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A redescoberda de Deus como centro ordenador da relação Homem-Natureza

Ensaio escrito por Isabella Feitoza, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

Em 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) declarou que as falhas globais no tratamento do aquecimento global são uma grande falha moral (BRENNAN et al., 2022). Tal quadro revela um complexo amontoado de dilemas socioculturais, questões econômicas e políticas, bem como os limites da nossa civilização (SCHULTZ, 2020). Deste modo, a partir dos anos 60, a filosofia passou a explorar a moralidade que envolve a relação humana com a natureza, destacando a importância de repensar o antropocentrismo moderno (TARGA, 2021; BRENNAN et al., 2022). No entanto, esses esforços resultaram em dilemas éticos sobre como atribuir valor a elementos naturais que não são dotados de capacidades racionais (TARGA, 2023).

Assim, o presente ensaio busca refletir sobre como a sabedoria judaico-cristã pode contribuir para se repensar uma ordem adequada para a relação homem-natureza, sem que essas categorias sejam perdidas em si mesmas. Por fim, o trabalho visa contribuir para o desenvolvimento das discussões sobre o tema a partir de uma perspectiva cristã da realidade, apresentando uma recapitulação dos principais dilemas apresentados pelos filósofos ambientais e as possíveis contribuições da sabedoria bíblica a estes conflitos.

Perspectivas inconciliáveis sobre o centro da vida

A partir do século XVIII, os desenvolvimentos técnicos industriais alteraram profundamente a relação entre os seres humanos e o ambiente natural, impulsionando uma escalada na produção econômica de capital e conferindo um novo poder a poucos indivíduos, responsáveis por uma parcela significativa das emissões de dióxido de carbono na atmosfera (WIRZBA, 2023). Essas mudanças levaram à denominação do termo “Antropoceno” pelo químico atmosférico Paul Crutzen para descrever um período na história da Terra em que a presença humana é a principal fonte de transformações ecológicas globais1. No entanto, as consequências desse fenômeno vão além das perdas na camada de ozônio, manifestando-se em diversas devastações ambientais nos ecossistemas marinhos; extinção de espécies animais e vegetais; desertificação de florestas e contaminação da água e dos alimentos.

Com isso, os primeiros filósofos ambientais, como Arne Naess e Aldo Leopoldo, argumentaram que a concepção instrumentalizada da natureza, aliada à ideia de que o homem é a principal fonte de sentido para o mundo, são a força motriz dessa desordem (apud LANASPEZE, [s.n.]; TARGA, 2021; BRENNAN et al, 2022). Para confrontar tal dinâmica, Naess propôs a ideia de “ecologia profunda”, a qual foi inspirada na metafísica de Spinoza e defendia que o “eu” pessoal deveria ser repensado com base em um “Eu” maior global (apud BRENNAN et al, 2022; LANASPEZE, [s.n.]). Já Leopoldo, em conjunto com Richard Routley e J. Baird Callicott, lançou as primeiras noções de “ética da terra”, que criticava, dentre outras coisas, o “chauvinismo humano” que discrimina os seres que foram ordenados a não compor a mesma posição privilegiada do homem (apud BRENNAN et al, 2022).

Nesse sentido, tanto a ecologia profunda quanto a ética da terra desenvolveram interpretações que propõem uma visão mais holística da vida, reconhecendo o valor intrínseco dos não-humanos como chave para promover mudanças significativas na configuração civilizacional atual (TARGA, 2021; TARGA, 2023). No entanto, essas ideias marcam o surgimento do ecocentrismo filosófico, o qual encontrou barreiras, especialmente, no que tange à discussão conceitual do caráter ontológico da ética (TARGA, 2023). Além disso, questões humanitárias surgiram ao se refletir nas implicações sociais e econômicas dessas teorias, que continham propostas de contenção demográfica e levantaram preocupações sobre a possibilidade do surgimento de um autoritarismo “verde” (LANASPEZE, [s.n.]; BRENNAN et al, 2022).

Diante desses impasses, outros filósofos ambientais passaram a defender uma posição “mitigada” do antropocentrismo, enfatizando uma abordagem mais pragmática e viável no mundo real (TARGA, 2023; BRENNAN et al, 2022). Para esses pensadores, os deveres morais em relação ao meio ambiente estão interligados aos nossos direitos e deveres para com todos os seres humanos (TARGA, 2023; BRENNAN et al, 2022). Entretanto, amenizar o antropocentrismo ou suprimir as individualidades humanas não resolve as estruturas fundamentais da crise ecológica, indicando a necessidade de se repensar novas perspectivas que deem conta de trazer equilíbrio para a relação homem-natureza.

Um centro moral para a crise ambiental: a soberania de YHWH na ordem da vida

A crítica ao antropocentrismo moderno trazida pelos filósofos ambientais é válida e evidente. Entretanto, como poderíamos chegar a um resultado diferente quando os antigos fundamentos sobre os quais a modernidade se sustenta já continham a noção de que o homem é a medida de todas as coisas, como anunciado por Protágoras ainda no período helenístico?

