Artigo escrito por Thiago Junio de Almeida Ferreira¹, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
1. Introdução
O paganismo, como direta oposição ao pensamento cristão, recebe, na concepção platônica de Sócrates delimitada por Kierkegaard, uma posição determinante nessa antítese. O pensador grego em questão ocupa um lugar fundamental na história do pensamento ocidental, como um inaugurador de uma nova era na história da filosofia e, pode-se dizer, como a própria personificação da ideia de filósofo. Dá-se, com ele, a fundação da filosofia moral, bem como da antropologia filosófica, na medida que, conforme Henrique C. de Lima Vaz, Sócrates vincula psyché e areté, isto é, alma e virtude, numa concepção de homem direcionada para a reflexão ética e para o bem2.
O filósofo grego, como o próprio Cristo, nunca escrevera qualquer linha; pode-se encontrar fontes sobre ele apenas pela pena de seus biógrafos, Platão, Xenofonte e Aristófanes, cujos relatos testemunhais divergiam entre si. Porém, coube ao primeiro, o filósofo e discípulo Platão, a maior fama no papel de apresentar uma narrativa sobre a história de Sócrates; para complexificar o problema, mesmo os relatos do filósofo sobre este último variaram ao longo de sua extensa produção, de modo que estudiosos, em períodos mais recentes, procuraram explicar tais diferenças em uma linha cronológica, na medida que o Platão se emancipava da proposta de seu mestre3.
Sócrates, por seu valor histórico, foi comparado muitas vezes ao próprio Cristo; os dois personagens surgem como representantes de duas grandes tradições que se arraigaram profundamente ao pensamento ocidental: as tradições judaico-cristã e a grega. Um dos interlocutores do trabalho de comparação entre as duas figuras fora o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, cujo projeto de filosofia envolveu, pelo recurso da ironia e a preocupação com a subjetividade, o uso do método socrático para finalidades cristãs. A despeito disso, põe-se um problema para a construção de uma concepção de um self humano entre duas perspectivas, pois o cristianismo relega uma visão particular de uma interioridade ao bispo de Hipona, Santo Agostinho, o principal e inicial interlocutor de uma ideia antropológica e de identidade pessoal; nesse sentido, a perspectiva cristã se colocaria não como um complemento ou um parceiro do empreendimento socrático, ou da visão particular de seus biógrafos, contudo, uma ideia em oposição que aponta os próprios limites de uma subjetividade pagã — e, como buscar-se-á provar no presente artigo, a profunda relação desta última com o que o teólogo holandês da tradição neocalvinista Herman Bavinck criticou como um ponto de partida da representação, segundo a definição e análise de Kierkegaard da noção socrática-platônica da subjetividade.
Para isso, impõe-se um problema fundamental na determinação e diferenciação, conforme a investigação do filósofo dinamarquês, da subjetividade entre as perspectivas socrática e platônica. Na mesma direção, coloca-se a necessidade de apreender a percepção crítica do teólogo holandês sobre Sócrates, em um diálogo com o outro.
2. A subjetividade pagã
2.1. Diferenciações entre Sócrates e Platão em Kierkegaard
Søren Kierkegaard empreendeu um longo trabalho em direção à análise da figura de Sócrates; em sua dissertação de 1841, O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, para a obtenção do título de Magister Artium, ele investigou a historicidade deste último segundo as suas três fontes, a partir de uma tese fundamental: a personificação e introdução da ironia pelo pensador grego. Assim, a vida deste foi compreendida em direção à determinação do conceito de ironia, entendida como uma absoluta e infinita negatividade, conforme uma desarmonia entre o interior e o exterior4, o que impõe uma contradição que torna difícil a fixação de sua imagem5.
A ironia socrática é, em especial, desvelada na afirmação de Sócrates sobre si mesmo e a profecia do oráculo dado em nome de Apolo por uma sacerdotisa no templo de Delfos a Querefonte sobre a sabedoria de Sócrates, isto é, que não existia algum homem mais sábio que Sócrates. Este chegou à conclusão da veracidade do oráculo, pois reconhecia o próprio não-saber e a inutilidade de sua sabedoria, ao contrário de seus conterrâneos. Logo, a sua tarefa seria a de levar os homens à consciência do não saber deles; para isso, Sócrates, por meio de uma atitude ingênua, como quem nada sabe, qual seja, a sua habitual ironia, interroga os seus interlocutores.
