Ensaio escrito por Suelen Santos de Oliveira, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
A Bíblia hebraica carrega modos e valores específicos em relação à sociedade que se afastam do pensamento do Oriente Próximo e do pensamento grego. Nesse sentido, a possibilidade de a Bíblia hebraica apresentar argumentos filosóficos é explorada por Dru Johnson1, em seu livro Filosofia bíblica. Vários desafios permeiam essa relação entre a Bíblia e a filosofia. O primeiro deles é que o próprio conceito de filosofia é de origem grega e ocidental, o que contrasta com as origens e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Por isso, é necessário entender a noção de filosofia grega e o conflito epistemológico que surge ao longo deste caminho.
Em decorrência da suposição de ser apenas uma obra de revelação divina, a Bíblia é mais analisada por teólogos e raramente por filósofos. Enquanto isso, textos hindus e budistas têm sido explorados pela filosofia, nas últimas décadas no Ocidente, como artefato cultural de um povo. No entanto, um ponto de encontro a ser explorado aqui é que a própria definição de filosofia é tacitamente entendida como um modo de vida. Nesses moldes, a filosofia hebraica encontra embasamento, pois está intimamente ligada à prática. Embora haja inúmeros questionamentos sobre a definição de filosofia, o termo, em sua raiz ocidental, está atrelado às questões da mente e do raciocínio. Contudo, será usado aqui para descrever o que está acontecendo nos textos bíblicos.
Assim, ao longo deste ensaio, pretendo apresentar o estilo filosófico hebraico através do livro Filosofia bíblica, de Dru Johnson, relacionando-o com o dualismo2 da filosofia ocidental. A ênfase deste trabalho será apresentar o conhecimento como ação corporificada na sabedoria hebraica.
As raízes do dualismo ocidental
A base do pensamento ocidental tem origem na Grécia, sendo, igualmente, o berço do que conhecemos como filosofia. Aquilo que chamamos de essência pode estar enraizado em conceitos e preconceitos de configuração ocidental. Conforme os historiadores da filosofia, os primeiros filósofos surgiram no século VI a.C., na Grécia. O início da filosofia tem como diferencial o rompimento com o mito, dando um aspecto de superação da imaginação e fábulas para um pensamento autônomo que evolui para uma racionalização de tudo, que ocorre a partir dos séculos seguintes.
Mas as alegorias ainda eram usadas por Platão para ilustrar conceitos e facilitar a compreensão, como na sua Teoria das Ideias. Na “alegoria da carruagem alada” do diálogo intitulado Fedro, Platão descreve a alma humana como uma carruagem puxada por dois cavalos. Um dos cavalos buscaria o Mundo das Ideias, que representa a tendência humana de buscar aquilo que é bom e perfeito. O outro cavalo forçaria o carro para baixo, em direção ao mundo sensível, imperfeito, material, no domínio dos desejos e não do intelecto. O segundo cavalo é o mais forte, simbolizando a tendência humana a ser inclinada aos desejos e as paixões. Por isso o homem conseguiria contemplar as Ideias por breves momentos, caindo no mundo material e sendo aprisionado em corpos.
De acordo com esta alegoria, o destino da alma seria determinado pelo tempo em que ela conseguisse contemplar o mundo perfeito das Ideias, de modo que quem conseguisse contemplar por mais tempo se tornaria o filósofo; por um período mediano, se tornaria artesão; por pouco tempo, um tirano, a pior alma que um homem poderia se tornar. Caso não conseguisse contemplar nada do Mundo das Ideias, então seria um animal ou uma planta (MAZIA, 2019, p. 37).
Usando este exemplo, gostaria de chamar atenção para alguns pontos importantes na construção basilar do pensamento ocidental. O primeiro ponto é o dualismo antagônico que faz parte do pensamento platônico, em que dois conceitos são rivais e, consequentemente, discriminados como bom ou mal, belo ou feio. É possível identificar nesta alegoria o dualismo corpo versus alma, desejo versus razão. Outro ponto é a categorização da humanidade numa forma hierárquica, em que as Ideias são a linha divisória que marcam o nível de evolução de um homem em relação ao outro. Eles são separados em categorias como filósofos, artesãos, tiranos ou animais e plantas, segundo o seu grau de instrução.
Essa ordem de pensamento constitui a formação ocidental e se desdobra através da história, instrumentalizada pela ciência e pela concepção de superioridade civilizadora ou, infelizmente, pela superioridade racial. Por fim, evolui no sentido de fazer de todos os lugares uma parte da “digna” obra civilizadora do ocidente (AGUIAR, 2015,p. 27). É importante saber como conceitos e preconceitos foram formados no pensamento ocidental e que o modo de raciocínio aprendido desde então como uma história única ou superior é a construção de um povo, dentre muitos outros. Agora, sim, podemos adentrar no estilo de pensamento hebraico e uma proposta diferenciada de filosofia.
Conhecimento como ação corporificada
Alguns argumentam que os gêneros da literatura bíblica não se prestam ao filosofar, pois consistem principalmente em narrativa, lei, genealogia, parábola, aforismo e mais. Contudo, essa ideia é refutada quando comparada à variedade da exegese filosófica. A dominação da filosofia pelo pensamento ocidental trata as tradições não ocidentais de pensamento como insuficientemente filosóficas.
O estranhamento sobre os textos bíblicos, sobretudo do Antigo Testamento, ocorre porque o argumento é construído com recursos diferentes do que estamos habituados. O argumento ocidental se alinha em um sistema de raciocínio, enquanto o estilo hebraico de filosofia dá primazia aos textos narrativos, com modos e convicções diferentes do que estamos acostumados.
