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Cosmovisão e Direito: uma análise a partir da crítica do pensamento por Herman Dooyeweerd

Artigo escrito por Débora Stefany de Oliveira Ferreira, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024

Introdução

O filósofo e professor de direito Herman Dooyeweerd foi um grande precursor no pensamento filosófico que critica o dogma da autonomia do pensamento racional, defendendo ser necessário pressupor os compromissos últimos do coração, conforme resume José Carlos Piacente Júnior, em sua resenha:

Dooyeweerd afirma que toda reflexão filosófica realmente crítica e transcendental deve pressupor os motivos básicos religiosos do coração. Sendo assim, reage contra o pensamento acrítico esposado na filosofia ocidental e sugere uma crítica radical transcendental que busca os fundamentos e o ponto de partida do pensamento, tomando a Escritura como o parâmetro último da verdade (JÚNIOR, 2010, p. 2).

Para fundamentar sua crítica, Dooyerweerd desenvolve que a forma de enxergar a realidade se divide em três níveis, a saber: teórico1, pré-teórico2 e supra teórico3. Esses níveis objetivam examinar a coerência dos diversos aspectos modais, a síntese teórica e a raiz da existência humana, isto é, o centro de toda atividade do pensamento (JÚNIOR, 2010). Por esta razão, a crítica realizada por Dooyeweerd ajuda a analisar os pressupostos e a aplicação do pensamento jurídico, a fim de identificar sua gênese e avaliar sua coerência e subsistência à luz da multiplicidade das cosmovisões envolvidas na construção do Direito Brasileiro.

Desse modo, o presente artigo busca apresentar as fontes do Direito e como elas são desenvolvidas na prática forense no nível teórico da realidade, bem como identificar a moral como fonte definidora da natureza do Direito, seja no âmbito individual ou social, desvelando o nível pré-teórico da realidade. Além disso, visa refletir acerca da moralidade dentro da cosmovisão cristã, para, por fim, discutir a necessidade de incorporação de um compromisso da fé cristã no nível supra teórico da realidade, se quisermos formar uma cosmovisão fiel para as atividades jurídicas.

As fontes do Direito: um campo teórico

As convenções ou ajustes sociais de convivência sempre existiram em qualquer sociedade na história, antes mesmo de existirem as normas institucionalmente estatais4. A esses ajustes sociais deu-se o nome de Direito Natural ou Jusnaturalismo, que se refere a um conjunto de amplos princípios que possuem três características básicas: eterno, imutável e universal (NADER apud FRITZ, 2019, p. 3).

Inicialmente, esse Direito Natural costumava ser diretamente relacionado às leis divinas, pois estas independem de aceitação e estão em todos os lugares. Contudo, com o distanciar de uma sociedade teocrática, foi consolidado o Direito Natural como direito espontâneo que se origina da própria natureza social do homem e que é revelado pela conjugação da experiência e da razão (FRITZ, 2019, p. 4). Não demorou muito para que a necessidade de estabelecimento de monarquias e Estados soberanos promovesse as legislações estatais, criando a diferenciação das chamadas “leis naturais” e as “leis humanas”, tradicionalmente chamada de Direito Positivo, conceituada por “ordem jurídica obrigatória em determinado lugar e tempo” (FRITZ, 2019, p. 5).

Por muito tempo, houve tensão entre as duas principais fontes do Direito: Direito Natural, que advém da própria natureza humana, e o Direito Positivo, imposto por determinado Estado. Na maioria dos países, a disputa perdeu sua força entre os séculos XVIII e XIX, quanto ao contexto histórico de busca por unidade como representação da vontade derivada de um poder, proporcionando a desconsideração do direito natural como direito em sentido próprio e, por consequência, reduzindo todo o direito a direito positivo. (SARAIVA, 2021). Portanto, todo Direito tem como sua fonte única o Estado. Este, por sua vez, possui, cada qual, sua própria organização do processo de produção das normas. Assim, restringindo a presente apresentação ao Brasil, temos como principais fontes formais as leis e a jurisprudência.

Resumidamente, a lei é criada pelo poder legislativo do Estado, através de votação dos representantes do povo legalmente escolhidos por votação democrática. Já as jurisprudências são decisões do poder judiciário que criam precedentes que servem de exemplos para os demais casos, até que, eventualmente, adquira força de lei, conferindo, assim, uma função atípica ao Judiciário (legislar). Em ambos os casos, é possível perceber que o Direito possui uma construção teórica registrada através de codificação de Leis, enunciados e sumulados. Sua construção se tornou tão essencial à proteção do Estado Democrático de Direito5, que se tornou uma construção científica que bebe dos conceitos políticos, filosóficos, sociológicos, entre outras áreas correlatas.

Contudo, tal construção teórica nasce, em última análise, a partir dos conceitos de moralidade e ética dos indivíduos envolvidos na criação das normas e, por extensão, da moralidade e ética de toda a sociedade local, dentro do que os contextos culturais são capazes de unificar para a maioria, em respeito à democracia. Isso porque, o Estado, uma entidade despersonalizada, não é capaz de realizar um juízo de valor acerca do que é certo, coerente e que protege os direitos básicos dos indivíduos e uma neutralidade levaria ao colapso social em razão dos conflitos de interesses. A crítica de Dooyeweerd ao pensamento racional, que permanece no nível teórico da realidade, é crucial para a percepção de que há pressupostos que transcendem e se direcionam ao âmago da existência do ser. Então, eis o problema: qual a base da moralidade que dita o Direito?