Assim, a representação de Sócrates, segundo a análise realizada por Kierkegaard, se apresentou de três maneiras diversas, porém, especificamente em Platão, segundo o ponto de vista trágico deste, a imagem de Sócrates alcançou maior exatidão nos diálogos socráticos, ou aporéticos, nos quais se revelam a ironia e a negatividade próprias ao filósofo em questão; ele procurou, contudo, preencher este nada socrático com as ideias e uma sublimidade que era propriamente platônicos6.
Se, no Conceito de Ironia, Kierkegaard parte de uma investigação apurada da historicidade de Sócrates, em Migalhas Filosóficas, ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus e Pós-escrito às Migalhas Filosóficas, o filósofo, por meio de seu pseudônimo João Clímacus, distintamente, concebe um Sócrates eminentemente platônico, isto é, aquela representação que preenche a negatividade absoluta socrática com o conteúdo da ideia por meio da dialética — em seu interlocutor, pois ele mesmo permanece na negatividade. Isto significa que, aqui, o pensador grego se desponta como o plenamente humano, de grande autoconfiança, posto em Migalhas Filosóficas, conforme a teoria platônica da reminiscência e da preexistência da alma7;
De homem a homem, ser aquele que auxilia é o máximo, mas gerar é algo reservado ao deus, cujo amor é gerador, não aquele amor gerador sobre o qual Sócrates sabe falar tão belamente numa ocasião festiva. Pois este não indica, com efeito, a relação do mestre com o discípulo, mas a do autodidata com o belo quando, desviando o olhar da beleza esparsa, ele contempla o belo em si e para si e assim ‘engendra muitas belas palavras e pensamentos magníficos’ […]; e por isso pode-se dizer que ele gera e produz aquilo que já há muito tempo carregava no seu interior. A condição ele já possui então nele mesmo, e a produção (o parto) não é senão um trazer à luz o que já estava a postos; é por isso que nesta produção o instante é logo reabsorvido na lembrança8.
Dessa forma, a concepção de Sócrates, nestas últimas obras, associar-se-á à imanência do indivíduo, ao mesmo tempo que aquele surge, pela maiêutica, como um parteiro da verdade neste, conforme a teoria platônica. Dessa maneira, o pseudônimo Clímacus irá determinar uma semelhança entre o socrático e a doutrina de Ludwig Feuerbach sobre o cristianismo como projeção:
[…] a religião cristã como fruto de projeção de nossas qualidades e nossos desejos. Nas Migalhas, a questão se apresenta ao inverso: se não há revelação, se o Mestre não vem do alto, se o homem já se encontra de posse da verdade, recaímos no socrático, onde vigora a projeção. Se a religião é criação humana e sua verdade é humana, o homem já está na verdade e a verdade já está no homem; não há necessidade um homem novo, de um renascer: então estamos no terreno do socrático. Tudo se movimenta dentro da imanência: basta reconhecer (numa reminiscência) o que havíamos esquecido, que o homem é o próprio Deus para o homem, e que o Reino de Deus já está aí, sempre esteve. […]9.
Porém, Clímacus não compartilha da tese de Schleiermacher, já que, para ele, a questão não é simplificada em um sentimento de dependência absoluta, muito pelo contrário, pois o pseudônimo elabora um modelo no qual tudo depende do instante em que o homem encontra o Mestre, da resposta do discípulo ao convite do Mestre10, segundo o significado do histórico como fato absoluto. “Como alternativa ao paradigma da reminiscência, Clímacus vai construindo outro projeto teórico, que tem uma única obrigação, convencionada ser o oposto do socrático. Por isso o estribilho repete sempre: se não for assim, recairemos no socrático. Se o homem está fora da verdade, precisa voltar a ela, ativamente. Ou ao menos esperar que ela venha a ele, para então acolhê-la“11.
