Escrito por Darli Nuza, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Introdução
As demandas no campo das artes, advindas de suas relações fronteiriças, trazem diversos questionamentos. Por exemplo, a utilização de diversas tecnologias contemporâneas na produção artística tem sido um tópico com novos rebuliços, mas trazem à tona velhas questões. Isso é arte? Para que serve? A que campo essas novas produções pertencem e em que elas auxiliam?
Na filosofia grega, o pensamento de Platão sobre a arte fundou diversas dessas perguntas que perpassam, até hoje, o moinho do sistema artístico. Essas conjecturas não ficaram no passado e influenciam as novas questões, debates e suas respostas. Como lidar com essas águas passadas que insistem em repassar e movimentar o moinho?
Pensando sobre a relação entre Platão e as artes, este ensaio apresenta apontamentos sobre a proposição platônica, suas lacunas e quais perspectivas respondem melhor às artes. Observar esse encontro é um exercício para discernirmos as “águas” filosóficas que perpassam o “moinho” (sistema artístico) e como — diante das deteriorações — abordar e auxiliar nos reparos.
Pressupostos: observando a fonte das águas e as bases do moinho
Quando citamos Platão e artes em uma mesma frase, é comum ouvirmos sobre “a complexa rejeição de Platão às artes” ou “a desconsideração das linguagens artísticas por esta abordagem”. Alguns ousam dizer que é impossível manter ambos no mesmo lugar. Por um lado, é bem verdade que as declarações feitas por Platão — em especial sobre a pintura e a poesia — trazem aspereza no discurso. Por outro lado, há de se observar que o foco nessas particularidades leva a um distanciamento, impedindo de ver, analisar os pressupostos e as questões advindas dessas bases. Por isso, é relevante aproximarmos e observarmos as fontes da recusa platônica às artes para melhor compreensão e abordagem da temática.
Nesta aproximação, vemos que o foco da confiança de Platão era o senso crítico, a racionalidade. Para ele, a verdade se dá no mundo das ideias: o intelecto em ação. Essa confiança foi amparada pela divisão da realidade em dois universos distintos, o inteligível e o sensível. As artes estariam no lado sensível, materializado, imperfeito, considerado uma cópia, uma imitação do mundo das ideias (o inteligível).
Logo, essa classificação platônica sobre a arte não significa que ele não se relacionava com as artes ou era uma “questão de gosto”. Abordando esse histórico, o autor Frederick Copleston relembra que Platão expulsou a maioria dos poetas da República “por considerações de ordem metafísica e, sobretudo, moral; mas certamente não é o caso que faltassem indicações de que Platão fosse bastante sensível às composições” (COPLESTON, 2021, p. 251).
Este apontamento sobre a moral, trazido pelo autor, junta-se ao ponto citado acima: a busca pela verdade. Sobre isso, descrevendo a filosofia antiga e seus arranjos, Giovanni Reale também aponta que “Platão, ao determinar a essência, a função, o papel e o valor da arte, se preocupa somente em estabelecer qual valor de verdade ela tem, ou seja: se é e em que medida se aproxima do verdadeiro; se torna melhor o homem; se socialmente tem valor educativo ou não” (REALE; ANTISERI, 2017, p. 150).
A partir desses pressupostos, é possível observarmos a busca demasiada de Platão por soluções pedagógicas, educativas, que moralizem o homem. Como a arte possui também outros compromissos para além do encontro com a verdade, Platão a desclassifica, apontando-a como não conhecimento, algo que deseduca e corrompe. Brevemente, essas são as “águas filosóficas” que banharam questões importantes no “moinho”: o sistema artístico.
Identificando as deteriorações no moinho
O motif, motivo central onde Platão depositou a crença — o dualismo e o intelecto como lugar de confiança plena —, culminou nas artes e, assim, aqui estamos nós, vendo as reverberações contemporâneas desses pressupostos. O desprestígio das artes é enraizado na ideia de que o coração, a percepção, a imaginação e a criação artística não estão interligados e pertencem a lugares totalmente opostos. Daí ouvimos afirmações como “a arte não tem a ver com intelecto ou espiritualidade”, ou “ela é destinada apenas às emoções”. Todavia, será mesmo que a arte é uma forma exclusiva de expressão emocional? Ou seria apenas um meio pedagógico? Quais os outros atributos que a arte oferece? Copleston (2021) comenta sobre a teoria da arte de Platão, apontando essa divisão dos dois mundos e apresentando outro atributo desapercebido por Platão.
