certos de sua presença constante. Afinal, somos chamados a ter em nós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus5.
Nossa relevância, portanto, não se origina de nossa busca pela relevância em si, mas, sim, de nossa busca por Jesus. Não devemos buscar ser relevantes; devemos buscar ser “semelhantes” a Cristo, refletindo a imagem e semelhança de Deus. A igreja encontrou sua relevância no sacrifício dos mártires, e não na autoridade dos governantes. Nosso Senhor é aquele que foi crucificado diante de Roma, em vez de enfrentá-la nos termos romanos.
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1 Explorando um pouco mais este conceito, de acordo com John Frame, a teoria se fundamenta nas três características essenciais da Trindade, resultando nas seguintes ênfases: a perspectiva situacional demonstra o controle divino sobre toda a criação e tudo o que ela contém; a perspectiva normativa revela a autoridade absoluta de Deus sobre toda a realidade por meio de suas leis que servem como padrões para vivermos; por fim, a perspectiva existencial evidencia a presença de Deus no mundo criado através de Seu relacionamento com os homens.
2 Sobre este termo cunhado por Francis August Schaeffer, Guilherme de Carvalho auxilia a entender que quando Schaeffer falava de “modernidade moderna” e do cruzamento da linha do desespero, ele não descrevia meramente o “fim” da modernidade, mas a nova configuração que começou ali e na qual estamos mergulhados agora. O que alguns chamam de pós-modernidade, mas que é melhor descrito com a expressão “hipermodernidade”, é exatamente a realização das profecias de Schaeffer sobre o colapso da identidade humana e a perda da imagem humana, do que o existencialismo foi apenas um estágio inicial. Disponível em: https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/02/08/francis-schaeffer-para-o-seculo-21/
3 O termo “espírito do Tempo” é a tradução alemã da palavra Zeitgeist, que diz respeito a um clima cultural que permeia toda a atmosfera global. Ele diz muito sobre como é o comportamento da sociedade, seus anseios e a busca das pessoas. Pode ser identificado através dos anseios culturais, tais como livros mais vendidos, músicas mais ouvidas, moda nas vitrines, filmes nas bilheterias dos cinemas, produtos nas prateleiras, movimentos sociais e políticos, etc. De certa forma, pode-se dizer que é um tipo de cosmovisão.
4 Phronesis é definida por Jonas Madureira como uma “combinação da atitude correta com a consciência correta e a vontade correta” (MADUREIRA, 2017, p. 150). Em Cristo, a Prhonesis implica em uma obediência absoluta, desejosa, satisfeita.
5 Paulo escrevendo aos filipenses, no capítulo 2, versículo, nos entrega Cristo como o maior exemplo de humildade.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. 418 p.
CARVALHO, Guilherme de. Francis Schaeffer para o século 21. Disponível em: https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/02/08/francis-schaeffer-para-o-seculo-21/
FRANKL, Victor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução: Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 38. ed. São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 184 p.
MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017. 336 p.
FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.446 p.
PLANTINGA, Alvin. Conhecimento e Crença Cristã. Tradução de Sérgio Ricardo Neves de Miranda. Brasília, DF: Academia Monergista, 2016. 224 p.