Aqui, Clímacus, no Pós-escrito, conceitua a distinção entre a religiosidade A e B: a primeira, aquela espécie de uma religião da imanência, na interiorização da dialética, situa uma continuidade entre o homem e o divino — em contraste ao paradoxo que põe a distância infinita —, a visão do religioso como mera ética, e está presente no paganismo ou em perspectivas ilusórias sobre o cristianismo; por outro lado, a religiosidade B é a do paradoxo, eminentemente cristã, pois não se contenta “em ser uma evolução no interior da determinação total da natureza humana”12, o que implica, nos moldes do pensamento de Climacus, a preocupação consigo mesmo, com a própria existência perante a verdade, isto é, o encontro da verdade na negatividade do interior humano13.
O edificante é também aqui muito corretamente distinguível pelo negativo, pela autoaniquilação que encontra no interior de si mesma a relação com Deus, que, perpassado pelo sofrimento, mergulha na relação com Deus, fundamenta-se nela, porque está no fundamento, assim que tudo que está no caminho seja removido, toda finitude, e, antes de tudo, o próprio indivíduo em sua finitude, em sua mania de querer ter razão frente a Deus. […]14.
2.2. A crítica de Bavinck ao representacionismo
O teólogo Herman Bavinck, em Filosofia da Revelação, atentou-se aos problemas de uma teoria fundamentada na representação, ao mesmo tempo que buscou não mais tomar como ponto de partida nela para uma perspectiva filosófica, e, sim, na autoconsciência15, segundo uma abordagem agostiniana. Diante dos dilemas do fim do século XIX e do início do século XX, isto é, a crise da tese positivista de que a ciência responderia a todos os problemas da vida, seja qualquer natureza destes mesmos, assistia-se no presente tempo um retorno ao misticismo na literatura e na arte, e a necessidade da filosofia, da metafísica e da religião, perante o impulso dos movimentos reformistas do modernismo causado pela insatisfação geral com a cultura da época. Bavinck esforçou-se em fornecer uma resposta a essas questões e diagnosticou as tendências do momento a partir de duas características: primeiro, o “princípio da autonomia, que se expressa, por um lado, no anarquismo do pensamento, e, por outro, no autosoterismo da vontade”16, o que leva ao tratamento da religião como um elemento de criação totalmente pessoal e individual, quer dizer, que cada pessoa possua sua própria religião; a segunda característica diz respeito à busca pela religião empreendida por todos esses movimentos, isto é, por um deus supremo, uma ideia de felicidade perene, pelo ser e pelo valor absoluto17, como se expressa na noção de sensus divinitatis.
Perante esses desafios e conforme uma análise da cosmovisão em três polos — Deus, o mundo e o homem — ele discerne três tipos de cosmovisões: a teísta, a naturalista e a humanista18. Ao investigar a história do pensamento ocidental, sob essa perspectiva das três dimensões da experiência humana, ele expressa uma concordância com a tese amplamente aceita e defendida na era moderna de que o conhecimento humano teria origem na própria consciência, sem a qual não há possibilidade da atividade intelectiva. René Descartes, conforme o cogito ergo sum, na busca por uma certeza indubitável para o conhecimento, o prova por intermédio da formulação da res cogitans, qual seja, da coisa pensante, em outras palavras, a concepção de que o pensamento é a instância superior do homem, prova de sua existência. Immanuel Kant, por sua vez, a partir da revolução copernicana na filosofia e diante do problema do ceticismo, limitava o conhecimento para os fenômenos, impossibilitando o acesso ao númeno e à coisa-em-si.
