Escrito por Carolina Freitas Costa, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Os inúmeros avanços tecnológicos, especialmente no ramo da Inteligência Artificial, têm surpreendido a muitos. Até mesmo especialistas e desenvolvedores da área pedem uma pausa nas pesquisas1, alertando para riscos à humanidade. Como avaliar se a tecnologia é boa ou má para a sociedade? Tal intento requer uma reflexão filosófica (SCHUURMAN, 2016, p. 157). Segue-se, então, outra questão: as pessoas que trabalham com tecnologia, como desenvolvedores e engenheiros, devem se envolver neste esforço de compreender as profundidades do trabalho que realizam e dos artefatos que produzem? Para Marteen Verkerk e demais autores de Filosofia da tecnologia, a resposta é afirmativa:
Para os engenheiros que se esforçam conscientemente para contribuir com uma sociedade saudável, uma reflexão filosófica sobre a tecnologia é particularmente útil, pois ela pode ajudá-los a definir seu próprio pensamento e conduta técnica. Assim, os engenheiros também devem ser incluídos entre os “praticantes reflexivos”, como Donald Schön (1983) os denomina (VERKERK et al., 2018, p. 28).
Em sequência, os autores apresentam as três funções da filosofia: analítica, responsável pelo desenvolvimento de quadros de referência conceituais; crítica, responsável pelo desenvolvimento de juízos de valor a respeito de um tema, embasado na função analítica; e por fim, a função de apontar direcionamentos a respeito do tema (VERKERK et al., 2018, p. 28–30).
Para o exercício da reflexão filosófica, cabe ainda ressaltar que o ser humano é um ser direcionado a respostas (VERKERK et al., 2018, p. 58). Nesse sentido, os autores compreendem que a tecnologia é uma busca por significado (VERKERK et al., 2018, p. 46), pelo controle de coincidências e de ameaças à vida, proporcionando uma possibilidade de planejamento. Quando isso ocorre, é dito que a tecnologia promoveu abertura de significado (VERKERK et al., 2018, p. 47). Tal linguagem se baseia no pressuposto da Criação, tornando a realidade passível de ser lida, com cada coisa tendo certa destinação (VERKERK et al., 2018, p. 48). Contudo, a atividade humana pode fechar possibilidades de significado (p. 59) quando ela promove reducionismos, distorcendo a realidade.
Por conta da sociedade ter se tornado complexa, a tecnologia possui algumas complexidades próprias, as quais podem ser classificadas em três tipos: primeiro, a do processo de elaboração do projeto, que envolve pensar, por exemplo, no preço do produto, em seus impactos ambientais e no aspecto estético (VERKERK et al., 2018, p. 68). Segundo, a da relação com a sociedade, que implica numa avaliação quanto ao modo como produtos e tecnologias estão incorporados à sociedade, fazendo-se necessário atender aos requisitos do cliente, do usuário e de governos (p. 69). Terceiro, a da conexão entre as várias tecnologias, tornando o projeto em si mais complexo, já que até mesmo indústrias mais antigas, como a têxtil, são administradas por meio de sofisticados sistemas eletrônicos (VERKERK et al., 2018, p. 69).
Com a intenção de propor uma maneira de analisar a tecnologia, os autores, seguidores da filosofia da ideia cosmonômica criada por Herman Dooyeweerd (1894–1977) e Dirk Vollenhoven (1892–1978), apresentam os quinze aspectos modais (cf. tabela 1) e como eles auxiliam na análise dos artefatos tecnológicos e, consequentemente, na elaboração de uma crítica e de um direcionamento. Os aspectos são classificados em anteriores (os quatro primeiros) e posteriores (os últimos onze), e não constituem uma hierarquia (VERKERK et al., 2018, p. 93). Os aspectos anteriores antecipam os posteriores, enquanto há uma retrocipação dos aspectos posteriores aos anteriores (p. 105–106).
Para exemplificar, os autores tomam como objeto de análise um robô industrial. O número de braços do robô, bem como o número de eixos são parte do aspecto aritmético. Suas dimensões espaciais são dadas por valores numéricos, de modo que o aspecto espacial retrocipa ao aspecto aritmético. Os movimentos executados pelo robô são parte do seu aspecto cinético; se este movimento é retilíneo ou circular, então há uma retrocipação do aspecto cinético ao aspecto espacial (forma geométrica); se o movimento é uniforme ou acelerado, há relações proporcionais da velocidade com o tempo (aspecto aritmético). O mesmo pode ser dito do aspecto físico, que lida com a energia cinética, relativa ao movimento, a energia potencial, que é proporcional ao peso carregado e à altura em relação ao solo, e a energia elétrica, da sua alimentação. Em todos os casos é possível perceber retrocipação aos aspetos aritmético, espacial e cinemático (VERKERK et al., 2018, p. 105).
