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A desventura da pregação polissuco

Artigo escrito por Isabela Barbosa, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


No mundo fictício de Harry Potter, muita coisa é possível. Além de vassouras que voam, quadros que falam e escadas com vida própria, a vasta gama de possibilidades que as poções proporcionam rendem à escola uma matéria só para isso. A poção polissuco é conhecida por ter um processo bastante complexo cuja finalidade é tornar quem a ingere exatamente a pessoa com a qual pretende se passar em sua forma física, bastando, para isso, algo simples, como um fio de cabelo.

Apesar de tal possibilidade ser absurda no mundo real, existe um fenômeno com uma premissa similar que permeia inúmeros púlpitos: a pregação centrada no homem, especialmente ao incorrermos sobre mensagens a partir do Antigo Testamento. Nela, o pregador convida os membros da igreja a vestirem a pele das inúmeras personagens das Escrituras, relacionando as narrativas com a vida comum do público. Assim, por exemplo, a exposição do texto passa a traçar uma linha reta de Davi diante do gigante ao ouvinte no banco enfrentando seus “gigantes” particulares. 

A princípio, ao se analisar superficialmente este tipo de pregação, nada soa alarmante, afinal, em sua maior parte, pregações assim têm como intenção tornar a mensagem prática. Porém, às custas de uma aplicação pessoal, a pregação tropeça pelo caminho de “faça como Davi” ou “não cometa o mesmo erro de Davi” e deixa passar um grande detalhe que Sidney Greidanus aponta: “(…) a pregação biográfica não interpreta cada história no contexto da história única que está por trás de tudo: o reino vindouro de Deus. Em vez disso, tem a tendência de isolar cada história de seus contextos de história da redenção e contexto literário” (GREIDANUS, 2019, p. 54).

Nesse sentido, para desenrolar a problemática da pregação polissuco, talvez seja interessante começar por uma pergunta: por que narrativas como as de Sansão, Davi e Golias, Jonas, entre outras, se encontram na Bíblia e não em um livro de história qualquer? Apesar da diversidade de gêneros literários contidos nas Escrituras, existe um denominador comum que faz cada poesia, lei, profecia e narrativa histórica partes de algo uniforme e homogêneo: Jesus Cristo. Em outras palavras, cada pequena parte do Antigo Testamento compõe um enredo muito maior e, ao compreendermos as Escrituras a partir dessa ótica da unidade do cânon bíblico e seu único fio condutor, a pregação polissuco se torna uma desventura ao administrar essa grande incisão em algo feito para ser um só.

Negligentemente, o pregador amputa cada narrativa de sua parte na grande narrativa redentora cujo ápice encontra-se em Cristo. E como qualquer membro separado do corpo, a mensagem perde seu valor, se reduzindo a uma série de recomendações para aprendermos lições pelo exemplo de erros e acertos de cada personagem. Como Willimon bem conclui: “Incapazes de pregar a Cristo e este crucificado, pregamos a humanidade, e esta melhorada” (WILLIMON apud GREIDANUS, 2019, p. 52).

A problemática em cima de mensagens com esse foco apenas na história de cada personagem e suas lições é bastante extensa. Sidney Greidanus, ao abordar o tema em sua obra Pregando a Cristo a partir do Antigo Testamento, toca no assunto ao discorrer sobre as diversas razões que permeiam a dificuldade da pregação cristocêntrica a partir do Antigo Testamento e insere a pregação biográfica ou centrada no homem como um dos três possíveis motivos para isso. 

Dentre os diversos pontos mencionados a respeito, ele expõe quatro problemáticas em que esse tipo de pregação incorre: 1) o erro da generalização, quando pegamos histórias particulares e as aplicamos a um contexto do público geral; 2) o erro da espiritualização, quando adicionamos um significado superior quando o texto não se propõe a isso; 3) o erro da moralização, ao retirarmos lições e aplicações pessoais apressadamente, desembocando, por fim, 4) no erro de gênero, ou seja, encarar uma narrativa de caráter descritivo como uma imediata prescrição para nós.

Todos os pontos merecem seu aprofundamento, mas aqui o intuito é dar uma atenção a mais ao penúltimo ponto: a moralização. Percebemos claramente na narrativa da redenção que a humanidade nunca conseguiu viver à altura da lei. Deus expressa o modo de se viver corretamente e muito disso a humanidade conhece. Apesar de alguns pormenores diferirem de lugar para lugar, é um conceito universal, por exemplo, que coisas como assassinato, traição e mentira sejam erradas. Já o perdão, a lealdade e a coragem são atitudes morais louváveis. No entanto, discernir atitudes morais positivas e negativas nunca foi determinante para que o homem agisse corretamente, ou seja, não fazendo o que é mau e praticando o que é bom.

A questão precipitada da pregação centrada no homem é que, ao traçar uma linha direta entre a narrativa histórica e a aplicação pessoal, o pregador passa a exigir atitudes morais conquistadas à força do próprio braço, à parte do poder de Cristo. A ênfase da mensagem se torna o que a pessoa pode fazer e desconsidera várias questões teológicas, inclusive a força e os méritos de Cristo.

O problema em si não se encontra no fato de retirar aplicações pessoais do texto, mas, sim, partir para esse objetivo tão depressa a ponto de deixar de olhar para a direção que aquela narrativa aponta. Davi, Sansão, José e Abraão precisavam de um Salvador e somente por meio daquele que cumpriu toda a lei nossa aplicação pessoal poderá evoluir para uma caminhada onde de fato não só conhecemos, mas também obedecemos. Para isso, precisamos de Cristo.

Em suma, nenhum ouvinte dos bancos precisa de mais prescrições, mas, definitivamente, precisa de um Salvador, Aquele cujo sacrifício redentor e o agir de seu Espírito nos capacitará a vivermos como Ele. Esse é o ponto comum, agindo como o unificador, o ápice, o cumprimento de tudo. Esse é o alvo para o qual toda narrativa histórica caminha e, como leitores e pregadores da Palavra, também precisamos caminhar.


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Referências bibliográficas

GREIDANUS, Sydney. Pregando a Cristo a partir do Antigo Testamento. Tradução: Elizabeth Gomes. 2. ed. São Paulo. Editora Cultura Cristã, 2019. 400 p.