Embora Bavinck partisse de uma ideia de consciência, ele não o fazia conforme a estrutura conceitual dos filósofos modernos, apesar de compartilhar da tese do medium desta mesma. Segundo o teólogo neocalvinista, as teorias modernas, sem o recurso da revelação, irão, consequentemente, ser capturadas no cativeiro da representação, já que, se o conhecimento da realidade é mediado pelas representações, ou se subtrai a distinção entre ser e pensamento, desembocando no monismo idealista — posição contra qual ouviu-se o grande protesto dos pensadores do século XIX, já que se trata de Embora Bavinck partisse de uma ideia de consciência, ele não o fazia conforme a estrutura conceitual dos filósofos modernos, apesar de compartilhar da tese do medium desta mesma. Segundo o teólogo neocalvinista, as teorias modernas, sem o recurso da revelação, irão, consequentemente, ser capturadas no cativeiro da representação, já que, se o conhecimento da realidade é mediado pelas representações, ou se subtrai a distinção entre ser e pensamento, desembocando no monismo idealista — posição contra qual ouviu-se o grande protesto dos pensadores do século XIX, já que se trata de uma tese que anula as distinções mais fundamentais da realidade —, ou se recai na anulação solipsista do ser, isto é, da própria realidade.
[…] A mente, tendo se fechado no círculo das representações, se torna incapaz de se libertar da prisão construída por si mesma. Para qualquer lado que se dirija, a mente não percebe nada senão representações, produtos de sua própria consciência. Sua vontade; a resistência com a qual esta vontade se depara; e o ego — tudo isso são representações. Por todos os lados, a mente se vê envolta por representações, e em lugar algum há um acesso aberto à realidade, pois não se pode traçar nenhuma inferência que vá do pensamento ao ser; partindo das representações não há ponte para a realidade. Assim como Satanás não pode ser expulso por Satanás, não há um meio de escapar das representações por meio de representações […]19.
Essa forma de argumentação envolve o ego na submissão à estados de consciência fenomênicos, o que leva à redução dele a uma sucessão de sensações, uma sequência e agregado de partes sem a determinação de um eu por trás dos fenômenos da consciência humana20. Logo, Bavinck buscará escapar ao problema de uma filosofia que parte do ponto de vista da representação determinando as origens da autoconsciência, a qual, segundo ele, estaria não na filosofia moderna e nem em Sócrates, porém em Agostinho.
3. O eu e a autoconsciência em Bavinck
Em oposição a essa concepção de base kantiana, Bavinck compreende que o ego não é tal agregado de partes;
[…] Antes, é uma síntese, que precede, em cada homem, toda reflexão científica, um todo orgânico que possui membros. É complexo, mas não composto. Consequentemente, no que tange à auto consciência, devemos lidar não como um mero fenômeno, mas com um númeno, com uma realidade que nos é dada sem mediações, que antecede todo raciocínio e inferência. A autoconsciência é a unidade do ser real e do ser ideal nela, o eu é consciência, não conhecimento científico, mas experiência, convicção, consciência do eu como uma realidade. Na auto consciência, nosso próprio ser nos é revelado de forma direta, sem mediações, antes de qualquer reflexão e independente de qualquer volição. Não nos aproximamos de nosso eu através de qualquer raciocínio ou esforço de nossa parte; não demonstramos sua existência, e não compreendemos sua essência. Contudo, nosso ser se nos apresenta de forma gratuita na autoconsciência, e de nossa parte é recebido espontaneamente, com uma confiança inabalável, com uma garantia imediata […]21.
A autoconsciência dispõe-se como uma realidade precedente e dada, cuja certeza se encontra na revelação, não na demonstração filosófica por meio do cogitare cartesiano ou de qualquer outra inferência. Portanto, é na nela que o processo de conhecimento se dá, e seu fato não pode ser negado, tampouco ele pode depender da afirmação humana, muito menos pode-se sabotá-lo por meio da dúvida. Em seu interior, porém, demonstra-se algo diferente e maior que o eu do indivíduo: o eu é revelado não como unidade fria e simplificada, muito menos um ponto matemático, ainda menos uma substância imutável; antes, revela-se pleno de conteúdo, vida, poder e atividade; não se situa como uma mônada insensível sob os fenômenos físicos, mas é de natureza imanente aos processos psíquicos, na medida que se desenvolve neles, por meio e com eles. O eu pode fazer florescer sua salvação e, da mesma maneira, promover sua destruição e ruína; em um vir-a-ser, ele torna-se e se desenvolve. É esta forma de autoconsciência que Agostinho, segundo Bavinck, teria entendido, ao contrário de Sócrates e Descartes.
