Artigo escrito por Iara Carvalho das Neves, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
“Quem, pois, conheceu a mente do Senhor?”1
A trajetória de Davi, desde que foi ungido pelo profeta Samuel, na casa de seu pai Jessé, até sua assunção ao trono, foi tudo menos tranquila2. Saul, então rei em Israel, e três de seus filhos morreram durante uma peleja contra os filisteus. Davi foi aclamado rei em Judá e Abner, que era capitão do exército de Saul, tomou a Isbosete, filho de Saul, e o tornou rei sobre todo Israel. Houve grande e duradoura guerra entre a casa de Davi e a casa de Saul. Tendo Abner morrido, Isbosete, cuja certeza repousava apenas nas capacidades do capitão do exército, viu sua força desvanecer. A história conta que “as mãos se lhe afrouxaram”3.
No mundo antigo era comum que os reis exterminassem todos os membros da família da dinastia anterior, uma vez que eram considerados possíveis rivais. Apesar disso, não foi pela palavra de ordem de Davi que Isbosete foi morto, mas, sim, pelas mãos de dois homens que costumeiramente pegavam trigo em seu celeiro a fim de alimentar seus soldados. No afã de agradar a Davi, esses homens levaram prova de seus feitos, porém foram por ele repreendidos e punidos. Não havendo sobrado nenhum descendente direto de Saul que assumisse o trono de Israel, todas as tribos de lá foram ter com Davi e disseram: somos do mesmo povo que tu és. E assim Davi foi ungido rei de todo o Israel.
Mefibosete
Jônatas, filho de Saul, amava Davi com todo o amor de sua alma4. E esse amor não se tratava do amor Eros5, como alguns assim dizem. Tratava-se do amor Philos6. A relação ebtre Jônatas e Davi é uma das maiores expressões de amizade narrada pela Bíblia. I Samuel 20 conta a respeito desse relacionamento e da aliança que um tinham com o outro. Jônatas sabia que seu pai queria a morte de Davi. Apesar disso, empenhou sua palavra em ser fiel a Davi e protegê-lo da ira de seu pai, o rei. Todavia, esse pacto não foi unilateral: “Se eu, então, ainda viver, porventura, não usarás para comigo da bondade do Senhor para que não morra? Nem tampouco cortarás jamais da minha casa a tua bondade; nem ainda quando o Senhor desarraigar da terra todos os inimigos de Davi”.
Jônatas pediu que Davi fosse misericordioso com ele e com sua descendência, usando de seu favor e bondade, honrando o amor e a fidelidade dispensados pelo filho de Saul. E assim Davi o fez. Jônatas morrera na batalha contra os filisteus, ocasião também da morte de Saul. Havia um menino de 5 anos de idade, filho de Jônatas. Mefibosete era seu nome. Quando sua ama soube da morte de Isbosete, ela o tomou e fugiu, ocasião na qual o menino caiu e ficou aleijado das duas pernas. Esse evento tornou a casa de Saul definitivamente inapta ao trono, uma vez que a deficiência física do menino o incapacitava aos deveres de um soberano.
Davi não sabia da existência de Mefibosete. 2 Samuel, capítulo 9, tem início com Davi perguntando se resta alguém da casa de Saul, para que use de bondade para com ele, por amor de Jônatas. Então Ziba, servo na casa de Saul, foi chamado e fez saber a Davi que ainda havia um filho de Jônatas, aleijado de ambos os pés. O rei, honrando a palavra dada a seu amigo Jônatas, fez vir Mefibosete de Lo-Debar, onde este vivia provavelmente em anonimato, temendo pela sua vida. Ao encontrá-lo, Davi prostrou-se com o rosto em terra e disse: “Não temas, porque usarei de bondade para contigo, por amor de Jônatas, teu pai, (…)”7.
