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Como sair do modelo de igrejas descartáveis?

Artigo escrito por Guilherme Prado dos Santos, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Uma inegável descrição que define o tempo presente é aquilo que Zygmunt Bauman define como “modernidade líquida”, termo que intitula uma de suas obras mais conhecidas1. O termo vem como um contraponto ao período anterior à Segunda Guerra Mundial, nomeado “modernidade sólida” e marcado por estabilidade, constância, valorização das tradições, rigidez e solidificação das relações humanas e sociais. A partir da década de 60, começou a se observar uma “fluidez” nas relações antes tão estáveis, mas cuja estabilidade agora não era tão óbvia2. A informatização trouxe acesso à informação tão rapidamente como nunca visto. A globalização gerou uma grande facilidade de aumento de espaço de circulação, causando um desenraizamento incomum às sociedades industriais. e a individualização também chegou colocando o indivíduo como paradigma para se pensar toda a realidade3. A família perdeu sua importância no papel de formação do indivíduo. O casamento se tornou descartável e passou a ser negociado por mero capricho pessoal. Quase todos os vínculos se tornaram “líquidos”, caracterizando um tipo de relações mínimas, onde as conexões foram enfraquecidas e prevaleceu o projeto individual do humanismo moderno, marcado pelo egoísmo e pelo utilitarismo. Com isso, chegamos a uma cultura do desprendimento, seja territorial, profissional ou relacional, e isso, por sua vez, evidencia o desaparecimento de atitudes morais.

Essa característica social de relações mínimas percebida como uma crescente nas últimas décadas também alcançou as igrejas, onde muitos cristãos ainda não percebem. Os relacionamentos interpessoais nas comunidades eclesiásticas, que certamente deveriam significar mais do que mero “coleguismo”, são, em sua maioria, impessoais e burocráticos, facilmente descartáveis quando surge alguma oportunidade. Não apenas isso, mas o relacionamento com o próprio Deus se torna mínimo, como mais uma conveniência. Certamente, os cristãos também foram atingidos pelas influências trazidas pelo secularismo, como toda a sociedade. Diante disso, o presente artigo pretende diagnosticar esse mal como uma deficiência de capital moral apoiada em um paradigma contratual de relações que deveriam ser fundamentadas em um pacto.

Capital moral: o que é e por que é importante?

Para entender a crise de capital moral na sociedade contemporânea, é necessário defini-lo primeiramente. O historiador e filósofo Roel Kuiper (2019, p. 25-26) o entende como “a capacidade individual e coletiva de estabelecer relações morais (…) a força de conexão de uma sociedade, a capacidade de permitir que as pessoas e seus laços se satisfaçam completamente e se voltem para a cooperação mútua e o bem-estar público” (KUIPER, 2019, p. 25-26).

Com o conceito de capital moral, o autor busca mostrar a capacidade de uma sociedade de articular valores morais capazes de mantê-la coesa. A metáfora do capital é muito bem escolhida aqui: com “capital”, podemos compreender esses recursos morais como algo que não pode ser construído instantaneamente, mas que é paulatinamente alimentado. Essa abordagem pode contribuir com a análise desse desenraizamento típico contemporâneo recorrendo a outro conceito importante: a doutrina da soberania das esferas, teoria popularizada por Abraham Kuyper, baseada em “esferas sociais autorresponsáveis que interagem entre si sem perderem sua autonomia relativa” (KUIPER, 2019, p. 29). O grande motivo para a confusão moral presente em nossa sociedade é que as esferas sociais foram confundidas em seu papel e sua abrangência, e, assim, algumas delas foram “engolidas” por outras. As famílias passaram a funcionar como associações frágeis, como grupos de ciclistas do bairro ou de donos de cachorros do condomínio, marcadas por superficialidade e conveniência. As igrejas passaram a operar como empresas, visando crescimento, lucro e vantagens, além da quantidade cada vez maior de rotação de pessoas. Comunidades essenciais na produção de capital moral têm se apagado e associações voluntárias têm predominado. Esse diagnóstico sociológico a respeito da desmoralização da sociedade é essencial para uma compreensão mais precisa de cada esfera da vida, em especial a igreja.

Uma sociedade de contratos

Desde o século XVII, com a influência de nomes como John Locke e Thomas Hobbes, a noção de contrato, com seu pano de fundo de negócio e comércio, se tornou paradigmática para entender as dimensões e esferas da vida humana. Começou a ser comum caracterizar a sociedade como um “contrato social”, em consequência da observação de uma sociedade marcada pela falta de confiança que as pessoas têm umas nas outras. Assim, os contratos criam uma “confiança institucional” que tenta compensar essa falta de confiança social4. Roel Kuiper afirma que o contrato “desenvolveu-se em paradigma central da sociedade ocidental. Passou a ser o modelo para praticamente todas as relações sociais” (KUIPER, 2019, p. 179). O contrato é centrado no indivíduo, nos interesses privados e em relações superficiais e temporárias. Isso não quer dizer que as relações contratuais não deveriam ter lugar na atual conjuntura social, mas estruturas primárias na formação de capital moral não podem viver sob esse fundamento.

