Artigo escrito por Paula Sales, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
“A um poeta”1
O trabalho árduo do artista, cujo fim é a simplicidade da obra que encanta, é tema de um dos poemas de Olavo Bilac, um dos nomes importantes do parnasianismo brasileiro. O soneto de Bilac, intitulado “A um poeta”, carrega aquela sensação de economia perfeita; nenhuma palavra sobra e nenhuma palavra falta. Diz-se exatamente o necessário para a compreensão da obra e, ao fim, o leitor pode degustar tanto do significado quanto da forma como foi escrita. O poeta de Bilac chega aos leitores não como uma gazela saltitante aproveitando um dia fresco, mas como um trabalhador de mãos calejadas e suor escorrendo pelos lados do rosto e por baixo dos braços. Não vem ao público como quem descobriu a si escrevendo um poema, nem como quem desvendou os mistérios da alma humana usando um pincel. O poeta chega aos leitores como quem, trabalhando em silêncio e com paciência, erigiu uma obra de arte bela, verdadeira, pura e simples. O poeta de Bilac nem nome tem; seu esforço e sua identidade são ocultos ao observador de sua obra, cujos olhos e alma são servidos pelo resultado do trabalho duro de um artista anônimo.
Essa imagem da arte como fruto do trabalho duro começou a sair de moda a partir do Iluminismo: “Desde o começo do Iluminismo, a arte foi separada das ciências e atribuída à esfera da liberdade e da humanidade”2. Essas duas esferas, “liberdade e humanidade”, na modernidade, segundo Rookmaaker, se alimentam da irracionalidade e do misticismo, se opondo às regras fixas e duras das ciências e do determinismo naturalista. Quando os céus da modernidade se fecharam e deixaram do lado de fora a imagem do Cordeiro sentado no alto e sublime trono, adorado e aclamado pelos anjos e seres celestiais3, apenas os recursos da criação restaram para que a humanidade pudesse lidar com a realidade. É por causa do tipo de criatura que é o ser humano, feito por Deus de tal maneira que têm de escolher para si um deus, que, uma vez desconhecendo o Deus verdadeiro, a pessoa conhece apenas a realidade temporal e dela elege coisas temporais, imanentes, para fazer delas seu deus4. Quando os grandes temas da religião caem em desuso, são os temas da realidade que entram em cena e, junto a eles, a figura do artista. Nesse tempo, o artista passa de um artesão a uma espécie de sacerdote cuja função é revelar a natureza das coisas, da alma humana, a maldade, o status quo, ou de qualquer outra coisa que parece oculta ao olhar ingênuo do cidadão médio. À luz de tudo isso, o objetivo do presente artigo é investigar a natureza do trabalho do artista.
“O importante no trabalho é o trabalho”5
Cameron (2017) lida com o problema do vício em “fama” alertando que o importante do trabalho do artista é a execução do trabalho, o que virá após ele não deve ser o centro da atenção e preocupação do artista. Esse é um ponto difícil de lidar na época presente, quando todos os esforços humanos, seja na família, na arte, no Estado ou na religião, parecem submetidos aos objetivos da economia, como o ganho pecuniário, por exemplo. A ganância costuma aparecer como crivo de decisão em todas as áreas da vida, incluindo a produção artística. Isso nos leva a pensar sobre duas coisas: 1) A necessidade de um significado absoluto para o que fazemos e 2) A tragédia que é atribuir a um elemento da criação a função de ser o significado absoluto de alguma outra coisa na criação.
Ao lidar com seu trabalho, todo artista está sujeito às normas divinas da criação. Estas, quando acolhidas, servem de fio condutor para o trabalho do artista; é a consideração da norma que torna a arte tanto bela quanto cheia de significado. Assim, o trabalho do artista não deve ser voltado ao fim de dominar a realidade, exercer sobre ela algum poder, exibir a própria perícia sobre o mundo, a própria grandeza ou reivindicar soberania6. Antes, porém, o importante do trabalho é o trabalho. A dignidade do trabalho em si só pode ser reconhecida quando Deus é reconhecido como o elemento absoluto ordenador da realidade e fonte de significado para os elementos da criação. Sem o reconhecimento da soberania de Deus, o trabalho do artista padecerá sob a tirania da atribuição de significado a partir de uma das esferas da realidade.