Quando há uma negociação a respeito do robô, então o aspecto econômico retrocipa ao formativo. Além disso, “na concepção de um robô industrial, todos os tipos possíveis de antecipações podem ser encontrados” (p. 106). Quando se pensa no posicionamento dos consoles de acesso ao operador, questões ergonômicas são levadas em consideração, de modo que o aspecto espacial antecipa o aspecto biótico.
Tab. 1 – Aspectos modais e núcleos de significado.
O nível de ruído produzido pelo maquinário, bem como as possibilidades de contato social entre os funcionários, representam a antecipação do aspecto social feito pelos aspectos físico e cinemático. As normas de segurança que precisam ser aplicadas na operação do robô fazem com que os aspectos espaciais e físicos antecipem o aspecto jurídico. Do mesmo modo:
A confiabilidade de um aparelho ou parte é algumas vezes expressa em tecnologia pelo conceito ‘tempo médio entre falhas’ (TMEF). Nesse caso, estamos falando de uma antecipação nas modalidades espacial, cinemática e física à modalidade da confiança (fé) (VERKERK et al., 2018, p. 106).
Além disso, há aspectos nos quais o robô atua não como sujeito, mas, sim, como objeto. No aspecto biótico, um robô industrial não tem nem função sujeito, nem função objeto. Contudo, um robô médico tem função objeto ao auxiliar num sistema biótico. No aspecto psíquico, o robô atua como objeto que pode gerar sensações e emoções nos funcionários que o operam (VERKERK et al., 2018, p. 98). O mesmo pode ser dito dos aspectos analítico e formativo, pois o robô é um produto do pensamento humano e da “habilidade do ser humano de formar a realidade no seu entorno” (VERKERK et al., 2018, p. 99).
Há um caráter normativo nos aspectos posteriores a partir do analítico, no sentido em que é possível obedecer ou violar uma norma daquele aspecto. Por exemplo, o aspecto histórico (ou formativo) também tem como núcleo de significado o poder. O robô não exerce poder por si mesmo, mas é um objeto de poder nas mãos dos homens, tendo potencial de ser usado para auxiliar ou oprimir pessoas. Dentro do aspecto moral, o projeto do robô deve considerar os riscos envolvidos, de modo que “o engenheiro enfrenta o desafio de conceber um aparelho de tal modo que o cuidado pelo cliente e o serviço a ele assumam a posição central” (VERKERK et al., 2018, p. 102). Em suma,
Uma vez que cada aspecto é caracterizado por leis (aspectos anteriores) e normas (aspectos posteriores), essa análise também permite insights a respeito das leis que um engenheiro tem de ter em mente quando projeta, e as normas que um artefato tecnológico deveria cumprir (VERKERK et al., 2018, p. 112).
Assim, em oposição ao que afirma Jacques Ellul, a tecnologia não é autônoma. Mesmo que ela assuma um caráter autônomo, os responsáveis por isso são os agentes humanos que, durante a concepção do projeto, não consideraram suficientemente os aspectos normativos da tecnologia (VERKERK et al., 2018, p. 112). Por isso, é mister uma visão correta das possibilidades que uma tecnologia possui, de abrir significados ou de fechá-los, de causar bem ou de causar mal:
Portanto, a atividade científica e o desenvolvimento tecnológico não devem ser vistos como autorregulados […] Na ciência, a questão é sempre obter conhecimento acerca das leis que governam a realidade. Nas ciências técnicas, por exemplo, a questão central é de obter conhecimento das leis que governam a tecnologia. A tecnologia em si, contudo, não se caracteriza por formar ou modelar a realidade. Ambas atividades estão contidas numa direção normativa supra objetiva e supra arbitrária da realidade. Essa direção normativa é, do mesmo modo, muito importante para a orientação tanto da ciência quanto da tecnologia. A ideia ou pensamento principal é que o desenvolvimento tecnológico deveria servir à vida e não destruí-la. E até o ponto em que a tecnologia influencia a vida da sociedade, ela deveria, juntamente com a economia, fomentar uma verdadeira convivência em paz e com justiça (SCHUURMAN, 2016, p. 210).
¹ PRESSE, France. Musk e centenas de especialistas pedem pausa no avanço de sistemas com inteligência artificial. G1, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/03/29/musk-e-centenas-de-especialistas-pedem-pausa-no-avanco-de-sistemas-com-inteligencia-artificial.ghtml. Acesso em 30 de dez. 2023.
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Referências Bibliográficas
PRESSE, France. Musk e centenas de especialistas pedem pausa no avanço de sistemas com inteligência artificial. G1, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/03/29/musk-e-centenas-de-especialistas-pedem-pausa-no-avanco-de-sistemas-com-inteligencia-artificial.ghtml. Acesso em 30 de dez. 2023.
SCHUURMAN, Egbert. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução de Thaís Semionato. Viçosa, MG: Ultimato, 2016. 272 p.
VERKERK, Maarten Johannes et al. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Tradução de Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Viçosa, MG: Ultimato, 2018. 377 p.