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A influência do platonismo nas missões cristãs

Ensaio escrito por Rebeca de Queiroz Batista, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


A influência do platonismo no pensamento filosófico tem sido amplamente estudada por filósofos e demais pensadores. Porém, é certo que a visão de Platão não influenciou apenas o fazer filosófico, mas também o pensamento e a prática da sociedade ocidental. A relação entre o platonismo e a teologia cristã também tem sido alvo de discussão e estudos nos últimos séculos. Diante disso, este ensaio busca explorar a influência platônica na prática cristã, especialmente a dicotomia entre o mundo das ideias e a matéria, com ênfase em como esse pensamento moldou a abordagem e execução das missões cristãs. 

Fundamentos da filosofia platônica

Aristocles, mais conhecido como Platão, nasceu em Atenas em 428/427 a.C. De família com ligações aristocráticas, incluindo uma ascendência ligada ao rei Codro por parte paterna e parentesco com Sólon por parte materna, a vida política fora um ideal para Platão desde sua juventude, influenciado pela ascendência, inteligência e atitudes pessoais. Segundo dados de Aristóteles, Platão foi discípulo de Crátilo, que era seguidor de Heráclito, antes de se tornar discípulo de Sócrates, quando tinha por volta dos vinte anos. Inicialmente, seu objetivo em estudar filosofia era preparar-se melhor por meio dela à vida política. Contudo, sua inclinação inicial para a filosofia como meio de preparação para a vida política mudou drasticamente em 399 a.C. O descontentamento com os métodos da política praticada em Atenas atingiu seu auge quando Sócrates foi condenado à morte pelo grupo democrático que retomou o poder (REALE, ANTISERI, 2017, p. 121).

Convencido de que a filosofia era a chave para uma compreensão mais profunda e uma busca mais significativa pela verdade, Platão afastou-se da política militante. Sua insatisfação com o mundo sensível, marcado por instabilidade e imperfeições, levou-o a uma jornada intelectual em busca de uma realidade mais estável e perfeita. A metáfora da segunda navegação, apresentada na obra Timeu, simboliza a mudança de foco de Platão para o reino das Ideias eternas e imutáveis. Ele propôs uma distinção radical entre o mundo sensível, percebido pelos sentidos e caracterizado por mudanças constantes, e o mundo das Ideias, uma realidade eterna e imutável, acessível apenas pela razão. Essa dualidade filosófica tornou-se fundamental na cosmovisão platônica e influenciou profundamente o desenvolvimento subsequente da filosofia ocidental. Para Platão, o mundo sensível ao nosso redor é uma mera cópia imperfeita do verdadeiro mundo das ideias, que reside em um plano transcendental. Essas formas são realidades eternas e imutáveis, representando a essência perfeita das coisas, como beleza, justiça e bondade. A compreensão dessas formas é crucial para atingir o conhecimento verdadeiro e duradouro, lançando as bases para a busca incessante pela verdade e pela sabedoria.

O platonismo na teologia cristã e na prática missionária

Os primeiros teólogos cristãos, especialmente os Pais da Igreja, devido às fortes influências que sofreram da filosofia grega, acabaram por assimilar elementos do platonismo para articular doutrinas cristãs. Diante do desafio de expressar conceitos teológicos complexos, os Pais da Igreja encontraram na filosofia platônica uma linguagem e uma estrutura conceitual que complementavam sua compreensão cristã. A teoria das Formas de Platão, que postula a existência de realidades eternas e imutáveis, foi sintetizada com a compreensão dos cristãos sobre a natureza de Deus e das verdades divinas. O dualismo característico na relação entre o mundo sensível e o mundo das Ideias ofereceu uma abordagem para explicar a relação entre o divino e o terreno. Ao incorporar conceitos platônicos, os teólogos cristãos articularam a transcendência de Deus, a natureza eterna da alma e a realidade da verdade divina. Essa síntese entre o pensamento platônico e a teologia cristã gerou um grande impacto em como os cristãos observavam a realidade e, principalmente, em como eles lidariam com ela. 

Desde então, a ênfase platônica na realidade do mundo das ideias como o reino do eterno e perfeito moldou a visão cristã de redenção espiritual, destacando a busca pela verdade e transcendência espiritual como a maior das buscas e a única a ser desejada. Essa dicotomia também não influenciou apenas os cristãos do primeiro século, como continua totalmente arraigada no pensamento cristão atual. Isso implica também na forma como os cristãos lidam com a evangelização e com o avanço missionário.

Por influência desse pensamento platônico, a missão pode ser feita de forma incompleta, transformando a evangelização apenas em uma jornada de iluminação espiritual. O evangelho é apresentado como uma forma de elevar as almas para um entendimento superior, desprendendo-se das amarras do mundo físico e suas implicações terrenas. Essa abordagem reflete a influência da filosofia platônica na concepção cristã da salvação, orientando a missão cristã em direção a uma busca mais profunda por verdade, sabedoria e transcendência espiritual, sem se importar com todos os outros aspectos da vida. A partir dessa visão, tudo o que é físico, material e cultural começa a ser desprezado em detrimento do que é imaterial. 

Ao priorizar a redenção espiritual em detrimento das questões materiais, é gerada uma desconexão com as necessidades práticas e tangíveis das comunidades que estão sendo evangelizadas. Além disso, a visão platônica da matéria como inferior pode levar a uma negligência das preocupações terrenas, minando a abordagem holística do evangelho, que desde o início sempre buscou atender tanto às necessidades espirituais quanto materiais das pessoas. Essa visão deturpa o desejo original de Deus, quando frequentemente usa os aspectos materiais apenas como meio de chegar às pessoas para então ensiná-las o que realmente é importante. 

Quando olhamos para a Palavra de Deus e para a igreja primitiva, porém, não é esse tipo de abordagem que nós vemos. Os cristãos do primeiro século não dividiam suas vidas em duas, eles não criam nessa dicotomia. Pelo contrário, enraizados nas tradições judaicas, eles valorizavam uma compreensão holística da existência, influenciada pela ênfase bíblica na criação como obra boa de Deus e na encarnação divina. 

Conclusão

Ao traçarmos a trajetória da influência do platonismo na prática cristã, deparamo-nos com diversas ideias que moldaram, e infelizmente ainda moldam, a cosmovisão de inúmeras gerações. A dicotomia entre o mundo sensível e o mundo das ideias, introduzida por Platão, reverbera até os dias atuais na abordagem cristã, incluindo as abordagens missionárias. Contudo, ao refletirmos sobre o legado platônico na teologia cristã, é imperativo considerar as nuances dessa influência.

O desafio que surge da dicotomia entre o material e o espiritual é notável. Ao priorizar a redenção espiritual em detrimento das necessidades materiais, uma distorção do evangelho é feita, caindo em um profundo reducionismo. A visão platônica da matéria como inferior pode levar à negligência das preocupações terrenas, minando o propósito original da missão cristã. Assim, a conclusão que se impõe é a busca por uma harmonia entre a fé e a realidade tangível, integrando a busca pela verdade espiritual com a responsabilidade de atender às necessidades práticas das comunidades e à soberania e senhorio de Cristo sobre tudo. A abordagem holística do evangelho, enraizada na tradição judaica e refletida na igreja primitiva, nos convida a transcender dicotomias e a abraçar a integralidade da existência, onde o espiritual e o material convergem em uma expressão autêntica da mensagem cristã.


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Referências 

REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017. 697 p.