Escrito por Lucas Tomazi Durand, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
A expressão “Idade Média”, utilizada para se referir à época entre os séculos V e XV d.C., surgiu com os renascentistas, homens que compreendiam esse período histórico como um tempo em que ocorreu um pequeno desenvolvimento humano e cultural. Os registros mais antigos do uso do termo são do italiano Giovanni Andrea, que compreendia o medievo como um intervalo entre os “tempos áureos” da Antiguidade Clássica e o tempo em que vivia (JUNIOR, 2006, p. 11). Esse modo de entender a era medieval não foi uma marca apenas da Renascença. Desde então, esse período é imaginado como época de caça às bruxas, em que a igreja detinha todo o poder e o utilizava no combate ao desenvolvimento científico e cultural.
Entretanto, essa imagem da era medieval está equivocada. Foi nesse tempo que muitos avanços culturais tiveram início, especialmente na filosofia, de modo que o pensamento dos renascentistas só pôde ser desenvolvido devido aos avanços medievais. Isso pode ser observado, por exemplo, na racionalidade de Descartes, que se originou na leitura dos escritos escolásticos medievais, como destacado por Lupi (2013). Além disso, foi na Idade Média que surgiram os centros de estudo mais importantes da história da humanidade: as universidades.
Os gregos já possuíam escolas filosóficas, dentre as mais famosas a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles. Eram centros de estudo focados na formação individual do homem (a paideia), em que se buscava preparar o homem para a vida na polis, ou seja, para ser cidadão (WERMANN; MACHADO, 2009, p. 2). Entretanto, as universidades medievais apresentavam características próprias que as distinguiam das escolas gregas. Embora também fossem centros de produção intelectual, a metodologia aplicada era diferente, fornecendo-lhes suas peculiaridades.
Essa metodologia própria do período medieval passou a ser conhecido como Escolástica, sendo compreendida como “o conjunto de doutrinas, opiniões e métodos que se desenvolveram nas universidades medievais” (LUPI, 2013, p. 172). Foi aplicada inicialmente nas escolas e, posteriormente, nas universidades. Envolvia a observação de um currículo de aprendizagem que apresentava início, meio e fim, ou seja, considerava o desligamento do estudante da universidade ao término de seus estudos (WERMANN; MACHADO, 2009, p. 13).
Este currículo iniciava com os estudos do Trivium (lógica, gramática e retórica) e do Quadrivium (aritmética, astronomia, música e geometria). Era aplicado tanto para estudantes das Faculdades de Artes Liberais quanto para os estudantes das Faculdades de Teologia (ANTISERI e REALE, 2017, p. 497). Embora o foco da segunda faculdade fosse o estudo da Bíblia e dos textos patrísticos, os alunos das Faculdades de Artes Liberais recebiam formação para examinar e produzir obras científico-filosóficas. Muitos dos documentos importantes para desenvolvimentos científicos posteriores, da era moderna, foram produzidos nesses centros de saber.
Cícera Müller, escrevendo sobre o surgimento das universidades, demonstra que temas como filosofia, lógica e medicina passaram por grandes desenvolvimentos no período medieval. Segundo a autora, na escola de Salerna ocorreu um grande desenvolvimento da medicina, ao ponto de práticas como dissecação serem aplicadas em suas classes (MÜLLER, 2019, p. 163). Ricardo Viotto também aponta para os desenvolvimentos educacionais e de jurisprudência que marcaram o período escolástico (VIOTTO, 2016, p. 358).
O método pedagógico aplicado nas universidades envolvia duas tarefas fundamentais: a lectio e a disputatio. A lectio consistia na leitura de textos sobre variados temas (tanto do Trivium e do Quadrivium quanto da teologia). Após a leitura, os estudantes eram convidados a participar de disputatio, os debates que ocorriam sobre variados temas, como ouvintes ou como participantes ativos. Três tipos de disputas eram comuns: as privadas, entre mestres e seus discípulos; públicas, nas quais qualquer pessoa podia inquirir sobre determinados temas; e extraordinárias, comumente realizadas entre dois professores (MÜLLER, 2019, p. 167).