Kuiper faz uma análise da sociedade dividindo-a (em termos de suas práticas simbióticas) em laços comunitários naturais, instituições, associações e relações interindividuais5. Em um cenário ideal, as associações e as relações interindividuais são eminentemente estruturas contratuais. Por mais que o capital moral seja encontrado e formado nesse tipo de relação, os sócios de um clube de futebol, os funcionários de uma empresa ou os envolvidos em uma transação comercial de venda pontual não precisam sair dos relacionamentos mínimos. Podem entrar e sair a qualquer momento dessas relações sem causar um grande dano à associação. Essas estruturas, assim como outras semelhantes, têm o seu lugar nesse grande ecossistema, mas a realidade é que esse modelo contratual típico de associações voluntárias tem invadido os laços naturais e as instituições. David Koyzis (2011) explica como isso ocorre com a igreja:

Sob a influência predominante do liberalismo em nossa sociedade, costumamos reduzir o leque de formações comunitárias a meras associações voluntárias. Consequentemente, tendemos a ver a congregação da igreja local da mesma forma: como uma mera associação de indivíduos convertidos (…) Somos implicitamente convidados a olhar para as listagens da igreja como uma espécie de fragmento eclesiástico no qual somos livres para “comprar” um lar na igreja que melhor se adapte às nossas próprias prioridades, tendências e estilos de vida (…) a igreja reunida é uma instituição da qual não podemos simplesmente desistir sem causar danos espirituais potencialmente irreparáveis ​​a nós mesmos e às outras comunidades das quais fazemos parte (KOYZIS, 2011).

Fica claro, na prática, a instituição igreja sendo tratada como associação voluntária. Comunidades de fé são escolhidas por adequação ao gosto pessoal de estilo, música e fatores sociais, gerando relações líquidas, frágeis e mínimas. Um contrato é estabelecido: enquanto agradá-lo, o indivíduo se compromete a fazer parte; quando não agradá-lo mais, sai e procura outra. O grande ponto é que a igreja é uma instituição social que não pode ser tratada com esse tipo de vínculo frágil, mas com vínculos duradouros, como o casamento. Além disso, diferentemente de associações voluntárias, o desligamento de um membro afeta toda a comunidade, afinal, Paulo define a igreja como um corpo6. Igrejas devem ser comunidades responsáveis pela formação de capital moral a partir de seus laços duradouros e não alinhados por contrato, mas por um pacto.

A esperança pactual

É necessário retomar uma visão paradigmática que restabeleça a formação de capital moral na sociedade e esse parâmetro deve ser a ideia de estrutura pactual. Um pacto, diferente do contrato, é um compromisso com uma promessa. Envolve confiança no outro e lealdade, possíveis apenas recorrendo a um poder superior aos próprios parceiros. Essa perspectiva transcendental é essencial nesse movimento. O pacto que Deus tem com o seu povo é o grande paradigma para os pactos interindividuais7. Assim, o pacto é universal, tem como premissa fidelidade e laços duradouros, promove reciprocidade e cuidado com as necessidades do outro. Voltando à taxonomia de Kuiper, os laços naturais de parentesco precisam estar estruturados em uma perspectiva pactual: filhos dependem de seus pais desde a gestação, e é um compromisso de fidelidade independente do que aconteça. As instituições também precisam recuperar essa visão: ao invés de contratos descartáveis, os casamentos precisam ser alianças eternas, “até que a morte os separe”.

Pensando nas igrejas, a visão teológica é imprescindível para as práticas comunitárias. Enxergar o pacto de Deus com seu povo, uma aliança marcada por fidelidade desde o Éden até hoje, põe o corpo de Cristo em prontidão para sair da superficialidade e dos relacionamentos mínimos com os outros. A formação moral ilustrada como “capital” põe ainda mais em evidência, como já mencionado, que é um processo contínuo e que leva tempo. Podemos pensar em um cenário hipotético de uma criança que troca de família todos os anos. É unânime que isso gerará consequências graves para a sua formação, como também para a família. O mesmo se aplica à relação eclesiástica: indivíduos descomprometidos, buscando apenas o mínimo e sem qualquer vínculo forte, serão levados a esse processo de desenraizamento comunitário por qualquer capricho pessoal. Isso traz danos robustos para a comunidade, mas principalmente para o indivíduo e sua comunhão com Cristo, o cabeça desse grande corpo. A vida em comunidade não é fácil, mas deve ser cultivada com o tempo, com fidelidade duradoura. Apenas assim é possível cultivar capital moral nessas relações. Na busca por uma sociedade rica em capital moral, as igrejas têm papel fundamental se abandonarem modelos contratuais e começarem a enxergar a realidade pactualmente. Assim, o bem-estar de todos fica em primeiro plano e cada cidadão é individualmente responsável por manter esse bem-estar8.


1 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar. 2001. 280 p.

2 KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, p. 44.

3 Ibid., p. 171-172.

4 Ibid., p. 171-172.

5 Ibid., p. 161.

6 1 Co 12.27.

7 KUIPER, op. cit., p. 189-190.

8 Ibid., p. 188.


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Referências Bibliográficas

BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo Nova Versão Transformadora. Tradução: Susana Klassen et al. 1. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2018, 2464 p.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar. 2001. 280 p.

KOYZIS, David T. A Neocalvinist Ecclesiology: How might Dooyeweerd change the way we approach the local church? In: Comment. A Neocalvinist Ecclesiology. Hamilton, 1 set. 2011. Disponível em: https://comment.org/a-neocalvinist-ecclesiology/.

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 309 p.