E assim, honrando o pacto que fizera com Jônatas, Davi deu a Mefibosete o privilégio de comer do pão sempre à sua mesa, como se fosse um de seus filhos. O texto de 2 Samuel faz questão de ressaltar a incapacidade física de Mefibosete, o que não o impediu de conhecer o rei e receber seu favor, assentando-se à mesa com ele.
Incapacidades e Incapacitismo
Existe uma quantidade razoável de relatos bíblicos de enfermidades que afetam o fenótipo8, mas pouco a respeito das que afetam a mente de forma parcial ou completa. Naamã, comandante do exército do rei da Síria, era leproso. Tinha em sua pele as marcas de sua doença. Há exemplos de cegos de nascença, coxos, surdos-mudos. Há também algumas passagens que denotam a existência de transtornos psíquicos, que tiveram como gatilhos situações estressantes, evocando sentimentos de angústia profunda. Davi, no Salmo 6, versos 6 e 7, diz que está cansado de tanto gemer, e que todas as noites alaga seu leito de lágrimas; seus olhos se acham amortecidos e envelhecem por causa de seus inimigos9. Não obstante ser poderoso nas batalhas, o homem segundo o coração de Deus sentiu no mais íntimo de sua alma os sintomas de uma depressão reativa. Elias, diante de toda situação envolvendo Acabe e Jezabel, sentou-se debaixo de um zimbro e pediu para si a morte. São circunstâncias nas quais não há um comprometimento mental definitivo, mas há uma alteração na química cerebral, que afeta a capacidade de tomada de decisão e a percepção da realidade.
Há que se escusar a ausência de relatos de pessoas com doenças neurodegenerativas, paralisias cerebrais em seus variados níveis, microcefalias, autismos etc. São quadros neurológicos e comportamentais recém-descobertos, e descritos na literatura médica há pouquíssimos anos. Isso não significa que na época em que as histórias descritas na Bíblia se passaram, essas condições eram inexistentes. Fato é que, normalmente, tratamos apenas de assuntos que temos algum conhecimento e dos quais sabemos de sua existência. Talvez tenha sido isso o que aconteceu com Herman Bavinck10, quando se manifestou brilhantemente como uma resposta aos raciocínios modernos ainda ressacados do movimento Iluminista. Bavinck, em sua obra A filosofia da revelação, fruto de suas Palestras Stone proferidas no Seminário Teológico de Princeton, em 1908, abriu caminho para questões importantes relacionadas à busca por conhecimento:
Deus, o mundo e o homem são três realidades com as quais toda ciência e filosofia se ocupam. A concepção que formamos deles, a relação na qual estabelecemos cada um deles com o outro, determinam o caráter de nossa visão do mundo e da vida, o conteúdo de nossa religião, ciência e moralidade.11
Diferentemente da Weltanschauung kantiana, onde o foco era inteiramente na mente humana, ou do evolucionismo Ddarwiniano, no qual o conhecimento se dava de maneira natural, respeitando os mecanismos da evolução, Bavinck estabelece contrapontos a essas visões de mundo, explicando teisticamente os elementos e propósitos da vida. A consciência é a porta de entrada para o conhecimento de Deus. O próprio Bavinck reconhece que o assunto da consciência é de difícil abordagem. A palavra consciência, proveniente do latim conscientia, significa conhecimento próprio, senso moral, noção do que é direito. Para os gregos, a consciência existia na mesma medida em que o povo atendia aos limites estabelecidos pelos deuses. Já em Roma, a consciência era determinada pelo senso de dignidade, virtude e honra.
Na Bíblia não há uma palavra específica que determine o que é consciência. Apesar disso, o assunto já estava presente. Gênesis 3 conta que antes da Queda, o ser humano não tinha consciência, pelo menos não no stricto senso da palavra. A possibilidade de haver consciência coincide com a possibilidade do pecado. Ao pecar, os olhos de Adão se abriram. Ele teve vergonha e procurou se esconder de Deus, consciente de sua falha. Para os Israelitas, de acordo com a sabedoria Hebraica, o coração era o centro da volição humana, a essência da personalidade, a base da vida espiritual. Paulo, na Epístola aos Romanos, capítulo 1, verso 21, diz que a falta de conhecimento de Deus obscurece o coração. O Salmista ao tratar a respeito da excelência da lei divina diz: “Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti”12.