Dessa maneira, é importante entendermos que o contexto intelectual que influenciou até certo ponto o pensamento hebraico foi o do antigo Oriente Próximo. Ainda assim, o fato de os hebreus serem um povo separado em meio às culturas que o cercavam gerou distinções que demarcam a discreta trajetória filosófica de Israel. O pensamento hebraico possui um raciocino analógico, baseado na experiência. Essa forma de raciocínio se dá por meio de analogias e se explica por meio de modelos e metáforas que se manifestam em nossa descrição da realidade.
Segundo especialistas, toda maneira com que enquadramos a realidade mediante palavras requer metáforas integradas. Assim, as nossas estruturas conceituais em si fluem da nossa experiência corporificada e da habilidade de propor analogias no imaginativo. O estilo literário bíblico não possui um modo linear e autônomo, mas pixelado e entrelaçado3. Dessa forma, os argumentos vão sendo encontrados em todo o corpo do texto, em que é possível reconhecer padrões. A repetição é um recurso para além do literário, presente também no estilo de vida através do ritual.
O ritual forma o indivíduo como sábio em Israel, a sabedoria também está ligada à habilidade e vem pela experiência e pela prática. Desse modo, a filosofia hebraica só pode ser praticada como um modo de vida comunitário. As datas e eventos percorridos pela Torá são ritualizados na comunidade hebraica, conforme o seu calendário.
Segundo Smith (2019, p. 102), ao tentar compreender (teoricamente) a “lógica da prática”, precisamos de um radar teórico bem calibrado. Se nos aproximarmos da prática com um radar teórico ajustado pelos pressupostos “intelectualistas”, podemos acabar perdendo o que há de singular e irredutível no “senso prático”, que é o conhecimento visceral, que acompanha uma comunidade de prática, ainda que não seja (nem possa ser) articulado em proposições.
O raciocínio analógico requer que nossos conceitos se formem a partir dos nossos corpos, para que se tornem lógicos para nós, de forma tácita4. Logo, o uso da metáfora só é concebido a partir da nossa experiência física. Entender a metáfora como algo inferior ou meramente ilustrativo, impede o entendimento do pensamento hebraico e ignora o nosso próprio pensamento sobre o “fazer isto” para “saber aquilo”.
Conclusão: o artesão é o sábio em Israel
Na sabedoria hebraica, é comum corporificar um conceito, como no caso da sabedoria, que aparece como uma pessoa do sexo feminino nos textos sapienciais. Essa sabedoria é transdemográfica, pois está em todos e é na comunidade que ela se sustenta. A epistemologia judaica é uma comunidade guiada por pais e profetas que tentam levar Israel a um conhecimento hábil. Conhecer através do corpo e do testemunho na comunidade induz a conclusões que não pertencem ao modo ocidental de racionalidade.
O conhecimento corporificado se desdobra para o direcionamento de outros, através do próprio testemunho. A simples obediência a Deus é preferível em relação ao raciocínio humano e o conhecimento se constrói por meio de relações de confiança em comunidade. Aprender pelo exemplo é se submeter à autoridade. Assim, o objetivo do conhecimento para Israel é para que outros possam saber, e, por isso, conhecer a Deus envolve práticas e rituais comunitários. Mas não se trata de quaisquer práticas e rituais, pois práticas e rituais ruins nos afastam de Deus.
No livro de Gênesis 3:11, Deus pergunta para Adão: Quem lhe disse (…)? Essa pergunta diz respeito à origem do conhecimento, pois ao ouvirem as vozes erradas, eles passaram a saber errado. A verdade, na sabedoria hebraica, precisa ser testada e aprovada. Em suma, a verdade é uma Pessoa, pois se manifesta corporalmente. A filosofia cristã se apresentou tanto como um discurso, quanto um modo de vida A verdade é o que se sustenta em face do tempo e das circunstâncias e se estabelece pela experiência corporificada, para que outros saibam.
1 Professor de estudos bíblicos e teológicos no The King’s College, em Nova York, diretor do Center for Hebreic Thought, diretor do site The Biblical Mind e apresentador do podcast com o mesmo nome.
2 Conceito filosófico que, no Ocidente, busca dividir a realidade e a condição humana em dois princípios básicos, antagônicos e dessemelhantes.
3 Modos de argumento e convicções dos estilos filosóficos hebraicos, segundo Dru Jhonson, no livro Filosofia bíblica, p. 130.
4 Conhecimento tácito é o tipo de conhecimento mais difícil de ser explicado por palavras. Ele está relacionado às experiências, à visão de mundo e às práticas de determinado indivíduo, como andar de bicicleta, por exemplo.
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ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história. TEDGlobal, 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br. Acesso em: 03 fev. 2024.
AGUIAR, Gilson. Antropologia Cultural. Maringá-Pr: UniCesumar, 2015. 307 p.
JOHNSON, Dru. Filosofia Hebraicabíblica: A origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Rio de Janeiro- RJ: Thomas Nelson, 2021. 398 p.
LIMA, Eduardo Sales De. Pensamento Critico. Maringá- PR: UniCesumar, 2021. 287 p.
MAZIA, Vitor Hugo. História da Filosofia. Maringá-Pr: UniCesumar, 2019. 222 p.
SMITH, James. K. A.. Imaginando o Reino: A dinâmica do Culto. Tradução. São Paulo: Vida Nova, 2019. 224 p.