Escrito por Fernando Lemos da Silva, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Introdução
O presente artigo busca sistematizar uma análise comparativa entre os critérios de avaliação de uma obra de arte de dois filósofos e teólogos protestantes, Hans Rookmaaker (1922-1977) e Francis Schaeffer (1912-1954). O artigo irá descrever individualmente os critérios de cada um dos autores para, em seguida, fazer uma comparação direta entre estes critérios, mostrando pontos de contato diretos e indiretos, bem como pontos em que não há contato nenhum entre eles.
Por beberem de uma mesma tradição, o neocalvinismo holandês, serem contemporâneos, amigos de longa data e servirem juntos à obra de Cristo no ministério L’Abri, as dissonâncias encontradas, como esperado, serão majoritariamente questões de ênfase por causa das preocupações e ocupações majoritárias de cada um do que discordâncias em si.
1. Os seis critérios de Hans Rookmaaker
O filósofo neerlandês Hans Rookmaaker, em seu artigo Normas para a arte e a educação artística?, publicado no livro Filosofia e Estética, expõe seis critérios através dos quais acredita ser possível julgar uma obra de arte. Os seis critérios podem ser divididos em três grupos: os que se referem ao artista, à obra de arte e, por último, ao espectador. No primeiro grupo são analisadas a realidade, a cosmovisão e a personalidade do artista. No segundo grupo é analisada a obra em si, bem como seu contexto. No último grupo analisamos as opiniões dos críticos quanto à obra. Detalharemos cada um desses critérios abaixo.
Começando com o primeiro grupo, dos critérios referentes ao artista, o primeiro critério a ser analisado seria a realidade do artista, em que é avaliado nosso conhecimento histórico sobre o ambiente em que o artista estava (ROOKMAAKER, 2019, p. 199). Só podemos avaliar corretamente uma obra de arte ao explorarmos nosso conhecimento sobre a realidade em questão e nossa intuição sobre os ideais em voga no período histórico e localização geográfica em que o artista se encontrava.
Continuando para o segundo critério, este analisa a visão da realidade do artista, tanto através de conhecimento histórico quanto da própria análise da obra, sendo que muito da cosmovisão pode ser retirada da própria obra. Se formos comparar, por exemplo, a obra Crucificação (1930), de Pablo Picasso (1881-1973), e a pintura Erguimento da Cruz (1633), de Rembrandt (1606-1669), as duas obras, apesar de representarem a mesma cena, mostram claramente a diferença de cosmovisão entre os dois pintores. É importante salientar que, nesta parte do artigo, o autor não se importa em julgar a cosmovisão, e, consequentemente, a obra, como um ponto negativo a ser destacado, caso esta seja antibíblica (ROOKMAAKER, 2019, p. 200).
Partindo para o terceiro critério, neste são avaliados a personalidade e talento do artista. Rookmaaker entende que, pela nossa própria humanidade, experiência, conhecimento da natureza humana, e também nossas reflexões sobre as obras de determinado artista, conseguimos, mesmo não o conhecendo pessoalmente, discernir pontos de sua personalidade e talento (ROOKMAAKER, 2019, p. 200).
Entrando agora no segundo grupo, referente à obra de arte, o quarto critério é analisar a obra em si. Esta, utilizando o exemplo da pintura, utiliza sobreposições específicas de cores e linhas, além de falar iconicamente. O quinto critério diz respeito ao contexto da obra, à situação em que ela surgiu (ROOKMAAKER, 2019, p. 200). Quanto a este assunto, devemos entender quais normas estéticas eram positivadas na sua época, bem como a estética era então desenvolvida e entendida no seu tempo e contexto. Munidos dessas informações, podemos contextualizar a obra e entender mais profundamente seus objetivos, significados e apelos estéticos.
O último grupo se refere ao espectador, mais propriamente às observações que críticos já fizeram sobre determinada obra. Devemos, além de interpretar tais críticas, tentar entender a cosmovisão do próprio espectador, pois esta possui influência clara de como ele enxerga tal obra, podendo, assim, enviesar ou deturpar tais críticas indefinidamente. Além disso, podemos também ser beneficiados pela proximidade histórica de certos espectadores, que nos ajudariam a definir se uma obra de arte é, por exemplo, uma campanha política ou uma sátira, se ela é um rascunho ou uma obra já finalizada pelo artista (ROOKMAAKER, 2019, p. 201-202).
2. Os quatro critérios de Francis Schaeffer
Passando agora para seu amigo e contemporâneo, o pastor e teólogo americano Francis Schaeffer, este, em seu livro A Arte e a Bíblia, analisa o que a Bíblia nos mostra sobre diversas formas artísticas, utilizando tanto argumentação sistemática quanto exemplos bíblicos da interação de Deus com a beleza e a arte produzida por mãos humanas. Em seu segundo capítulo, Schaeffer busca responder: “Que tipo de julgamento se aplica a uma obra de arte?” (SCHAEFFER, 2009, p. 76). Para isso, ele elenca quatro padrões básicos, ou critérios, a serem descritos abaixo.
O primeiro critério diz respeito à excelência técnica. Utilizando o exemplo da pintura, o autor lista fatores como “uso da cor, da forma, do tom, a textura da tinta, o manuseio das linhas e a unidade da tela”. Para cada um dos fatores, há diferentes níveis de excelência técnica através dos quais, mesmo que não concordemos com o conteúdo ou cosmovisão do artista, podemos reconhecer que há, sim, ali, um “grande artista” (SCHAEFFER, 2009, p. 77).