Bavinck afirma que “o âmago de nossa consciência não é a autonomia – como Schleiermacher percebeu muito mais claramente que Kant –, mas sim um senso de dependência, no ato de tornarmo-nos conscientes de nós mesmos, nos tornamos conscientes de que somos criaturas.” (BAVINCK, 2019, n.p.) Assim, o autoconhecimentoauto-conhecimento solitário, solipsista é uma teoria improvável. O conhecimento de si mesmo depende do conhecimento que se tem de Deus, e é mediado por Ele. Está estabelecida então a diferença entre a Filosofia da Revelação e o Zeitgeist13 anticristão. Todo aquele que não crê, não há de permanecer. Há algum modo de avaliar a crença em Deus e o conhecimento que se tem dele?
A resposta é: não há. Por mais que estudos e pesquisas na área da neurociência tenham crescido nos últimos anos, e por maiores que sejam os interesses nessa área, não há como quantificar ou qualificar assunto de tamanha subjetividade. Testes feitos com aparelhos que detectam alterações na química cerebral, e que servem para mapear os pensamentos de seres humanos só alcançam respostas caso seja feita uma pergunta que dê à pessoa uma opção. Por exemplo, para qual time você torce? Esse ou aquele? Ou, qual sua cor preferida? Amarelo ou azul? Se não houver uma indução à determinada resposta, pode até haver o pensamento do que se vai responder. Mas não há como rastreá-lo.
De que maneira aquele que diz saber de algo pode dar provas de que sabe? Ou o que diz conhecer pode dar provas de que conhece? Não há como provar nossa crença em Deus, até mesmo porque ele não precisa que creiamos nele para que exista. Ele tão somente é! E por ser, independente de nossa fé, não nos deixou sem testemunho de si mesmo. Tudo quanto existe e que veio a ser, por intermédio dele, fala ao homem. Nesse ponto somos indesculpáveis.
Mas será que somos de fato todos indesculpáveis? E se houver uma parcela desculpável, essa então não conhece a Deus? Se um ser humano cresce num ambiente adequado, com suas faculdades funcionando adequadamente, ele vai naturalmente chegar ao conhecimento de Deus. Mas todos crescemos em ambientes adequados, com nossa mente trabalhando ordenadamente? Obviamente que não. Uma pessoa que nasce, cresce até determinada idade de sua infância e de repente se vê acometida por uma doença neurodegenerativa, dificilmente pode se dizer que alcançou algum conhecimento de si mesma. Ou pode? E se não alcançou esse autoconhecimento e autoconsciência, não conheceu a Deus? Não se trata de alcançar a Graça Divina.
Não é esse o cerne da questão. O mote é: nem todas as pessoas terão condições de formular crenças básicas, ou tomar consciência da revelação do mundo ao seu redor. Mas esse não é um argumento sólido o bastante para dizer que alguém não conheceu a Deus. O raciocínio humano segue essa lógica em virtude de suas limitações, principalmente temporais. Jonathan Edwards, em seu ensaio sobre a mente (1723) diz: “(…) todas as ideias que, em qualquer mente criada, já existiram ou chegarão a existir por toda a eternidade correspondem à existência de certo átomo no início da criação, à existência de forma e tamanho determinados e receberam esse movimento específico”14.
As ideias, então, são assim, como se já tivessem existido o tempo todo, mesmo em alguma mente finita. E as mudanças, respostas e argumentos surgem conforme Deus concebe suas existências. Tudo é ordenado pela mente divina. Bavinck respondeu ao espírito do seu tempo com maestria. Talvez hoje seja a época de incluir os que não tem cognoscência suficiente para conhecerem a Deus.