De acordo com Líndez (1995), a forma pela qual as primeiras civilizações ordenavam a sua cultura era essencialmente religiosa. Nelas, o homem localizava a si mesmo e o seu ambiente a partir da transcendência divina. Porém, essa dinâmica continha o próprio ser humano na sua origem e finalidade. Assim, ainda que exista um reconhecimento da sacralidade, essa gira em torno da experiência humana, que é a procedência do conhecimento antigo (LÍNDEZ, 1995, n.p.). Sob esse aspecto, o teólogo Guilherme de Carvalho (2019) argumenta que as sociedades antigas manifestavam seu orgulho através da religião, pois, ao perceberem o divino na natureza e nas qualidades humanas, elas eram paradoxalmente levadas a uma submissão à natureza baseada em suas próprias interpretações da realidade (CARVALHO, 2019). Essa veneração sacra dissimulava um antropocentrismo sutil, refletindo o desejo humano de autossuficiência e revelando uma complexa interação entre a religiosidade, a percepção da natureza, bem como a posição humana nesse quadro.

A inovação trazida pela cultura judaica sobre aquele tempo reside na concepção religiosa de um Deus único, que transcende a natureza e não tem o ser humano como seu início ou fim, conforme expresso em Êxodo 3:14, onde Deus se revela como “Eu Sou o que Sou”. Assim, YHWH é diferente de todos os outros deuses, pois é dotado de uma soberania absoluta que o torna Senhor de todas as coisas sem que a sua personalidade seja impessoal (LÍNDEZ, 1995). Por isso, ainda que as outras culturas também possuíssem a noção de que existe um princípio ordenador da realidade, em Israel há uma reconfiguração de categorias em torno da presença de um Deus único que se torna o centro imanente de todo o cosmos (LÍNDEZ, 1995). Deste modo, as pessoas tidas como sábias em Israel eram aquelas que conseguiam estabelecer um equilíbrio harmonioso entre a compreensão de quem é Deus, a percepção de sua própria identidade e o reconhecimento de seu lugar na criação. Isto significa que, na tradição judaico-cristã, “o homem deve ordenar moralmente sua vida segundo o modelo estabelecido por Deus” (LÍNDEZ, 1995, p. 63).

Portanto, esse monoteísmo que nasce com os judeus na antiguidade tem como seu fundamento uma revelação divina que desafia o politeísmo do mundo antigo por não se enquadrar nas concepções pré-existentes das divindades (MIGUEL, 2021). Nele, o próprio Deus é quem inicia o movimento de encontro ao homem, tornando-se conhecido através de ações progressivas direcionadas ao povo que Ele mesmo escolheu segundo a sua vontade. Com isso, Igor Miguel esclarece: 

A soberania transterritorial de Deus (Êxodo 19:5) subverte toda devoção a qualquer criatura (Deuteronômio 4:15-19), o que significa que, agora, Israel tem condições de se relacionar com as coisas criadas sem ser absorvida por elas. Os bens criados são recebidos como dádivas, e não como divindades. Eles são relativizados ou, para ser mais preciso, normatizados (MIGUEL, 2021, p. 84).

A centralidade de Deus no cosmos parece, então, organizar as posições embaralhadas entre a natureza e a humanidade. Conforme a cultura judaica, o homem nasce da combinação entre a terra, que é um organismo vivo composto por milhões de bactérias e nutrientes, junto ao sopro da divindade, que lhe atribui faculdades racionais que o permitem criar categorias como nomes, valores e juízos (WIRZBA, 2023). Assim, o ser humano é livre para ser um sujeito dotado de diversas singularidades, ao mesmo tempo que o seu corpo está integrado à comunidade biológica de todo o planeta por este ser feito da própria terra.

Ao retomarmos os esforços dos primeiros filósofos ambientais para criticar o antropocentrismo moderno e defender a existência de uma moral que inclua os seres que não são dotados de razão, mas são dotados de vida, percebemos uma volta às ideias espirituais sobre a sacralidade do planeta. No entanto, esse resgate religioso das tradições humanas que abraçavam o mundo como se este fosse a própria divindade recai sobre um panteísmo que nega a individualidade do homem em prol de um todo repensado pelo próprio homem.

O problema destes apelos para o cuidado ambiental, então, reside na incoerência fundamental de homens reduzindo homens para reverenciar de forma dissimulada aquilo que querem, na verdade, proteger. Ainda no século XX, Francis Schaeffer (2003) já alertava para os riscos dessa abordagem. Por isso, o autor criticava a forma pragmática e impessoal com que alguns autores tratam a questão ambiental, além de apontar os perigos de defender o panteísmo religioso como solução para o problema. Esses riscos panteístas surgem quando sentimentos e habilidades humanas são introjetados na natureza, resultando na desconfiguração tanto do ser humano quanto da natureza (SCHAEFFER, 2003). Assim, ao tentar atribuir um significado a uma unidade ecológica divina, os significados individuais das criaturas que compõem a vida são perdidos (SCHAEFFER, 2003).