Ao segundo critério, Schaeffer chama de validade. Neste critério, é analisado o quanto o artista é verdadeiro e honesto consigo mesmo e sua cosmovisão, ou se faz sua arte simplesmente para ser aceito, ou por algum tipo de recompensa financeira. Para Francis, se a arte é feita somente por causa de um cliente ou para agradar certo nicho de críticos, ela, então, não possui validade, pois não possui aí nenhuma expressão sincera do próprio artista (SCHAEFFER, 2009, p. 78).
Indo para o terceiro critério, este analisa o seu conteúdo, o qual reflete a cosmovisão do artista. Schaeffer, aqui, emite claramente um juízo de valor sobre obras de arte com cosmovisões não cristãs, pois, segundo ele, “a cosmovisão do artista não pode ser isenta do julgamento da Palavra de Deus” (SCHAEFFER, 2009, p. 79). Devemos, conhecendo os dois critérios anteriores, mesmo que seja uma obra de alta excelência técnica e que tenha validade, sermos sinceros o suficiente para podermos afirmar se sua cosmovisão é errada ou não. Da mesma forma que julgamos cosmovisões dos nossos colegas de trabalho, conhecidos, filósofos ou empresários, o trabalho dos artistas também deve passar pelo escrutínio da Palavra de Deus (SCHAEFFER, 2009, p. 82).
O quarto e último critério diz respeito à adequação do veículo à mensagem. Deve ser avaliado se há uma coerência entre estilo e conteúdo. Schaeffer dá dois exemplos, os quais ele considera de sucesso neste tema, o poema A Terra Devastada (1922), de T. S. Elliot (1888-1965), e a pintura Demoiselles d’Avignos (1907), de Pablo Picasso.
3. Comparação entre os critérios de Rookmaaker e Schaeffer
Vamos, agora, fazer uma comparação direta entre os critérios dos dois autores citados acima, e, para isso, usaremos siglas, para facilitação. Para os critérios de Rookmaaker, utilizaremos: RK1 – Realidade do artista; RK2 – Cosmovisão do artista; RK3 – Personalidade e talento do artista; RK4 – Obra de arte em si; RK5 – Contexto da obra; e RK6 – Espectador. Para os critérios de Schaeffer, utilizaremos: SC1 – Excelência técnica; SC2 – Validade; SC3 – Cosmovisão do artista; e SC4 – Adequação do veículo à mensagem.
Podemos, primeiramente, fazer uma correlação direta entre RK2 e SC3, já que ambos analisam a cosmovisão do artista. A diferença entre os dois autores está mais na postura quanto ao julgamento de uma cosmovisão como sendo incorreta quando for antibíblica, por parte de Schaeffer. Apesar de Rookmaaker não fazer este juízo de valor neste artigo, ele deixa explícito sua preocupação quanto a cosmovisões não cristãs no meio artístico em outros artigos do mesmo livro1 e, principalmente, em seu livro A arte moderna e a morte de uma cultura2.
Em seguida, ambos os filósofos avaliam a qualidade técnica da obra. Eles concordam diretamente em RK4 e SC1, porém o filósofo neerlandês se aprofunda também no talento do artista como um todo em RK3. Para terminar esta análise direta da obra, Schaeffer dá grande importância à coerência do veículo à mensagem em SC4, o que não deixa de expressar uma habilidade técnica do artista ao demonstrar tal coesão em sua obra de arte.
Partindo para os pontos em que não há contato evidente, Rookmaaker dá grande ênfase ao contexto do artista e da obra em RK1 e RK5, respectivamente, enquanto o pastor americano não gasta tempo explorando tais tópicos. De igual modo, o primeiro se preocupa com as avaliações do espectador e dos críticos em RK6, enquanto o segundo não dedica um critério a este tópico.
Agora nos pontos exclusivos de Schaeffer, encontramos a validade em SC2. O autor considera como grande demérito para a obra de arte que um artista faça algo em troca puramente de status, compensações financeiras ou para agradar um cliente ou público. Já Rookmaaker não leva tal tópico em consideração no seu espectro de análise de uma estrutura esteticamente qualificada.
Conclusão
Por tudo isso, este artigo fez uma comparação entre critérios de análise de uma estrutura esteticamente qualificada de dois filósofos e teólogos cristãos que desenvolveram trabalhos na área da estética, a saber, Hans Rookmaaker e Francis Schaeffer. Ambos dedicaram parte de sua obra a explicitamente declarar tais critérios, o que facilitou tal análise comparativa. Mesmo partilhando de uma mesma linha teológica, o neocalvinismo, sendo amigos por muitos anos e trabalhando juntos no L’Abri, encontramos certas diferenças, aqui demonstradas, porém elas dizem respeito à ênfase das próprias obras e às preocupações de seus autores.
Podemos concluir que Rookmaaker, como um filósofo e historiador da arte de carreira, se preocupou muito mais em deixar seus critérios completos quanto a uma análise histórica, contextual do artista e da obra e neutra quanto a julgamentos de valor cristão. Schaeffer, por sua vez, como um apologeta cristão por excelência, destacou pontos, como a sinceridade do artista e a validade de sua cosmovisão quando avaliada por padrões bíblicos.
1 Ver, por exemplo, o capítulo 3, A filosofia dos descrentes. Cf. ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e Estética. Trad. Willam Campos da Cruz. Brasília, DF: Monergismo. 2019, p. 34-44.
2 ROOKMAAKER, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Trad. Valéria Lamim Delgado Fernandes. Viçosa: Ultimato, 2015. 279 p.
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Bibliografia
SCHAEFFER, F. A. A Arte e a Bíblia. Trad. Fernando Guarany Jr. Viçosa: Ultimato, 2009. 126 p. E-book.
ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e Estética. Trad. William Campos da Cruz. Brasília, DF: Monergismo, 2019. 236 p. E-book.
ROOKMAAKER, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Trad. Valéria Lamim Delgado Fernandes. Viçosa: Ultimato, 2015. 279 p.