Um lugar à mesa
Mefibosete, aleijado, inapto ao trono, foi alvo da misericórdia e da bondade do rei. Davi prefigura Cristo, que nos chama a estar com ele à mesa unicamente por sua graça. A presença divina à mesa vai além do que fazemos ou dizemos, não importando o que somos, se cognitivamente aptos ou não. Nem sempre somos nós que nos dirigimos à mesa. Há circunstâncias nas quais o rei mandará nos buscar para estarmos com ele, em cumprimento ao berith outrora estabelecido.
A mesa carrega uma simbologia de cura, nutrição e presença redentora. A festa da Páscoa é um lembrete anual do livramento dado por Deus ao povo que vivia como escravo no Egito. A refeição pascoal, chamada de Seder, é uma das ordenanças mais importantes da Páscoa. É o momento no qual a geração mais velha conta à mais nova a história do Êxodo e explica os símbolos da refeição pascoal. Grandes momentos na história de Jesus aconteceram à mesa. E ele estava com todos: pecadores, excluídos, doentes. Não há registros de recusas para o partir do pão. Cercado de gente, comendo e bebendo, encorajava aqueles com quem se assentava e dava testemunho acerca de verdade, ensino, gratidão, serviço e perdão. Assim foi também na última ceia, mesmo sabendo que dentre aqueles estava quem o trairia e até quem o negaria.
No caminho de Emaús, após sua ressurreição, Jesus encontra Cleopas e vai ter com ele e seus amigos em sua casa para participar de uma refeição. À mesa, se deram conta de que o Messias era quem estava com eles: ““E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram”15. Felizes os convidados para o banquete do casamento do Cordeiro. Jesus espera pelos seus. Nem sempre se tem o conhecimento adequado a respeito de Deus. Algumas vezes apenas se pensa ter esse conhecimento dele e de nós mesmos. Apesar da fugacidade da consciência humana, a mesa está posta e o noivo nos aguarda a fim de finalmente revelar-se aos seus.
1 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. p.1807.
2 A história de Davi pode ser lida na Bíblia Sagrada, nos livros de I e II Samuel.
3 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. op. cit., p.521.
4 Ibid., p. 497.
5 O amor Eros é o que expressa a ideia de amor entre homem e mulher, um amor mergulhado em paixão e romantismo, transmitindo também o sentido de desejo passional, sensual e sexual.
6 Philos, é o termo grego para Ágape, que significa um sentimento forte e profundo do coração, parceria, companheirismo, amizade, sendo muito empregado para designar o relacionamento de afeição entre entes queridos.
7 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO op. cit., p. 528 e 529.
8 Fenótipo são as características observáveis de um indivíduo e que são determinadas por seus genes. Exemplo disso é o albinismo, que é uma doença genética hereditária na qual as células do corpo não são capazes de produzir melanina, um pigmento que, quando está em falta, resulta em falta de cor na pele, olhos, pelos e cabelos.
9 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. op. cit., p. 870.
10 Herman Bavinck (1854-1921) foi um importante teólogo reformado e com relevante atuação na esfera pública, tanto acadêmica quanto política.
11 BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2019. p. 11.
12 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. op. cit., p. 971.
13 Zeitgeist é um termo alemão que significa espírito de época.
14 EDWARDS, Jonathan. Jonathan Edwards, uma antologia: escritos públicos e pessoais. Editado por John E. Smith, Harry S. Stout, Kenneth P. Minkema. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo, SP. Vida Nova, 2022. p. 75.
15 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO op. cit., p. 1665.
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Referências bibliográficas
A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2019.
EDWARDS, Jonathan. Jonathan Edwards, uma antologia: escritos públicos e pessoais. Editado por John E. Smith, Harry S. Stout, Kenneth P. Minkema. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo, SP. Vida Nova, 2022.
TITUS, Devi. A experiência da mesa: o segredo para criar relacionamentos profundos. Tradução Cecília Eller. São Paulo, SP. Mundo Cristão, 2013.