[…] Mas quando a religião cristã nos revelou a grandeza do coração de Deus, e no raiar do dia quando do alto ele nos visitou com sua entranhável misericórdia, lançou-se luz ao mesmo tempo sobre o homem e sobre as riquezas e valores de sua alma. Essa misericórdia transmitiu ao homem uma nova certeza, a certeza da fé, restaurando sua confiança em Deus e, com isso, a confiança em si mesmo. E, por meio dessa luz da revelação, Agostinho desceu profundamente em sua própria vida interior. Esquecendo a natureza, ele não desejou conhecer nada mais, a não ser Deus e a si mesmo. E lá, Agostinho certamente encontrou o pensamento, mas não somente o pensamento; por baixo deste, o bispo de Hipona penetrou na essência da alma, pois para ele a vida sempre precedeu o pensamento; a fé sempre precedeu o conhecimento; a autoconsciência, a reflexão; a experiência, a ciência — ele sempre experimentou as coisas a respeito das quais mais tarde pensou e escreveu. Assim Agostinho adentrou no pensamento em direção à essência da alma, nela encontrando não uma simples unidade, mas uma totalidade maravilhosamente rica; ali o grande teólogo encontrou as ideias, as normas, as leis do verdadeiro e do bom, a solução do problema da certeza do conhecimento, da causa de todas as coisas e do supremo bem; também encontrou as sementes e gérmens de todo conhecimento, ciência e arte. Descobriu até mesmo um reflexo do ser triúno de Deus na tríade composta de memoria [memória], intellectus [intelecto] e voluntas [vontade]. Agostinho foi o filósofo do autoexame, de descobriu na autoconsciência o ponto de partida de uma nova metafísica22.
Assim, a certeza da fé substitui aquela produzida, sob frágeis bases, pela razão, quando a substância e o fundamento da crença se situam na revelação; mesmo que a vontade de crer, definida por William James, seja indispensável para a fé, não pode determinar-se como um firmamento para esta. Além de o senso dependência absoluta postulada por Schleiermacher, corretamente, define a essência da autoconsciência humana, ao contrário da autonomia kantiana; ela possibilita a consciência de criaturidade no ser humano, na medida que este se torna mais consciente de si mesmo. Esse senso expressa a experiência de dependência do indivíduo de tudo ao seu redor, e, todavia, ainda mais a dependência de um poder absoluto23.
Ainda assim, deve-se salientar que a resposta de Bavinck para o problema da representação encontra-se na disposição da autoconsciência perante a revelação, acessada pela certeza da fé, o que lhe confere um sentido de autoconhecimento, conforme o esquema já delimitado por Agostinho em Confissões: o retorno para Deus que leva ao mergulho em si mesmo e, depois, novamente, para Deus.
4. Conclusão
O apontamento do pseudônimo Clímacus apresenta a oposição de Kierkegaard entre o cristianismo e o socratismo platônico; esta última posição identificar-se-á ao imanentismo da teoria da reminiscência e da preexistência da alma, o que concebe uma verdade já presente no indivíduo. Assim, necessita-se apenas de uma figura humana, Sócrates, para fazer com que ela emerja à superfície, sem a necessidade do encontro do indivíduo com Deus, posto perante ele como a revelação paradoxal. Logo, essa posição pagã associar-se-á não apenas à teologia pós-hegeliana e ao problema da cristandade dinamarquesa; a crítica de Bavinck ao ponto de partida da representação permite ampliar a relação de toda a filosofia moderna como expressão de um paganismo sob uma autoria grega.
Bavinck explora, profundamente, o problema da representação, na medida que, conforme uma epistemologia kantiana, perde-se o acesso à coisa-em-si, à própria realidade, e o ego volta-se para as próprias representações, em reflexos ininterruptos sem adentrar objetivamente o mundo. O paganismo platônico, conforme Kierkegaard, alcança dimensões inimagináveis no dilema apresentado pelo teólogo dinamarquês.
