Artigo escrito por Jônathas Souza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”
(Marino Pinto1, citando Blaise Pascal2)
Todo cristão sabe que tem um compromisso com a verdade. Conhecer a verdade significa conhecer a Deus e fazer sua vontade. Para isso, ele precisa não só crer em Deus, mas também viver de acordo com essa crença. Além disso, por sermos seres dotados de racionalidade, buscamos usar essa ferramenta para construir argumentos e proposições que nos ajudem a não só ter certeza de que cremos num Deus real e presente, mas persuadir outros dessa mesma verdade, para terem o coração convertido ao Senhor.
Entretanto, na maior parte das vezes, assumimos como válidos apenas argumentos que se baseiam em proposições e deduções lógicas de nossa razão, ou da avaliação e articulação de dados empíricos, e acreditamos que as emoções não são confiáveis. Pensamos que as emoções são fruto de um ser humano preso a um corpo físico e as julgamos como inerentemente não confiáveis. Achar que sentimentos e emoções podem ser válidos como fonte epistemológica pode parecer uma abertura ao subjetivismo relativista que prega que o que vale é o que sentimos, individualmente.
Em contrapartida, esse artigo propõe, a partir dos escritos do teólogo John Frame, trazer a emoção e os sentimentos como uma perspectiva válida de como conhecemos. Para isso, queremos apresentar o conceito de repouso cognitivo, sentimento que torna persuasivos determinados argumentos e proposições e traz conforto e satisfação ao que crê, assumindo que não precisa mais avaliar se esses argumentos são realmente sólidos. O artigo pretende apresentar este conceito a partir de uma das definições de Frame, a saber, repouso cognitivo como um “piedoso sentimento de satisfação”3.
Situação
O primeiro aspecto que queremos pontuar é que o repouso cognitivo é um piedoso sentimento de satisfação. Estar em repouso cognitivo é assumir que uma crença ou decisão está baseada em argumentos suficientemente sólidos e que existe um limite argumentativo onde o ser humano se encontra satisfeito. Essa satisfação disputa com um desejo por completude, pois, afinal de contas, “sem o descanso de seu coração, falta ao homem a paz de sua alma”4. Buscamos preencher os buracos presentes em nosso discernimento de mundo, como reflexo do nosso próprio conhecimento do Criador de todas as coisas; isso deságua em nossa busca por conhecimento. Entretanto, o risco é justamente não acreditar que exista limite, trazendo uma eterna insatisfação. Assim, convertemos nossa razão em um ídolo e buscamos um corpo de conhecimento que nunca nos satisfará.
É necessário entender nosso conhecimento sob o senhorio de Deus. Da mesma forma que, por sermos sua imagem e semelhança, temos vontade de conhecer a Ele e à sua criação (incluindo nós mesmos), sabemos que há um limite inerente à nossa condição de criaturass e isso nos faz satisfeitos com o que conhecemos. Isso aponta para que, em razão do pecado, da ignorância e da fraqueza de nossa fé, a nossa certeza nem sempre é perfeita e está frequentemente assentada em probabilidades5. Como Frame nos lembra, “a natureza do nosso pensamento deve refletir a nossa posição de servos. O nosso pensamento deve ser um ‘pensamento-servo’”6, isto é, admitir que conhecemos aquilo que o nosso Senhor permitiu que conheçamos. Assim, nossa satisfação e segurança epistemológicas jamais devem estar na “abstração nem na concretude do nosso próprio pensamento”, mas na certeza infalível da Palavra de Deus propriamente dita7.
Sentimento
Sentimentos são por vezes menosprezados como um estado indesejado de seres corpóreos afetados pela queda, ou como algo que não tem nada a ver com conhecimento — decisões que levam emoções em consideração são denominadas irracionais. Entretanto, “nossas capacidades emocionais fazem parte de nossa natureza como seres pessoais criados à imagem e semelhança de Deus”8. O próprio Bavinck define certeza como um estado do sujeito cognoscente9, isto é, algo que define não só o que um sujeito raciocina, mas como ele se sente. Somos imagem e semelhança de um Deus que expressa sentimentos10 e essas emoções têm presença no pré-queda, seja nas frutas bonitas de ver (v. 9), seja no estado de não-vergonha compartilhado por Adão e Eva. Além disso, alguns sentimentos (como medo, alegria e prazer) são componentes essenciais na busca de cumprir o propósito primário de nossa existência: servir e glorificar a Deus11.
Mesmo entendendo que a queda produz um “complexo distintivamente decaído de emoções”12, a redenção promove restauração e as emoções são colocadas nas mãos de Deus “para serem utilizadas de acordo com seu propósito”13. Em vez de uma visão grega/estoica de menosprezo da emoção, que espera uma salvação pela filosofia, é necessária uma visão de que o homem todo é rebelde, como ele todo é redimido pelo Espírito. Outra questão é que as emoções são um meio pelo qual a verdade nos alcança, sendo um importante fator do processo de conhecer, guiando o ser humano a sentir algo sobre situações e proposições, por exemplo. Quando esse sentimento nos guia bem, essa crença constitui conhecimento14. Assim, às vezes a razão nos salva da loucura emocional, mas as emoções também podem controlar pretensões extravagantes da razão15.
Portanto, as emoções são parte constituinte do ser humano e uma perspectiva importante do conhecimento. Frame chega a sugerir que podemos substituir “eu acredito” por “eu sinto” sem muitos problemas, visto que sentir é parte inerente do conhecer16. Isso significa que é totalmente válido assumir o repouso cognitivo como sentimento importante na certeza da fé, bem como nas decisões que buscam realizar a vontade de Deus.