O ensino do artesão
Em um cenário onde “ser artista” depende majoritariamente da capacidade de mergulhar em si e fazer brotar pinturas ou poemas a partir disso, ou depende de uma espécie de olhar biônico capaz de perceber as coisas ocultas da realidade, ser artista parece uma jornada mística demais para ser ensinada. O receio de influenciar a próxima geração e tirar dela a possibilidade da “autenticidade” é outro sintoma de nosso tempo que indica a noção distorcida sobre o trabalho do artesão. O artista não deveria depender apenas de si mesmo para produzir arte, mas, sim, do aprendizado do ofício. É nesses termos que Lewis fala sobre o trabalho de escrita, por exemplo, como um ofício aprendido7. Este ofício aprendido deve poder ser apreciado e julgado pelos seres humanos com toda sua humanidade.
Por fim, Rookmaaker discute essa questão do ensino do ofício apontando para a necessidade de ajudar e ensinar os mais jovens a julgar a arte que veem a partir das normas válidas para sua própria esfera. De maneira alguma a percepção e consideração das normas deve levar os jovens a um tipo de racionalismo na arte, tampouco se pode deixar que ela sucumba ao puramente subjetivo e irracional. Afinal, “se não houvesse normas, seria absurdo falar de arte e beleza”8. Contudo, não só isso. A chave para a relação do jovem com a arte é sua própria humanidade. “Toda educação diz respeito à humanidade dos jovens”9. A humanidade dos estudantes foi apontada por Lewis (2019) como a chave do ensino. Para ele, uma formação simplesmente racionalista significa a criação de uma geração de homens sem peito cujo problema não é o excesso de pensamento, mas uma carência de emoções férteis e generosas10. A arte não é feita apenas para artistas e gente especialista, a arte é para todos e todos devem poder apreciá-la, julgá-la e compreendê-la.
1 BILAC, Olavo. Tarde. 1919. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academicos/olavo-bilac/textos-escolhidos>. Acesso em 28 nov. 2023.
2 ROOKMAAKER, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Tradução: Valéria Lamim Delgado. Viçosa, MG: Ultimato, 2015, p. 217.
3 Apocalipse 5.11-14.
4 ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e estética. Tradução: William Campos da Cruz Cruz. Brasília, DF: Monergismo, 2018. E-book.
5 CAMERON, J. O caminho do artista. Tradução: Leila Couceiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2017, p. 212.
6 ROOKMAAKER (2018), op. cit., n.p.
7 LEWIS, C. S. Sobre histórias. Trad. Francisco Nunes. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil. 2018, n.p.
8 ROOKMAAKER (2018), op. cit., n.p.
9 Ibid.
10 LEWIS, C. S. A abolição do homem. Trad. Gabriele Greggersen. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil. 2017, p. 29.
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Referências
BILAC, Olavo. Tarde. 1919. Disponível em: <https://www.academia.org.br/academicos/olavo-bilac/textos-escolhidos>. Acesso em 28 nov. 2023.
ROOKMAAKER, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Tradução: Valéria Lamim Delgado. Viçosa, MG: Ultimato, 2015. 267 p.
ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e Estética. Tradução: William Campos da Cruz. Brasília, DF: Monergismo, 2018. E-book.
CAMERON, J. O caminho do artista. Tradução: Leila Couceiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2017. 271 p.
LEWIS, C. S. A abolição do homem. Trad. Gabriele Greggersen. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil. 2017. 128 p.
LEWIS, C. S. Sobre histórias. Trad. Francisco Nunes. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil. 2018. 256 p.