A moral como definidora do Direito: um campo pré-teórico

Existe uma clássica literatura jurídica chamada A luta pelo Direito, escrita pelo jurista alemão Rudolf Von Ihering, em 1872, que moldou a cultura jurídica no mundo ocidental, inclusive no Brasil, como porta de entrada em diversos cursos de Direito, acerca da essencialidade da perseguição de seus próprios direitos, seja em âmbito individual ou social. O autor defende que a ideia do direito pressupõe uma luta para defendê-lo (ou conquistá-lo) e conclui dizendo que não se trata de uma luta sem motivo, “mas a moral que nos deve dizer o que seja a natureza do direito; e longe de repelir a luta pelo direito, a moral proclama-a como um dever” (IHERING, 2019, p. 177). Em outras palavras, a moral definirá qual direito, pessoal ou da nação vale a pena ser lutado, isto é, qual direito deverá ser trazido à existência.

A reflexão do jurista alemão pode ser bastante antiga, mas ainda ecoa na sociedade. Em que pese o Brasil já possuir bastante leis bem estabelecidas, assim que o entendimento moral de um indivíduo o faz crer que possui certo direito não previsto em lei (direto ao aborto, casamento com pessoa do mesmo sexo, ou até mesmo com animais etc.), ele o buscará por meios típicos (seus representantes no Legislativo) ou atípicos, ajuizando ações com o fito de criar normas através de um julgamento (atuação do Judiciário).

Desse modo, por mais que um indivíduo comum, participante de uma sociedade, não possua uma construção teórica científica para embasar seus pressupostos, o que acontece em todo tempo é que esse mesmo indivíduo irá se valer das suas imagens de mundo e sua construção moral para criar fatos jurídicos, e, consequentemente, criar e/ou modificar o Direito. Nesse sentido, todo direito é, em última análise, uma construção cuja gênese não se encontra no nível teórico, mas no pré-teórico, a partir das condições e dos compromissos do coração daqueles que se dedicam na luta pelo seu direito, isto é, a partir das cosmovisões. Portanto, a moral que estabelece o Direito não possui base única, tampouco pode ser neutra; em verdade, possui múltiplas pressuposições, quase impossíveis de se rastrear individualmente.

Cosmovisão cristã: conhecendo o compromisso do coração

Atualmente, o conceito mais completo de cosmovisão é o definido por James Sire em sua obra Dando nome ao elefante (2004) e apresentado por Pedro Dulci (2024) da seguinte forma: “Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma narrativa ou um conjunto de pressuposições que sustentamos sobre a constituição básica da realidade e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos” (SIRE apud DULCI, 2024).

Essa compreensão de cosmovisão torna necessário chamar a atenção ao fato de que não se trata de uma questão de intelecto, já que muitas vezes a cosmovisão de um indivíduo nem é consciente a ele, pois, em verdade, se trata de uma orientação mais profunda, que transcende a mente e alcança a raiz da sua existência. Dessa forma, se todas as pessoas, de alguma forma, estão contribuindo para a construção do Direito de sua sociedade a partir de sua própria imagem de mundo, é evidente que os conflitos de interesses abrirão oportunidade de atuação do pecado e, por consequência, instauração da injustiça. É por isso que é primordial a compreensão de quais são as condições e compromissos do coração, a fim de conduzi-lo a uma compreensão coerente da realidade e propícia para o desenvolvimento da verdadeira justiça: aquela que corresponde a ordem criada e definida pelo Criador.

A necessidade de incorporar a moralidade da Lei que está acima da lei: um campo supra teórico

Diante da problemática aqui desenvolvida, a crítica do pensamento racional proposta por Dooyeweerd responde adequadamente à raiz do problema, pois identifica o ponto de partida do pensamento no impulso religioso do homem, conforme destaca José Carlos Piacente Júnior: “O impulso religioso em direção à origem determina o motivo básico. No caso do motivo básico apóstata, o ego se separa de sua origem divina, gerando os ídolos, fruto das absolutizações dos aspectos criados” (JÚNIOR, 2010, p. 3).

Por fim, Dooyeweerd assevera que o homem necessita conhecer a si mesmo e conhecer a Deus numa atitude de submissão a Cristo e à sua Palavra. Nas palavras de Piacente Júnior, Dooyeweerd “sugere uma crítica radical transcendental que busca os fundamentos e o ponto de partida do pensamento, tomando a Escritura como o parâmetro último da verdade” (JÚNIOR, 2010, p. 2), sendo este o guia para corrigir cosmovisões falsas, incoerentes e inconsistentes.