Nesse sentido, a harmonia trazida pela tradição judaico-cristã possibilita entender os seres tanto naquilo que os une quanto naquilo que os tornam diversificados, sem sequestrá-los de suas funções. Ter um Deus como o princípio fundante sobre o qual toda a vida flui e se sustenta, sem que este seja uma divindade impessoal, mas, sim, um ser presente na própria revelação da sua criação, possibilita estipular uma ordem bem proporcionada. Com isso, a presença desse Deus pode ser adorada nas inúmeras pluralidades de espécies, lugares e fenômenos sem que estes se tornem a própria divindade. Sobre esse maravilhamento ordenado, Carvalho (2019) indica que a admiração pela criação é o fundamento da gratidão que resulta no louvor pela dádiva. Já Wirzba (2023) declara que entender o mundo como uma criação divina de um ser absoluto cria uma âncora moral e espiritual que conduz o homem a uma razão comunitária responsável.

Conclusão

O que há no centro de tudo? Desta pergunta resulta os principais embates que têm moldado as discussões no campo da filosofia ambiental desde a década de sessenta. No entanto, ter Deus como princípio ordenador da relação entre o homem e o ambiente é tanto um confronto para a desconfiguração do ecocentrismo quanto uma resposta à impessoalidade do antropocentrismo. Mas para entender esse equilíbrio é necessário, primeiro, desenvolver a verdadeira sabedoria de Israel, aquela que equilibra os problemas mais divergentes sobre a completude de YHWH.

Em suma, o que esse ensaio buscou apresentar foi uma breve reflexão sobre como a tradição judaica, baseada na revelação de um Deus pessoal, eterno, incriado e absoluto, pode ser uma saída equilibrada para lidar com a relação entre o homem e a natureza apresentada pela filosofia ambiental. Com isso, conclui-se que a universalidade da revelação do Senhor sobre toda a sua criação permite que se mantenha a noção de que cada ser vivo, ou lugar, contém sua função no maravilhamento, sem que as próprias criaturas sejam divinizadas e interpretadas como centro ontológico, seja homem ou natureza.


1 Segundo Wirzba (2023), Paul Crutzen definiu o Antropoceno como uma nova era geológica sucessora do período Holoceno. Ainda de acordo com o autor, há uma discussão quanto à data e o nome que definem esse novo capítulo da nossa história. Alguns cientistas, por exemplo, preferem o termo “Capitaloceno” por acreditarem que este revela melhor o fator econômico por trás dessas mudanças em larga escala.


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Referências

BRENNAN, Andrew et al. Environmental Ethics. [S. l.]: The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/sum2022/entries/ethics-environmental/. Acesso em: 27 fev. 2024.

LANASPEZE, Baptiste. L’écologie profonde (deep ecology) est-elle un humanisme ?. [S. l.], [s.a.]. 10 p. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.la-bibliotheque-resistante.org/mes_textes/ecologie_profonde.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.

LINDEZ, José Vilchez. Sabedoria e sábios em Israel. Trad. José Benedito Alves. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 272 p.

MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2021. 208 p.

SCHAEFFER, Francis. Poluição e a morte do homem. Tradução. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. 96 p.

SCHULTZ, Lucy. Climate Change and the Historicity of Nature in Hegel, Nishida, and Watsuji. Environmental Philosophy, Chattanooga, p. pp. 271–290, 30 nov. 2020. DOI doi: 10.5840/envirophil2021127101. Disponível em: https://www.academia.edu/46819190/Climate_Change_and_the_Historicity_of_Nature_in_Hegel_Nishida_and_Watsuji. Acesso em: 27 fev. 2024.

ROMANOS 2: a realidade do julgamento de Deus. Locução de Guilherme de Carvalho. Igreja Esperança, 28 ago. 2019. Podcast. Disponível em: Igreja Esperança | Podcast on Spotify. Data de acesso: 29 de fev. 2024.

TARGA, Dante Carvalho. Sobre a clivagem antropocêntrico/ecocêntrico na filosofia ambiental. Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v. 23, n. 2, p. p.210-226, 1 jun. 2023. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/9001315.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.

TARGA, Dante Carvalho. Para uma genealogia da Filosofia Ambiental. Revista Peri, Florianópolis – SC, p. 73-91, 13 fev. 2021. Disponível em: https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/peri/article/view/4964. Acesso em: 27 fev. 2024.

WIRZBA, Norman. Nossa Vida Sagrada: Como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental. Trad. Danny Medeiros Charão. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2023. 471 p.