Outra importante característica das universidades medievais era sua abertura para estudantes de todas as classes sociais. Antes do surgimento das universidades a educação acontecia em três tipos de escolas: as monacais, episcopais e palatinas. As duas primeiras tinham por objetivo majoritário a formação de clérigos, cujo trabalho era preservar os textos bíblicos e patrísticos (por meio das cópias) e instruir os fiéis. A terceira tinha por objetivo instruir os filhos de reis e nobres, sendo seu ensino em formato muito semelhante ao de escolas romanas (ANTISERI e REALE, 2017, p. 493, 494).
Embora tenham se tornado aristocráticas no período moderno, as universidades eram acessíveis a todas as pessoas, fossem filhos de pobres camponeses ou ricos comerciantes. Nisso constitui uma de suas principais diferenças para as escolas monásticas. Antiseri e Reale (2017) destacam que “depois de entrar na universidade, desapareciam as diferenças sociais dos estudantes: os goliardos e os clérigos formavam um mundo à parte, cuja ‘nobreza’ não era mais representada pela classe de origem, mas pela cultura adquirida” (ANTISERI e REALE, 2017, p. 495).
Todas essas características das universidades demonstram que a afirmação do período medieval ter sido um tempo de pouco desenvolvimento cultural é inverossímil. Foram as universidades que permitiram os grandes desenvolvimentos científicos que iniciaram com a Renascença, por sua ênfase nas artes liberais em seu currículo. Embora tenha sido o resgate dos autores gregos que forneceu a característica humanista do renascimento, foi o ensino religioso cristão que ensinou o valor da natureza, das leis físicas e do mundo natural, o qual deveria ser estudado.
Pensadores como Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, importantes nomes na filosofia e na física, não teriam sido capazes de suas muitas contribuições culturais se não houvesse universidades. Nem mesmo a Reforma Protestante, importante evento religioso e cultural do século XVI, teria ocorrido se não fosse pela existência das universidades. Os grandes debates de Lutero, que trouxeram muitos adeptos ao seu movimento, ocorreram no formato de disputatio, nos salões das universidades germânicas.
Por fim, a própria metodologia pedagógica desenvolvida na escolástica foi importante para o desenvolvimento intelectual. A conjunção da prática da leitura com os debates foi responsável pelo surgimento e validação de muitas novas ideias. A prática educacional comum no período grego, o diálogo, permitia que o filósofo provasse seu ponto para um arguidor imaginário. Nas disputas, entretanto, o pensador era questionado por um (ou vários) ouvintes, tendo suas ideias contraditas, julgadas, e muitas delas validadas. Dessa forma, correções podiam ser feitas em teorias, e pensamentos aperfeiçoados por meio das discussões. Assim, diferentemente do que se afirma, o período medieval não foi de obscurantismo intelectual. Pelo contrário, graças ao medievo muito da cultura que surgiu nos tempos posteriores existe. A Escolástica e as universidades são prova disso.
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Referências Bibliográficas
ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Vol. I. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Editora Paulus, 2017, 704 p.
JUNIOR, Hilário Franco. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 11.
LUPI, João Eduardo Pinto Basto. O método de argumentação na Filosofia Escolástica. Mirabilia 16. 2013, p. 170-177. Disponível em: https://ria.ufrn.br/jspui/handle/123456789/2089.
MÜLLER, Cícera L. F. L. F. Universidades medievais: entre auctoritas e potestas. Revista Ágora, Vitória, n. 30, p.157-173. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/28608.
VIOTTO, Ricardo Antonio. História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. Nuances: estudos sobre educação. Presidente Prudente, v. 27, n. 1, p. 357-363. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/4389
WERMANN, José Alfeu, MACHADO, Fabrício Fonseca. Uma aproximação entre a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e as Universidades. Theoria – Revista Eletrônica de Filosofia, Pouso Alegre, v. 8, n. 19, 2016, p. 1-17. Disponível em: https://www.theoria.com.br/edicao19/01012016RT.pdf.