Chegando a uma conclusão semelhante, o Dr. Jeffery J. Ventrella, em palestra à Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia, ao desenvolver sua própria abordagem acerca da relação entre cosmovisão e Direito, traz em sua fala a importância de verificar quais os compromissos religiosos do coração, ou seja, identificar os ídolos de cada indivíduo. Afinal, se seu ídolo for seu próprio ego ou o Estado, então a Lei e a Justiça serão idólatras, o que levará à tirania, e não à garantia dos direitos básicos (VENTRELLA, 2017). Assim, conclui seu raciocínio com uma afirmação primordial: “Há quatro coisas que se pode fazer: 1º) se encontrar algo bom, promova-a; 2º) se encontrar algo faltando, pode contribuir; 3º) se algo quebrado, conserte; 4º) se algo maligno, confronte e impeça de prosseguir. Dessa forma, você irá incorporar a moralidade da lei que está acima da lei” (VENTRELLA, 2017).

Observa-se, por fim, que a discussão chega ao nível supra teórico da realidade, conforme os conceitos desenvolvidos por Dooyeweerd, onde diz respeito à direção do coração e cujo acesso somente a Palavra de Deus possui (Sl. 139.23-24. Hb. 4.12). É nesse ponto que teorizações ou construções filosóficas não surtirão efeito suficiente, pois não possuem a eficácia de regenerar o coração. Somente a Palavra de Deus sonda os “pensamentos e intenções do coração” e somente Ela é poderosa para promover transformação. Portanto, a pregação da Palavra de Deus e a encarnação do evangelho em todo modo de viver é de substancial importância, não somente para o efeito espiritual de salvação das almas, como também para realizar a missão da igreja na terra de representar a Cidade de Deus na Cidade dos Homens (Ef. 3.10).

Conclusão

O presente artigo se propôs a analisar os pressupostos e aplicação do pensamento jurídico, a fim de identificar sua gênese e avaliar sua coerência e subsistência à luz da multiplicidade de cosmovisões envolvidas na construção do Direito Brasileiro. Para isso, foi abordado quais as fontes trazem o Direito à existência e como essas fontes não podem se limitar ao nível teórico da realidade, haja vista serem, em última análise, uma construção da moral humana e seus compromissos religiosos.

Desse forma, quando, enfim, se finda que é a religiosidade a raiz da existência humana que define toda sua imagem de mundo que constrói o Direito, a conclusão é de que somente a Palavra de Deus é poderosa o suficiente para redimir os corações de sua inclinações a pressupostos falsos e inconsistentes que levarão a sociedade jurídica à tirania.


1 Refere-se ao racionalismo e suas construções teóricas como as expressões culturais: ideias, livros, artefatos etc. seguido das ciências e, por fim, à filosofia com suas perguntas fundamentais (DULCI, 2024).

2 Refere-se à experiência ordinária sem a necessidade de refinamento teórico; é onde as cosmovisões se manifestam, ou seja, as imagens do mundo que ajudam a orientar a realidade, mesmo que não seja uma teoria ou construção filosófica (DULCI, 2024).

3 Refere-se à direção do coração, a raiz da existência humana (DULCI, 2024).

4 Isto é, as leis promulgadas pelo legislativo de um país.

5 É um Estado no qual os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos são garantidos através do direito constitucional, isto, é norma Estatal.


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Referências

Bíblia King James Atualizada (KJA). Tradução e revisão: Comitê internacional de Tradução da Bíblia King James, sob direção da Sociedade Bíblia Ibero-Americana & Abba Press no Brasil. São Paulo: Abba Press, 2012.

DULCI. Pedro. Aula 2.3 – O desenvolvimento filosófico do conhecimento em cosmovisão: Herman Dooyeweerd. Módulo 2: Uma fé para a vida. 2024. 1 vídeo (40:04). In: Tutoria Avançada. Invisible College, 2024. Disponível em: https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-avancada-2024.

FRITZ, A. F.; PEREIRA, A.; LONGO, A.; CASTRO, M.; FAJARDO, M. As influências do direito natural e do direito positivo no funcionamento do ordenamento jurídico brasileiro. Jornal Eletrônico Faculdades Integradas Vianna Júnior, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 11, 2019. Disponível em: https://jornaleletronicofivj.com.br/jefvj/article/view/97. Acesso em: 3 mar. 2024.

IHERING, R. Von. A luta pelo direito. Trad. José Tavares Bispo. Livro impresso e digitalizado, disponível na Biblioteca Digital do STF: https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/785/631127.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 3 mar. 2024.

JÚNIOR, José Carlos Piacente. Resenha: No crepúsculo do pensamento ocidental. 2010. 5 p. Fides Reformata XV, Nº 1 (2010): 129-133. Disponível em: https://bit.ly/3wnLlnT. Acesso: 3 mar. 2024.

SARAIVA, B. C. O Direito Natural, o Direito Positivo e o Positivismo Jurídico: de como se decide no Brasil. Cadernos de Dereito Actual, [S. l.], n. 15, p. 72–94, 2021. Disponível em: https://cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/670. Acesso em: 3 mar. 2024.

VENTRELLA, Jeffery J. Cosmovisão Cristã e o Direito. Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia. Goiânia, 2017. 1 vídeo (1:25:24). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I49gA6zE8uo.