Deve-se admitir que Platão não se apercebia — ou caso se aperceba, não o mostra de modo suficiente — do caráter especificamente desinteressado da contemplação estética em si mesma. Estava muito mais preocupado com os efeitos educacionais e morais da arte (…), valorizando a excelência moral acima da sensibilidade estética (COPLESTON, 2021, p. 256).
Esse desnivelamento que valoriza a moral e recusa a sensibilidade estética provoca absolutizações desastrosas para os campos. Além disso, o ato de depositar a confiança em um motivo caído — o intelecto, que também se inclina à degradação — é estabelecer as normas em terreno instável. Herman Dooyeweerd nos lembra das consequências tanto do dualismo como da absolutização de um único aspecto, dizendo:
Se um mundo caído é a fonte das normas, então inevitavelmente resulta uma tensão castradora; o amor opõe-se ao poder; a natureza à liberdade ou à graça; a matéria à forma, e assim por diante. Absolutizar um aspecto da criação é distorcer toda a criação e torná-la desprovida de significado (DOOYEWEERD, 2018, n.p.).
Pensando sobre essas deteriorações que afetam parte do moinho das artes, quais outras proposições nos auxiliariam a desviar dos reducionismos e valorizar a arte em concordância com sua esfera?
As múltiplas perspectivas do moinho e a possibilidade de novas águas
Assim como um moinho não é um artefato bidimensional, o sistema artístico também não o é. Perceber de fato as várias dimensões, como se dá a estrutura tanto de um moinho como de um campo, alinha a leitura de ambos. Junto a avaliação dos pressupostos e raízes, podemos observar sua tridimensionalidade, ou seja, os diversos aspectos existentes no sistema artístico: pedagógico, contemplativo, criativo, histórico, filosófico, entre outros.
Baseada na visão triperspectivista1, considero que a abordagem nas artes deve ser caleidoscópica. Em vez de olharmos para as artes e defini-las por um único aspecto, lembremos de girar esse caleidoscópio, observando sua tridimensionalidade, as dinâmicas e encontros dos atributos, a profundidade desses ângulos e suas reverberações. As muitas formas de relacionamento com as artes envolvem normas e critérios éticos, para nós, em situações e contextos. Por isso, vale o exame de suas raízes como também sua aparência externa para não cairmos em reducionismos platônicos.
Sendo assim, relembremos um exemplo de uma “prática caleidoscópica” com as artes. Êxodo 31 fala sobre dois artistas escolhidos para construção do Tabernáculo. Os primeiros versos expõem Bezalel e Aoliabe, cheios de sabedoria, competência e habilidade para fazer todo tipo de trabalho artístico: desenhando, trabalhando com uma variedade de materiais, lapidando pedras preciosas, pensando desde a composição arquitetônica até os menores utensílios. Frente a essas demandas, seria possível realizar algo tão detalhado e significativo sem uma visão holística dos artistas? Com a mesma qualidade, não seria possível.
Em suma, vemos neste aspecto (criativo) acima, o resultado de uma compreensão tridimensional do homem frente suas práticas. Sem o dualismo, as emoções foram banhadas pela sabedoria combinada com virtudes (como, paciência e disciplina) que regiam as mãos para cada entalhe dos materiais. O intelecto — diretamente ligado à imaginação e à volição — pensava novas ideias para a arquitetura e cada desejo de cor, forma e utilidade, derivadas de corações sábios; uma visão caleidoscópica de artistas mordomos que cuidam do moinho e examinam suas águas.
1 Como perspectivas, não são três partes de um procedimento, mas o mesmo processo de conhecimento visto de ângulos diferentes que nos oferece uma visão mais ampla do objeto. Para melhor aprofundamento nesta abordagem, consulte o autor John Frame (2010) e leia mais em: https://frame-poythress.org/ebooks/symphonic-theology-by-vern-poythress/.
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Referências bibliográficas
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. Ed. rev. e ampl. São Paulo, SP: Paulus, 2017. 704 p.
A BÍBLIA. Livro de Êxodo. Tradução de João Ferreira Almeida. Antigo Testamento e Novo Testamento. RJ: King Cross Publicações, 2008.
COPLESTON, Frederick. Uma história da filosofia, v.1: Grécia, Roma e Filosofia Medieval. Trad. Augusto Caballero Fleck, Carlos Guilherme e Ronaldo Robson — Campinas, SP: Vide Editorial. 2021. 1052 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. V. Kindle.
FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. SP: Cultura Cristã, 2010. 448 p.
POYTRESS, Vern. Symphonic Theology: The Validity of Multiple Perspectives in Theology. 2001. Disponível em: https://frame-poythress.org/ebooks/symphonic-theology-by-vern-poythress/.