Escrito por Melissa Guimarães Kraemer, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
A partir do estudo sobre as relações contratuais e pactuais do filósofo Roel Kuiper, este artigo busca argumentar sobre a ausência de reciprocidade nas relações familiares e o exponencial crescimento no número de idosos abandonados no Brasil. Para atingir o objetivo proposto, o artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, será realizado um breve apanhado dos desafios sociais contemporâneos apontados no trabalho de Roel Kuiper; por conseguinte, realizar-se-á a apresentação do diagnóstico recente do trato com os idosos no Brasil; em seguida, será apontada a diferença nas relações estabelecidas entre pais e filhos e a falta de reciprocidade entre elas; por fim, tratar-se-á de uma possível resposta cristã para a problemática apresentada.
Ao discorrer sobre desafios sociais contemporâneos, Roel Kuiper (2019, p. 18) aponta que a cultura atual de desprendimento é resultado da individualização e globalização. Com a globalização, perdeu-se a ideia de territorialidade, facilitando, assim, o desprendimento do território no qual o homem nasce e das suas relações primárias para buscar por novos lugares e, consequentemente, novas relações. Esse desenraizamento se acentua com o protagonismo do indivíduo como unidade básica social. Estes dois marcos contemporâneos afetaram as relações humanas e sociais de maneira vasta. Não obstante, a forma como a atualidade lida com seus idosos também foi afetada.
Recentemente, foi publicada a seguinte notícia no site Observatório do Terceiro Setor: “O número de denúncias de abandono de idosos cresceu 855% em 2023, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania” (GARCIA, 2023). Qual a resposta para uma sociedade que, em sua maioria, professa a fé cristã, mas que tem cada vez mais abandonado seus idosos? Esse aumento expressivo nos números de abandono de idosos no Brasil é resultado da contemporaneidade. A pessoa idosa perde seu valor em uma sociedade individualizada, completamente absorta na busca pelo sucesso e realização pessoal e utilitarista.
De forma mais cirúrgica, o problema começa nas relações familiares. Não há mais mutualidade nas relações estabelecidas entre pais e filhos, sendo que a perspectiva do primeiro grupo é tida como pactualista, enquanto a segunda, contratualista. Ao diferenciar estas duas relações, Kuiper (2019, p. 144) define a relação pactualista, ou pacto, da seguinte forma:
A vida social que se desenvolve com isso é caracterizada pelo compromisso de não abandonar o outro e de preocupar-se com ele. Isso se refere ao empenho de uma pessoa pela outra […]. Essa não é condicional, como no contrato, mas incondicional. Não se abandona o outro, seja lá o que aconteça, ou seja lá o que custar. Isso implica em que as pessoas deixam prevalecer o interesse ou bem-estar do outro (KUIPER, 2019, p. 144).
A relação dos pais para com os filhos é, a priori, uma relação pactual, na qual os pais amam, se preocupam e se doam aos filhos incondicionalmente. Tendo algumas ressalvas, a maioria dos pais estabelece uma relação de amor e sacrifício com suas crianças. Independente das ações dos filhos, os pais permanecem fiéis à relação de cuidado e amor para com eles. No entanto, esta relação de doar-se ao outro não é totalmente recíproca.
Já os filhos, na atualidade, foram liberados desta mutualidade para perseguir seus próprios futuros. Almejando seu próprio sucesso, alheios às relações abandonadas e impulsionados sutilmente pelo entendimento comum de que os filhos são criados para voar — como se destes não devesse se esperar preocupação e responsabilidade mútua —, estes estabelecem relações contratualistas com seus pais.
Quanto à relação contratualista, ou contrato, Kuiper (2019, p. 144) explica que se trata de “um paradigma básico da sociedade moderna” e o define como
a concordância formalizada ou não com um compromisso. Um contrato cria obrigações às quais cada indivíduo nele incluído está vinculado. Esse vínculo é condicional, ligado às condições de um compromisso. O contrato obriga o contratante a não abandonar o outro quanto aos pontos acordados (KUIPER, 2019, p. 144).