Ademais, a ideia de que cristianismo seja mera projeção, isto é, uma representação produzida pela vontade humana, impõe ao homem a religiosidade pagã, do tipo A, fá-lo recair no socrático, no meramente humano, assim como se apresenta na ideia neocalvinista de um sensus divinitatis. A revelação, logo, põe-se como a solução para uma nova forma de religiosidade: em Bavinck, a revelação especial no interior da autoconsciência humana; em Kierkegaard, a revelação na forma do paradoxo absoluto do Deus-homem na interioridade humana, pois, como insere o próprio Agostinho, “Nos livros platônicos ninguém ouve Aquele que exclama: “Vinde a Mim, vós, os que trabalhais”. Desdenham em aprender d’Ele, que é manso e humilde de coração. “Escondestes estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos humildes”24.
1Graduando em Filosofia (Licenciatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Jornalismo pela PUC Minas. Líder do Núcleo de Filosofia Cristã da ABC². E-mail: [email protected].
2VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica. 1 ed.. São Paulo: Edições Loyola, 2020, p. 45.
3KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental (Vol.I ): Filosofia Antiga. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011, p. 63.
4Essa desarticulação entre o interior e o exterior deve ser entendida em relação ao debate de Kierkegaard com a filosofia de Hegel e dos pós-hegelianos. Hegel buscou, a partir de seu idealismo absoluto, a identificação entre ser e pensar segundo a identidade entre realidade e razão: “O que é racional é real e o que é real é racional” (Hegel, 2011, XXXVI). Assim, na crítica à cristandade dinamarquesa e à recepção dos pensadores pós-hegelianos da filosofia do pensador germânico — isto é, a oposição à ideia de que, pela objetividade e exterioridade, nascer em um estado cristão tornaria o próprio indivíduo cristão —, Kierkegaard estabeleceu, aos moldes socráticos, buscou estabelecer uma desarticulação entre interioridade e exterioridade no plano da existência conforme a sua identificação com a ironia. Como expressa em sua tese XV do O Conceito de Ironia, “Como toda filosofia inicia pela dúvida, assim também inicia pela ironia toda vida que se chamará digna do homem”. Bavinck, posteriormente, empreenderá uma crítica semelhante a Hegel a partir de um juízo do monismo como um disfarce sob o qual oculta distinções fundamentais entre Deus e o mundo, a mente e a matéria, o pensamento e a extensão, o ser e o vir-a-ser (Bavinck, 2019, p. 91). Assim, no idealismo, com a identidade entre pensamento e ser, essas distinções foram suprimidas de tal forma que levaram a uma revolta da personalidade humana, cuja existência não se encaixa nos moldes absolutos do idealismo, contra tal espécie de monismo. Bavinck situa o próprio Kierkegaard como um desses personagens (Bavinck, 2019, p. 95).
5KIERKEGAARD, 2018, p. 28-29.
6Cf. Platão in: Ibid., p. 42-140.
7VALLS, 2013, p. 7.
8KIERKEGAARD, 2011, p. 54.
9VALLS op.cit., p. 73.
10Id., p. 73.
11Id., p. 73-74.
12KIERKEGAARD, 2016, p. 272.
13Cf. Entreato A e B in Id., p. 269-275.
14KIERKEGAARD, 2016, p.v274.
15BAVINCK, 2019, p. 106.
16Id., p. 83.
17Id., p. 81-84.
18Id., p. 85.
19Id., p. 109.
20Id., p. 110-111.
21Id., p. 111.
22Id., p. 112-113.
23Id., p. 114-115.
24Agostinho, Confissões. VII, 27.
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Referências bibliográficas
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões; De magistro = Do mestre / Santo Agostinho. 2.ed. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 414 p (Os pensadores)
BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução e notas Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental (Vol.I): Filosofia Antiga. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011.
KIERKEGAARD, S. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Apresentação e tradução, Álvaro Luiz Montenegro Valls. 3 ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.
________________. Pós-escrito às Migalhas Filosóficas, vol. II. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls e Marília Murta de Almeida. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016.
VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo: ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: Editora EDIPURS, 2000.
VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica. 1 ed.. São Paulo: Edições Loyola, 2020.