Piedoso
Por fim, o repouso cognitivo é um piedoso sentimento de satisfação. Existe um qualificador para esse sentimento; somos obrigados a viver conforme a verdade que só é encontrada na voz do próprio Deus17. É necessário reforçar o fato de que só existe descanso de nossa alma em Deus18; a certeza de nossa fé é fruto da restauração de nossa relação com o Senhor19. Dessa forma, não somos reféns de nosso subjetivismo, nem estamos presos a um contexto específico, mas somos dirigidos por Jesus Cristo e por sua vontade. É justamente por isso que o repouso cognitivo está acompanhado de mudança genuína de vida. Como nos lembra Bavinck, tão logo um testemunho é aceito e reconhecido como divino, passa evidentemente a governar o homem mais poderosamente do que qualquer outra palavra20. O repouso é um sentimento que ajuda na persuasão de si em relação à realização da vontade de Deus, mesmo que leve a decisões que parecem não fazer sentido (porque são contrárias à nossa vontade e desejos).
Esse direcionamento para a piedade é encontrado especialmente na Escritura. Mesmo entendendo que toda a Criação é normativa, é na Escritura que recebemos revelação dada em palavra, e não somente da palavra (pois toda revelação é isso)21. Para Frame, entender o sentido do texto bíblico é ter clareza de como aplicá-lo ao nosso contexto, e o repouso cognitivo nos ajuda a estar em um estado de obediência. Assim, nosso sentimento de satisfação deve ser balizado por toda certeza que alcançamos referente ao sentido do texto bíblico e de seu ensino-aplicação22.
Conclusão
Em tempos em que somos convidados para um propositivismo racionalista, ou para um subjetivismo (irracionalmente) libertador, é satisfatório poder descansar sabendo que nossa crença e decisões podem contar com um senso de repouso, que nos dá tranquilidade de saber que estamos tomando decisões conforme a vontade de Deus. Saber que nossas emoções são tão objeto de redenção quanto nossa razão e viver de acordo com essa verdade é respeitar integralmente o trabalho redentivo do Espírito que nos transforma por inteiro, com nossos sentimentos inclusos.
Entretanto, nosso descanso cognitivo deve ser merecido23. Não devemos estar reféns da nossa própria vontade, ou buscar um sentimentalismo que espera paz em qualquer decisão difícil. Entendemos que nossas decisões difíceis precisam ser tomadas em resposta à vocação do Senhor e que sua Palavra deve ser escutada e obedecida, mesmo que necessariamente passemos por dúvidas e incertezas. O repouso cognitivo é uma medida de graça do Senhor que nos permite discernir, mesmo em meio ao caos, que estamos conhecendo sua vontade e respondendo adequadamente.
Por fim, é importante reforçar que nosso conhecimento é dependente e alimentado por nossa existência integral. Sentimentos, tais como raciocínios e fatos do mundo, são dados válidos e essenciais para termos clareza sobre o que é o mundo, quem é Deus e como devemos obedecê-lo. Deus nos cria com sentimentos válidos, e esses sentimentos podem (e devem) nos ajudar a fazer sua vontade integralmente. É necessário, portanto, entregar nossa vida completa ao Senhor e colocar nossos sentimentos, argumentos e fatos concretos em suas mãos, praticando um conhecimento que está sob o total Senhorio de Deus.
1 AOS PÉS da cruz. Intérprete: Orlando Silva. Compositor: Marino Pinto, Zé da Zilda. In: CARINHOSO. Intérprete: Orlando Silva. São Paulo: RCA Victor, 1959. 1 disco vinil, lado B, faixa 4.
2 PASCAL, Blaise. Pensamentos. Disponível em: https://www.monergismo.com/textos/livros/pensamentos_pascal.pdf. Acesso 19 jun 2024
3 FRAME, John. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução: Odayr Olivetti 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 168.
4 BAVINCK, Herman. A Certeza da Fé. Tradução: Fabrício Moraes. 1 ed. Brasília: Ed. Monergismo, 2018. p. 49.
5 FRAME, op. cit., p. 152.
6 Ibid., p. 37.
7 Ibid., p. 207.
8 WILLIAMS, Sam. Toward a Theology of Emotion. The Southern Baptist Journal of Theology, Louisville, KY. v.8 n.4, inverno 2003. Disponível em: https://equip.sbts.edu/publications/journals/journal-of-theology/sbjt-74-winter-2003/toward-a-theology-of-emotion/. Acesso em: 24/06/2024. p. 65
9 BAVINCK, op.cit., p. 39.
10 WILLIAMS, op.cit. p. 64.
11 Ibid.
12 FRAME, op.cit., p. 350.
13 Ibid., p. 351.
14 Ibid., p. 353.
15 FRAME, John. Teologia Sistemática. Tradução: Joinathan Hack, Markus Hediger. 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. v. 2 p. 91
16 FRAME, 2010, p. 353.
17 Ibid., p. 153.
18 BAVINCK, op.cit., p. 39.
19 Ibid., p. 94.
20 Ibid., p. 47.
21 FRAME, 2010, op. cit., p. 153.
22 Ibid., p. 154.
23 ts fr v2 71.
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Referências bibliográficas
BAVINCK, Herman. A Certeza da Fé. Tradução: Fabrício Moraes. 1 ed. Brasília: Ed. Monergismo, 2018. 124 p.
FRAME, John. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução: Odayr Olivetti 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 448p.
______. Teologia Sistemática. Tradução: Joinathan Hack, Markus Hediger. 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 624p. v. 2
WILLIAMS, Sam. Toward a Theology of Emotion. The Southern Baptist Journal of Theology, Louisville, KY. v.8 n.4, p. 58-73, inverno 2003. Disponível em: https://equip.sbts.edu/publications/journals/journal-of-theology/sbjt-74-winter-2003/toward-a-theology-of-emotion/. Acesso em: 24/06/2024.