O filósofo reforça que as relações contratuais são, de fato, necessárias nas relações humanas. Porém, ele indica problemas quando as relações básicas passam a ser reduzidas a meros contratos. O contrato, segundo Kuiper (2019, p. 144), “não cria vínculos de lealdade fora dos interesses partilhados” e a durabilidade de tais relações depende totalmente do indivíduo.
Tendo uma relação contratualista, os filhos não estão mais vinculados por um senso de lealdade e amor aos seus pais. No lugar, estabelece-se um contrato condicional com aqueles que deveriam ser amados e respeitados incondicionalmente. Enquanto há um retorno significativo e um ganho substancial, a relação é mantida. A partir do momento em que os pais idosos demandam cuidado, zelo, respeito e, consequentemente, tempo e amor, eles perdem seu valor e o contrato estabelecido perde sua validade.
Esta forma contratual de relacionar-se pode até levar os filhos a uma atitude minimamente assistencial de alocar seus idosos em casas de repouso, mas não os obriga a manter-se preocupados com o bem-estar e até mesmo a dar manutenção a estas relações. A grande pressão para que o ser humano decida seu próprio destino, alcance sucesso a qualquer custo e dê resposta à sua existência, fez com que os filhos se tornassem utilitaristas, decidindo por aquilo que mais pode beneficiá-los. Nesta visão do outro como “isto”, e não como “tu”, os progenitores tornam-se apenas objetos que devem auxiliar nesta busca desenfreada ou serem abandonados quando oferecem mais ônus do que bônus.
Segundo Kuiper (2019, p. 22), esse trato contratualista nas relações mais básicas gera a perda de confiança nas relações e a insegurança do futuro que afetam a sociedade de maneira geral. Não há mais a segurança e a previsibilidade de que os pais, ao envelhecerem, terão o cuidado e o amor de seus filhos. Portanto, tendo em vista o abandono crescente dos idosos no Brasil, decorrente dessa falta de reciprocidade nas relações básicas, como pode-se estabelecer novamente relações de pacto entre pais e filhos?
A sociedade florescerá, isto é, haverá redução nos números de abandono de idosos, quando relações pactuais recíprocas voltarem a ser estabelecidas. Os idosos terão novamente atribuídos a si o devido valor quando passarem a ser vistos como “tu”, como pessoas que devem receber amor e cuidado, assim como forneceram aos seus filhos quando estes, ainda dependentes de auxílio, foram supridos.
O estabelecimento de uma relação pactual sugere um comprometimento que exige promessa ou juramento. Por este motivo, os pressupostos para tais relações estão em algo além do próprio homem, na origem transcendental (KUIPER, 2019, p. 144). Ou seja, para que laços sociais sejam estabelecidos a partir de pactos, é necessário buscar no Transcendente. Deus é fundamental para que o homem volte a formar laços de preocupação e amor.
Por fim, segundo Frame (2013, p. 58), “você não pode compreender a situação completamente até que saiba o que a Escritura diz sobre ela e até que entenda seu próprio papel na situação”. O Decálogo, como ética normativa cristã, precisa ser atribuído novamente como fonte orientadora para as relações sociais. Diante disso, o próprio Decálogo trata sobre as relações familiares. Para os filhos, é estabelecido no livro de Êxodo, capítulo 20, verso 12: “Honra teu pai e tua mãe para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. No comentário da Bíblia de Estudo de Genebra, entende-se, a partir deste mandamento, que “a honra aos pais não somente é a âncora da sociedade, mas também une os filhos aos pais na continuidade da fé” (GENEBRA, 2011, n.p.). De fato, a sociedade só tem seu florescimento a partir da concepção de relações pactuais sustentadas por e a partir do Criador.
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Referências bibliográficas
BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Tradução: Almeida Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 2011. 1985 p.
FRAME, John. A doutrina da vida cristã. Tradução: Jonathan Hack. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 976 p.
GARCIA, Maria Fernanda. Denúncias de abandono de idosos crescem 855% este ano no Brasil. In: Observatório do Terceiro Setor. Observatório do Terceiro Setor. 19 jun. 2023. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/denuncias-de-abandono-de-idosos-crescem-855-este-ano-no-brasil/#:~:text=Infelizmente%2C%20o%20abandono%20de%20idosos,de%202022%2C%20foram%202.092%20casos.. Acesso em 5 ago. 2023.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310 p.